quarta-feira, julho 18

O banquinho de madeira

Fonte : Revista Seleções
Data : Outubro de 1999
Autora : Heloisa Seixas

Emoldurado pela porta, o jovem de rosto sério trazia nas mãos um pequeno banco de madeira.

O cenário era um casarão do início do século no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, com telha francesa, janelas imensas em pinho de riga, assoalho de tábuas corridas. A noite, de festa: era a inauguração de um estúdio de dança que passaria a funcionar ali.
Estávamos em julho de 1993 e, no inverno carioca, fazia um friozinho agradável. No salão, de quase cem metros quadrados, cercado de janelões e espelhos, a multidão se amontoava, conversando ruidosamente.
A música estava animada, como animadas eram as vozes em todas as rodas que se formavam. Mas, de repente, o vozerio desceu de tom. Música e vozes foram baixando, baixando, até se tornarem pouco mais do que um murmúrio, enquanto as pessoas se voltavam, quase sem perceber, para uma porta no fundo do salão. Todos os olhares convergiram para aquele ponto.
Ali, emoldurado pela porta, estava um jovem. Era um rapaz como outro qualquer, como tantos que pelo salão se espalhavam, participando da festa. Mas duas coisas o diferenciavam dos demais. A primeira era o olhar. Estava sério – o rosto, máscara inexpressiva, sem rugas, encarava as pessoas à sua volta com uma intensidade peculiar, os olhos castanhos saltando de um para outro convidado e nele se cravando, implacáveis. A segunda coisa era o banquinho. Ele trazia nas mãos um pequeno banco de madeira, objeto sem dúvida incomum de se portar naquela hora e naquele lugar.
Logo, deu um passo à frente. E, lentamente, sem nunca deixar de olhar as pessoas nos olhos, caminhou para dentro do salão. Atrás dele, vieram outros. Rapazes e moças. Todos sérios, todos de olhar intenso – e cada um levando nas mãos um banquinho de madeira.
Espalharam-se pelo salão, agora mergulhado em silêncio. Alguém desligara o som e todos aguardavam, quietos e curiosos. Os jovens continuavam mudos, mas seus olhares pareciam cada vez mais inquietos, saltando de uma pessoa para outra.
Súbito, num movimento vigoroso, o primeiro jovem colocou no chão seu banquinho, nele subindo em seguida. E, pairando alguns centímetros acima do resto do salão, começou a falar.
Era um texto teatral, que depois se soube ser uma colagem de várias peças. Falava sobre a necessidade que o ser humano tem de se expressar através da arte. Sobre a tentativa de permanecer, de deixar um rastro sobre a terra, gravado em tintas, letras, sons, o que for. Terminado seu trecho, o rapaz se calou e desceu do banquinho, voltando a segura-lo nas mãos.
E imediatamente outro jovem, colocando seu próprio banco no chão, nele subiu e continuou a fala, do ponto onde o colega havia parado. Depois dele, uma jovem. E em seguida mais um rapaz. Todos falando dessa busca incessante de expressão – e de como isso é saudável, heróico e belo.
Incrível que a colagem de textos tivesse sido feita – como ficaríamos sabendo mais tarde - pelo diretor de teatro Márcio Vianna, que morreria quase três anos depois, aos 47 anos. Ironicamente, aquele belo espetáculo tinha sido criado por um homem que estava com os dias contados. Mas afinal, pensando bem, quem de nós não está?
O fato é que, na festa, nós, os convidados, ouvimos encantados a preleção dos jovens, envolvidos pela força com que diziam o texto e pela verdade que havia naquelas palavras. Até que, num dado momento, o último dos jovens, um rapaz, subiu em seu banquinho para a fala final. De olhos brilhantes e com gravidade, ele disse:
“É por meio da arte que a dor se transforma em luz. É por meio da arte, ainda, que muitos encontram o divino. Por isso, devemos, cada um de nós, tentar buscar nosso dom, nossa própria forma de expressão. Devemos todos, ao menos uma vez na vida, seja como for, seja de que forma for, tomar coragem e subir no nosso próprio banquinho.”
O salão inteiro era uma só massa de silêncio, todos os olhos convergindo para aquele jovem que dizia coisas tão sábias. E ele, então, abrindo um imenso sorriso, conclamou:
“E é em nome da arque que agora chamo vocês a fazer uma celebração. Quero que todos, todos aqui presentes, tirem uma pessoa, qualquer pessoa, para dançar. E vamos celebrar a vida!”
Mal acabou de dizer a frase e os primeiros acordes de uma música encheram o salão, ninguém sabe como. E todos nós, o salão inteiro, alguns com desconhecidos, alguns até sozinhos, nos vimos felizes, obedecendo aquela ordem.
Saímos todos dançando.

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