quarta-feira, julho 25

Os óculos perdidos

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1997
Autor : Magnus Linklater

Quem poderia imaginar a aventura em que se transformaria esta busca?

Já era meia noite em nossa tranqüila residência em Edimburgo, Escócia, e minha esposa acabava de arrumar as malas para viajarmos. Porém, deixou cair os óculos no corredor e estes escorregaram para dentro de uma fresta no chão.
Era um piso feito de pedras do século passado. Depois de afastar algumas, pude ver os óculos reluzindo lá embaixo. Deitei-me próximo ao buraco e enfiei o braço esquerdo para alcança-los. Meus dedos entranhados na poeira vasculharam sem sucesso, até que desisti. Parecia provocação: era capaz de vê-los, e não podia pegá-los. Quis puxar o braço, porém não saía. Meu cotovelo ficou preso entre uma pedra e uma viga de ferro. No começo, puxei com cuidado. Depois, com mais força. Nem se mexia.
Tentei girar o braço e...nada!
Permanecia ali, naquela posição ridícula de cara para o chão. Minha mulher, parecendo ignorar a gravidade da situação, sugeriu esfregar azeite no braço. Despejamos um pouco no buraco. Em vão. Por um instante, achei ter ouvido o som de risos contidos, porém, como não podia vê-la, não tive certeza.
“Vamos ter de chamar o Corpo de Bombeiros”, disse ela.
Resolvi continuar tentando. Uma coisa é passar por uma humilhação dessas na intimidade do próprio lar; outra é revelar isso aos bombeiros – algo inimaginável. Puxava com força e me contorcia. Após 10 minutos, tive de ceder.
Parece não haver outro meio de chamar os bombeiros a não ser pelo telefone de emergência. Com isso não se contata apenas uma pessoa, e sim toda a organização. Em pouco tempo a rua adormecida foi invadida pelo som estridente da sirene acompanhada de incessantes luzes azuis.
Três homens prontamente equipados de capacetes amarelos e machados saltaram do carro. Pude ver suas enormes botas. Agacharam-se em volta de mim, estudando a situação. Nenhum deles, pelo que vi, achou a menor graça.
Outro veículo estacionou lá fora – dessa vez, um carro da polícia. Dois oficiais munidos de intercomunicadores entraram e começaram a registrar a ocorrência. Não percebi se riam ou não, só sei que também usavam botas enormes.
Outro oficial, do Departamento de Investigação Criminal, juntou-se a eles movido pela informação de que um homem estava “preso até os braços em concreto.” Nunca tinha visto algo assim e resolveu dar uma olhada.
Segundos mais tarde, o som de freios anunciava a chegada da ambulância. Dois paramédicos pularam apressados, carregando maletas grandes, oxigênio e equipamento médico com recursos sofisticados de reanimação. Abaixaram-se e perguntaram sobre meu estado de saúde. Respondi que estava melhor do que se podia imaginar.
Àquela altura, já havia oito homens lá em casa, e três veículos com luzes piscando do lado de fora. Foi o que pude captar de onde estava: grudado ao chão. Uma pessoa olhava abismada, pois o que via era um corpo, o rosto virado para o chão, cercado por todas as equipes de emergência da cidade. Arrepiei-me ao imaginar o que lhe estaria passando pela cabeça.
Um dos paramédicos sugeriu azeite outra vez. Despejaram um pouco do caro azeite de oliva extra puro restante na lata, enquanto ele movia meu corpo. Minha sensação era de que o braço estava sendo arrancado. “Puxe agora”, ordenou.
Obedeci e, de repente, lá veio meu braço, todo vermelho, ensangüentado e lambuzado de azeite – ao menos saiu inteiro.
“Mova os dedos”, ordenou o paramédico. Todos mexiam. “Da próxima vez, use um cabide”, aconselhou, com tom de reprovação, o único que ouvi naquela noite.
Os policiais fecharam seus blocos de anotações. O investigador balançava a cabeça sem acreditar no que havia presenciado. Os paramédicos guardaram o oxigênio, e os bombeiros levaram de volta os machados, com certa relutância. Os motores soaram novamente e o comboio de emergência foi embora.
Recobrei os “sentidos” com um copo de cerveja. Depois, fui buscar um cabide – e recuperei os óculos em 2 minutos e meio.

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