terça-feira, julho 31

Promessa de primavera

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autor : Jeff Rennicke

Até mesmo os dias mais gelados de inverno apresentam... promessa de primavera.

Nada. Nenhum rastro além do meu está pontilhado na camada de neve recente – branca como a casca do vidoeiro – caída durante a noite. Nenhum alvoroço de sombras nas árvores, nem sinal de cantos de pássaros no ar.
O pouco sol que existe nessa época do ano brilha fraco, sem vontade, através da fina névoa de nuvens brancas, não oferecendo a menos pretensão de calor. Já faz quase uma semana que a temperatura perto de minha cabana no Wisconsin se mantém abaixo de zero. O mercúrio parece estar preso à base do termômetro. Sinto arrepio enquanto bato com os pés para me aquecer e novamente espero escutar algum sinal de vida.
O único ruído vem das pontas despidas dos galhos, rangendo como dentes. À primeira vista, a natureza não parece ter investido muito nesse dia de fim de inverno. A floresta tem ar de gravura tosca – árida, cinzenta e sem vida. Os flocos de neve caindo como pára-quedas no gramado da frente, que nos encantaram no dezembro – agora significam apenas que temos de raspar o pára-brisa do carro. Há belezas sutis – os galhos de pinheiro envoltos em camada branca, o brilho azulado do luar sobre a neve. Mas, nessas profundezas do inverno, procuramos menos a beleza do que sinais de que a primavera não foi esquecida.
Não é fácil encontra-los. Já houve época em que se acreditava que a natureza simplesmente fazia limpeza geral no inverno, espécie de apocalipse anual, seguida de renascimento milagroso a cada primavera. Pensava-se que os camundongos se regeneravam espontaneamente das pilhas de trapos. As rãs e tartarugas saíam das poças de água, geradas pelas chuvas mágicas da primavera. Pássaros se transformavam em outros animais para atravessar os meses gelados.
Os verdadeiros meios usados pela natureza para lidar com o frio são quase tão espantosos quanto essas velhas histórias. O inverno oferece duas opções básicas à vida silvestre: mudar-se ou lutar. Em alguns locais, a paisagem se esvazia como uma jarra de água derrubada. Os galhos curvam-se sob o peso de bandos mistos de melros, pássaros negros e estorninhos, às centenas de milhares, que se reúnem para migrações em massa. Dois terços das espécies de pássaros que tem os ninhos na América do Norte dirigem-se a locais de climas mais amenos.
Cem milhões de borboletas danis archipus, parecendo flores silvestres aladas, viajam às vezes até 6 mil quilômetros ao México, Texas e à Califórnia. Caribus saem em bandos do alto Ártico com as primeiras geadas do inverno. Baleias cinzentas viajam milhares de quilômetros procurando calor, alimento e sol.
Mas nem todas as migrações alcançam o globo terrestre. Muitas espécies fazem viagens curtas, por vezes apenas de alguns quilômetros, para aproveitar condições locais conhecidas como microclimas. Os alces do Colorado passam das terras altas para os vales vizinhos. As águias de cabeça branca do Alasca procuram o alto-mar. Os cervos de cauda branca das matas do Wisconsin buscam uma encosta voltada para o sul com o objetivo de aproveitar o sol da manhã.
Outras criaturas inventam meios próprios de enfrentar a dura realidade do inverno. Os bois postam-se de costas para o vento de temperaturas abaixo de zero, respirando devagar pelas narinas que aquecem o ar ártico supergelado antes que ele penetre nos pulmões. Os ursos polares se mantém aquecidos acumulando camadas de gordura de até 18 centímetros sob a pele de quase 10 mil pêlos por 6 centímetros quadrados. As patas ásperas são antiderrapantes.
A sobrevivência de certas espécies parece quase milagrosa. O chapim, por exemplo, que pesa apenas nove gramas, lembra minúscula centelha de vida para se lançar à mercê de ventos gélidos, de 60 km/h.
Para manter a fornalha interna estocada, os chapins comem, no inverno, o dobro do que comem no verão. Durante o dia, alimentam-se quase continuamente, para acumular camada de gordura que queimará lentamente durante a noite fria. No inverno, também tem mais 30% de penas e podem afofa-las, formando camada de ar quente.
Quando o frio se torna muito intenso, os chapins alcançam uma espécie de estado hipotérmico controlado, as temperaturas corporais baixando até 11 graus abaixo dos 40 normais, desse modo reduzindo o consumo de energia. A qualquer indício de calor, os chapins saem das cavernas de moitas cerradas, piando baixinho e comendo, sempre comendo.
Muitas espécies de sangue frio se enterram na lama para não congelar, reduzindo-se quase à morte. As rãs do mato na verdade se congelam, e degelam na primavera. A rã inunda a corrente sanguínea com glicose – anticongelador que impede lesão às células -, expediente também utilizado por insetos, tartarugas e cobras do gênero thamnophis.
Atravesso um riacho. Abaixando-me, raspo a neve da superfície e bato no gelo com a mão – de luvas -, imaginando uma tartaruga em algum lugar no fundo., ouvindo vagamente o ruído, enquanto pacientemente aguarda a primavera.
Nesse mato também estão os ursos negros hibernando. Em cada outono, levados por recordação ancestral do inverno, os ursos negros entram num frenesi alimentar. Chegam a consumir 20 mil calorias por dia, aumentando em 30% o peso corporal. Na primeira nevasca, eles se escondem no fundo de tocos, grutas e buracos rasos formados de capim. Às vezes se entocam a alturas de até quase 30 metros nos troncos quebrados de árvores antigas. As batidas cardíacas caem até 10 por minuto e eles estabelecem residência por um período de quatro a seis meses.
Não comem nem bebem, não urinam nem defecam. Pesquisas sobre o modo de os ursos reciclarem os detritos sem envenenar o organismo tem ajudado a tratar pacientes com insuficiência renal. O estudo da maneira de lidar com longos períodos de inatividade sem perda de cálcio nem atrofia muscular pode ajudar a evitar a osteoporose, além de ter conseqüências para os vôos espaciais de longa duração.
Fico pensando na confiança total do urso na volta da primavera. Postado ali na beirada, a alguns graus do clima impróprio à vida, é confortador saber que sob a neve os ursos dormem numa crença inocente de que o sol retornará para libertar os rios e fazer as flores desabrochar.
Quando volto para casa, ouço o ruído: o assobio dos chapins, baixinho, em dois tons. Quando os procuro, vejo um pica-pau penugento subindo em espiral pelo vidoeiro, o brilho vermelho vivo com uma língua de fogo. No solo, observo pegadas de coelhos, onde momentos antes só tinha visto neve lisa.
Esses ligeiros sinais de vida nos permitem acreditar de novo na primavera. Ajudam-me a apreciar a beleza do que resta do inverno e a me lembrar de que o frio não durará para sempre. Cada rastro, cada trechinho de canto de ave, cada legume congelado é uma afirmação de vida, desafio ao frio, promessa.
Ânimo, parecem dizer. A primavera chegará em breve.

Nenhum comentário: