sexta-feira, julho 20

Vovô não foi embora

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autora : Ann Hood

O que um menino sabia sobre amor, sofrimento e cura?

Um dia, Sam, meu filho de 4 anos, contou-me que vira a babá chorando porque tinha rompido com o namorado.
“Ela estava triste”, explicou ele. “Eu nunca fiquei triste”, acrescentou. “Nunca mesmo.”
Era verdade. A vida de Sam era feliz – em grande parte por causa de seu relacionamento com meu pai. Como Sam contava a todos, Vô Hood era mais do que um avô para ele – era um companheiro.
Há uma cena no filme Anne of Green Gables em que Anne exprime em voz alta o desejo de ter um amigo do peito. Assistindo à cena certo dia, Sam disse:
“Como eu e o Vô: amigos do peito para sempre.”
Meu pai descrevia essa relação do mesmo modo. Quando eu ia dar aulas à noite fora da cidade, uma vez por semana, era o Vô que buscava Sam no colégio com sua caminhonete vermelha e o levava para a casa dele, onde brincavam de piratas, cavaleiros e Robin Hood.
Eles até se vestiam do mesmo jeito: camiseta com bolso, boné de beisebol e jeans. Tinham seus restaurantes preferidos, parques que sempre freqüentavam e lojas de brinquedos em que papai deixava Sam brincar pelos corredores em carros motorizados.
Sam sabia de cor o número do telefone de meu pai e lhe telefonava todos os dias, de manhã e à noite.
“Vô”, perguntava, agarrando o fone, “posso ligar para você mais cem vezes?” Papai sempre respondia que sim e atendia o telefone todas as vezes com o mesmo prazer.
Então meu pai adoeceu. Nos meses em que ficou hospitalizado com câncer no pulmão, preocupava-me com a reação de Sam à aparência do avô: as marcas das injeções, os tubos de oxigênio, sua fraqueza. Quando expliquei a Sam que se visse o avô tão doente poderia ficar assustado, ele se espantou.
“Ele nunca poderia me assustar”, respondeu.
Mais tarde, vi adultos se aproximando da cama de meu pai no hospital com apreensão, sem saber o que dizer ou fazer. Mas Sam sabia exatamente como agir: com abraços e brincadeiras, como sempre.
“Vai voltar para casa logo?” perguntava.
“Estou me esforçando” respondia papai.
Quando ele faleceu, tudo mudou para mim e para Sam. Sem querer enfrentar as perguntas e os sentimentos suscitados pela morte de meu pai, eu reprimia a tristeza arrasadora que sentia. Quando, bem intencionadas, as pessoas me perguntavam como eu estava, dava uma resposta rápida e mudava de assunto.
Mas Sam era diferente. Para ele, pensar em voz alta era o melhor meio de compreender.
“Então”, dizia, acomodando-se no assento do carro, “O Vô está no espaço, não é?”
Ou, apontando para um vitral da igreja:
“Um daqueles anjos é o Vô?”
Logo depois que meu pai morreu, Sam indagou:
“Onde fica o paraíso?”
“Ninguém sabe exatamente”, respondi. “Muita gente acha que é no céu.”
“Não”, disse Sam, sacudindo a cabeça. “Fica muito longe. Perto do Camboja.”
Em outra ocasião, perguntou:
“Quando a gente morre desaparece, não é? E quando a gente desmaia, desaparece só um pouquinho, certo?”
Achava que as perguntas dele eram boas. O que me incomodava era o que sempre fazia depois: olhava bem dentro dos meus olhos, com mais esperança do que eu podia suportar, e aguardava minha aprovação, correção ou sabedoria. Mas, nesse assunto, meu medo e a minha ignorância eram tais que eu ficava muda perante a inocência dele.
Recordando a atitude de Sam diante da doença de meu pai, comecei a observar sua maneira de enfrentar o sofrimento. À noite ele encostava o rosto na vidraça da janela do quarto e chorava, dizendo para a escuridão: “Vô, amo você! Sonhe com os anjos!” E depois que as lágrimas cessavam, ele se deitava, de certo modo satisfeito, e dormia. Eu, ao contrário, andava pela casa a noite toda, sem saber como chorar.
Um dia, no estacionamento do supermercado, vi uma caminhonete vermelha, igual à de meu pai. Por um instante esqueci que ele tinha morrido. Meu coração deu um salto e pensei: Papai está aqui!
Então me lembrei, e me desfiz numa enxurrada de lágrimas. Sam veio para o meu colo, espremendo-se contra o volante.
“Você sente saudades do Vô, não sente?”, indagou.
Consegui indicar que sim com a cabeça.
“Tem de acreditar que ele está conosco, mãe”, disse ele. “Tem de acreditar nisso.”
Jovem demais para se agarrar numa ideologia em especial, Sam estava simplesmente lidando com o sofrimento e a perda, acreditando que a morte não nos separa realmente de quem amamos. Eu não podia lhe mostrar o paraíso num mapa nem explicar o rumo que a alma segue. Mas ele encontrara o próprio jeito de lidar com isso.
Há pouco tempo, quando preparava o jantar, Sam estava sentado à mesa da cozinha, quieto, colorindo seu livro do Homem Aranha.
“Eu também amo você”, disse ele.
Eu ri e respondi.
“Você só diz ‘Eu também amo você’ depois que alguém diz primeiro ‘Eu amo você’.”
“Eu sei”, disse Sam. “O Vô acabou de dizer ‘Eu amo você, Sam’, e eu disse, ‘Eu também amo você’”.
E continuou a colorir.
“O Vô acabou de falar com você?”, perguntei.
“Ah, mamãe”, disse Sam. “ele diz que me ama todos os dias. Diz a você também. Você é que não está escutando.”
Mais uma vez, passei a seguir o exemplo de Sam. E comecei a escutar.

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