sexta-feira, julho 6

A gentileza de estranhos

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1997
Autor : Mike Mcintyre

Ele atravessou sem dinheiro um continente apenas para testar a gentileza de estranhos.

Era verão. Eu estava viajando da minha cidade natal Tahoe City, para Nova Orleans. No caminho, quando atravessava o deserto, encontrei uma pessoa à beira da estrada. Estendia o polegar e segurava uma lata de gasolina na outra mão.
Passei direto.
Alguém dará carona para ele, argumentei comigo. Além disso, aquela lata de gasolina pode ser um truque para fazer parar um carro e assaltar o motorista.
Milhares de quilômetros depois, ainda pensava no rapaz que pedia carona. Deixa-lo desamparado, no deserto, não me incomodou tanto como a facilidade com que tomei a decisão. Nem mesmo tirei o pé do acelerador. Será que ninguém mais pára?
Houve época em que seria considerado cretinice ignorar alguém em dificuldades. Agora, ajudar é considerado tolice. Com gangues, viciados em drogas, assassinos, estupradores e ladrões emboscados em toda parte, porque se arriscar?
Pensei em meu destino – Nova Orleans, cenário da peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams. Lembrei-me da famosa fala de Blanche DuBois. “Sempre dependi da gentileza de estranhos.”
Gentileza de estranhos... Soa tão antiquado, não? Poderia alguém confiar na gentileza de estranhos hoje em dia?
Uma forma de testar isso seria atravessar o país dependendo somente da boa vontade dos conterrâneos. Quem me alimentaria, abrigaria, levaria estrada abaixo?
A idéia me deixou intrigado. Mas quem seria louco o suficiente para tentar a viagem? Bem, pensei, por que não eu?
Na semana em que fiz 37 anos, dei-me conta de que nunca fizera uma aposta em minha vida. Então, decidi dar um salto de fé da largura de um continente – ir do Pacífico ao Atlântico sem um centavo. Se me oferecessem dinheiro, recusaria. Aceitaria apenas caronas, comida e lugar onde descansar. Seria uma jornada sem dinheiro através da terra do dólar todo poderoso. Como direção final, escolhi a região de Cape Fear (Cabo do Medo), na Carolina do Norte, símbolo de todos os medos de que precisaria superar para atravessar os Estados Unidos sem dinheiro no bolso.
Acordei cedo no dia 6 de setembro de 1994, joguei nas costas a mochila de 23 quilos e fui para a ponte Golden Gate. Então, tirei da bolsa um cartaz, informando meu destino – “Estados Unidos” – aos veículos que passavam. Os motoristas pareciam confusos com minha placa. Por trás dos pára-brisas, sorriam. Duas mulheres passaram pedalando bicicletas. “É um pouco vago”, disse uma delas. De fato. Um rapaz com sotaque alemão estava caminhando e perguntou: “Estados Unidos, onde?”
Durante seis semanas, tentei descobrir. Consegui 82 caronas e percorri mais de 2.600 quilômetros, passando por 14 estados. Enquanto viajava, descobri que outros partilhavam meu medo. As pessoas estavam sempre me dizendo para tomar cuidado. Em Montana, avisaram-me sobre os vaqueiros de Wyoming. No Nebraska, contaram-me que as pessoas não são tão gentis em Iowa.
Apesar disso, fui tratado com gentileza em todos os lugares por onde viajei. Fiquei surpreso. Uma verdadeira teimosia impelia os norte-americanos a me ajudar, mesmo quando isso contrariava seus próprios interesses. Certo dia, no Nebraska, um automóvel de quatro portas parou no acostamento. Quando cheguei à janela, vi duas senhoras vestidas com roupas de domingo.
“Sei que não se deve dar carona por aí, mas a distância entre as cidades é tão grande nesta região que a gente se sente mal ignorando alguém”, disse a motorista, que se identificou como Vivi. Ela e a irmã Helen iam ao médico em Ainsworth, Nebraska.
Não sabia se as beijava ou reprovava por pararem. A mulher me falou que preferia arriscar a vida a sentir-se mal por deixar um estranho abandonado à beira da estrada. Quando desci em um cruzamento com a rodovia, olhei para Vivi. Ao mesmo tempo, falamos: “Tenha cuidado.”
Noutra ocasião, chovia muito e eu pedia carona sem sucesso. Um caminhoneiro encostou, pisando nos freios com tanta força que derrapou na faixa de grama. Contou-me que já fora roubado à faca por um homem a quem dera carona. “Mas odeio ver uma pessoa lá fora, na chuva”, acrescentou. “As pessoas não tem mais coração.”
Descobri, porém, que a compaixão era a norma. Um casal de meia idade do Iowa deu voltas comigo durante uma hora, tentando ajudar-me a encontrar local para acampar. Em Dakota do Sul, certa mulher, cuja família me oferecera alojamento durante uma noite, deu-me dois cartões postais selados: um para que eu informasse como acabara minha viagem, e outro para ser enviado de onde eu estivesse no dia seguinte, a fim de que ela não se preocupasse comigo.
Quando dizia que estava sem dinheiro e que não aceitaria nenhum, as pessoas, em todos os estados, compravam-me comida ou partilhavam comigo o que tivessem. Um guarda florestal de um parque da Califórnia deu-me algumas cenouras. Um universitário entregou-me pacotes contendo tomates orgânicos, abobrinhas e melões. Uma senhora, em Iowa, ofereceu-me dois pacotes de biscoitos de farinha integral, duas latas de refrigerante, duas latas de atum, duas maçãs e dois pedaços de frango – verdadeira Arca de Noé em embalagem de almoço.
Com freqüência, as pessoas que possuíam menos ofereciam mais. No Oregon, um pintor de paredes chamado Mike comentou sobre o tempo frio e perguntou se eu tinha casaco. Quando respondi “apenas um leve”, ele me levou de carro até sua casa, revirou a garagem e me entregou uma grossa jaqueta verde, no estilo das usadas no exército.
Em outro lugar do Oregon, um lenhador chamado Tim convidou-me para um jantar simples, com a família, em sua humilde casa. Deu-me uma bíblia. Em seguida, ofereceu-me sua barraca. Recusei, sabendo que provavelmente era um dos bens mais valiosos da família. Porém, Tim estava determinado e, finalmente, concordei em leva-la.
Sentia-me grato a todas as pessoas que encontrei, pelas caronas, pela comida, pelo abrigo e pelos presentes. Porém, o que mais apreciava era quando, apenas, agiam com espontaneidade.
Um dia, entrei na câmara de comércio de Jamestown, Tennessee. No interior do antigo edifício de pedra, um homem levantou-se de sua mesa apinhada. “Entre”, disse Baxter Wilson, 59 anos. Era o diretor-executivo.
Quando perguntei onde poderia acampar na área, entregou-me um folheto de um camping local.
“Deseja que eu reserve local para você?”
Vendo que custava 12 dólares, respondi:
“Não, tudo bem. Ainda não decidi se ficarei aqui.”
Então, Baxter, viu minha mochila.
“Qualquer pessoa aqui deixará você armar a barraca em suas terras”, disse ele.
Agora, sim, estamos nos entendendo, pensei.
“Algum endereço especial?, perguntei.
“Olhe, tenho uma fazenda cerca de 16 quilômetros ao sul. Se você estiver aqui às cinco e meia, posso lhe dar uma carona.”
Aceitei e fomos para sua magnífica casa de campo. De repente, percebi que me convidara para passar a noite na casa dele.
Sua mulher, Carol, preparava carne assada quando entramos na cozinha. Professora de Ciências da sétima série, era a imagem do charme sulista.
Baxter explicou que as pessoas locais eram “gente caseira das montanhas”, e se considerava um deles. “É raro recebermos visitas em casa”, explicou. Quando o fazemos, geralmente são parentes.” A revelação tornou minha noite lá ainda mais especial.
Na manhã seguinte, quando desci, Carol perguntou se gostaria de acompanha-la à escola em Allardt e falar às crianças sobre a viagem. Disse que não queria estimular um grupo de alunos da sétima série a pedir carona pelos Estados Unidos (na verdade, em alguns estados isso é ilegal). Mas Carol respondeu que as crianças deveriam ser expostas a tudo o que existe lá fora – o bom e o ruim. “Elas precisam saber”, disse.
Concordei. Aí percebi, surpreso, que reuniram todas as turmas da escola. As crianças eram bem educadas e atentas. Choviam perguntas:
“Onde as pessoas são mais gentis?”
“Quantos pares de sapatos você tem?”
“Alguém tentou atropela-lo?”
“Você se apaixonou por alguém?”
“Do que você tem mais medo?”
E a minha favorita, de uma menininha graciosa com óculos e sardas: “Quer almoçar conosco?”
Mais tarde, Carol me revelou que uma das crianças com quem eu falara era bastante tímida. Depois da aula, o menino foi até ela e anunciou: “Quero ser jornalista quando crescer, para ir a todos os lugares que ele viu.”
Fiquei emocionado. Quando saí de São Francisco, pensava apenas em mim mesmo. Não considerei que minha viagem pudesse afetar uma criança no Tennessee. Isso me fez lembrar de que, não importa o quanto nos esforcemos, nada do que fazemos acontece em vão.
Faltando apenas um estado para percorrer, e com a jornada quase no fim, compreendi que foi necessário abrir mão do dinheiro para ter a mais rica experiência de minha vida.

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