terça-feira, novembro 14

Uma família em Beirute.

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1978
Autora : Diane Willman

Durante quase dois anos, uma trágica guerra civil assolou Beirute, deixando cicatrizes permanentes na cidade e em seus habitantes; o instinto humano de sobrevivência, no entanto, prevaleceu de maneira maravilhosa. Eis a história, contada por uma mulher, do que era ser dona de casa e mãe de um bebê, numa cidade onde a violência e a morte eram lugar comum.

Moro em Beirute desde 1969. Cheguei como jornalista free-lance e fiquei seduzida pelo seu estilo de vida cosmopolita. Em 1971, conheci Jihad Bisher, funcionário de serviços num campo de refugiados da Organização de Obras e Assistência das Nações Unidas.
Casamos no ano seguinte e nosso filho Tarek nasceu em janeiro de 1975.
Três meses depois, rebentou a guerra civil; durante os dois anos seguintes, vivi uma existência cômico-macabra, representando diariamente uma imitação de uma dona de casa urbana, enquanto sangrento conflito se alastrava violentamente entre cristãos e muçulmanos, facções libanesas e palestinas, e, mais tarde, forças invasoras vindas da Síria.
Nós não queríamos continuar ali depois que a luta chegou a Beirute, mas Jihad é palestino, e a Organização da Frente de Libertação da Palestina tomou uma atitude ameaçadora em relação a qualquer palestino que tentasse ir embora.
Passaram-se vários meses antes de termos consciência das alterações que se verificavam em nossa cidade – e muito mais tempo escoou antes que percebêssemos quanto a guerra nos tinha mudado. A princípio, quando ainda tínhamos água, combustível e eletricidade, o que eu mais temia era o fechamento da única lavanderia automática de Beirute; isso quase aconteceu quando, certa manhã, granadas de morteiro caíram numa rua próxima. Uma porção de roupas nossas estavam lá nessa ocasião. Não havia nada a fazer; e, então, eu trouxe o bebê no carrinho, de volta para a casa, e deitei-o na cama para dormir o sono matinal.
Foi quando uma granada caiu perto da porta da nossa cozinha, atirando pedras e estilhaços contra as paredes. Agarrei Tarek e deitei-me no chão com ele, num corredor estreito. As granadas e os foguetes assobiavam por cima de nós. Arrastei-me pelo chão da sala de estar e carreguei o telefone e o rádio para o nosso canto, mais ou menos protegido. Enquanto Tarek brincava com os botões do rádio, eu conversava com amigos pelo telefone. Poder falar com alguém, comparar informações, saber o que havia ou apenas bater papo, era um conforto para todos nós.
Dois dias depois, a lavanderia reabriu. Naquele período, houve gente da vizinhança que teve morte violenta – mas minha maior preocupação era o monte de roupa suja que jazia sob uma película cinzenta de espuma dos extintores. Só passada uma semana é que aquele cheiro de coisas estragadas desapareceu.
À medida que as tenazes dos combates apertavam a cidade, o insólito começou a parecer cada vez mais normal. Quando eu ia ao banco buscar dinheiro para fazer compras (em Beirute, poucas pessoas guardavam dinheiro em casa, a não ser que pudessem pagar a guardas pessoais armados), já nem ligava aos guerrilheiros palestinos à porta, de metralhadora ao ombro, revistando cada cliente que entrava.
Às vezes, se os guardas me faziam parar, a fim de brincarem com Tarek, eu reagia como se um porteiro, num banco de Sydney, fizesse a mesma coisa. Dentro do banco, colocava o carrinho de Tarek bem afastado da parede de vidro que dava para a rua, para o caso de uma granada de morteiro cair ali. Dias depois, já fazia isso sem pensar.
Certa vez, quando eu ia a caminho do banco, um rapaz que brincava com uma pistola numa esquina baleou-se no peito, cambaleou sangrando e morreu. Juntamente com outros transeuntes, parei apenas o tempo suficiente para me assegurar de que não iria haver nenhum tiroteio entre grupos rivais e segui meu caminho, com o pensamento ocupado com as lojas que poderiam estar abertas e com os gêneros alimentícios que precisava comprar.
Minha alegre cidade tornara-se uma aldeia fantasma. Na nossa rua, os edifícios de apartamentos tem de 8 a 14 andares, mas, no princípio de 1976, ficaram apenas duas ou três famílias em cada um. Um por um, meus amigos estrangeiros abandonaram Beirute; quase todas as semanas, ouvíamos falar de algum amigo árabe que tinha sido morto ou ferido.
Metida nos quatro cômodos de nosso apartamento como num casulo, muitas vezes eu achava que meu pior inimigo era o tédio. Em algumas tardes, enquanto Jihad estava trabalhando e Tarek dormindo, a única coisa que eu tinha para fazer era decidir que latas ia abrir para o jantar. A biblioteca do Britsh Council era um consolo; quando não havia bombardeios, a biblioteca abria. Lá dentro, só se ouvia o tilintar das xícaras de chá, e a atmosfera era de calma e expectativa. Nas noites em que tínhamos pouca água, em que não havia eletricidade e as granadas caíam mais perto, eu abria um livro de P. G. Wodehouse que trouxera da biblioteca, aproximava de mim a vela e fugia para Blandings Castle, enquanto Jihad ouvia o rádio e cochilava.
Durante 1976, a água tornou-se uma obsessão. A maior parte do tempo eu tinha de entrar em filas, na rua, para encher baldes de plástico com água que jorrava dos canos rebentados –e aprendi que, quanto mais a gente entrava numa zona de combate, mas probabilidade havia de encontrar canos rebentados.
Se tínhamos eletricidade – o que acontecia talvez uma vez por semana -, eu ligava as bombas, enchia minha velha máquina de lavar roupa (a lavanderia tinha fechado), dava um banho em Tarek, tomava uma chuveirada, lavava os pratos sujos e enchia uns baldes e dois tambores de gasolina. Finalmente, se as torneiras ainda davam água, eu lavava o chão e regava as plantas.
Minhas plantas, contudo, não resistiram muito tempo à guerra. Uma a uma, foram morrendo – rosas australianas que nos tinham sido presenteadas durante nossa lua de mel, crisântemos da Bulgária que Jihad e eu havíamos comprado durante as primeiras férias que passamos juntos, pequenos tufos de camélias plantados quando Tarek nasceu. Fiquei espantada com o desgosto que senti pela morte das minhas plantas; afinal, nos campos de refugiados da cidade havia pessoas morrendo por falta de água.
Tarek, que era um bebê acostumado com a guerra, raramente tinha dificuldade em adormecer devido aos ruídos da guerra. Uma vez, no entanto, quando os soldados colocaram um tanque numa rua próxima e começaram a atirar num inimigo que nós não víamos, Tarek acordou gritando de medo.
Saí do apartamento que nem uma fera e berrei para os homens que rodeavam o tanque: “Vocês estão assustando meu filho!” Mostrei-lhes uma foto de Tarek. Os soldados sorriram com um ar forçado e pediram desculpas. O tanque foi embora. Um pedacinho da guerra tinha mudado de lugar porque assustava uma criança.
O trabalho de Jihad obrigava-o a ir para os campos de refugiados. Esperar que ele voltasse para casa era sempre uma experiência muito preocupante, mas eu me consolava um pouco pensando que ele estava bem habituado à guerra.
Uma vez, uma granada de morteiro explodiu alguns metros à frente do carro dele. Jihad sabia que muitas vezes três granadas são atiradas no mesmo alvo, em questão de minutos; por isso, acelerou, passando na frente dos outros carros abandonados pelos donos, que procuravam abrigo. A segunda e a terceira granadas caíram mesmo atrás dele.
De minha parte, cada vez que saía (para fazer compras, trabalhar ou ir duas vezes por mês doar sangue no hospital americano), tinha de tomar decisões táticas. A que horas o tiroteio seria mais esparso? Que caminho seria o mais seguro?
Uma mulher de traços europeus era pouco comum, e isso ajudava. Ao andar pela cidade, como correspondente, eu às vezes passava por duas ou três barreiras nas ruas, cada uma erguida por membros de diferentes facções combatentes. Por vezes, os guerrilheiros revistavam meu carro (quando eu tinha a sorte de Jihad poder empresta-lo) ou verificavam meus documentos de identidade, mas, quase sempre, simplesmente mandavam a maluca mulher ocidental seguir.
Quando ia fazer minhas reportagens, tentava deixar Tarek com vizinhos, mas às vezes tinha mesmo de leva-lo comigo. Logo que ouvia tiros, enfiava o carrinho de Tarek atrás de uma parede ou num vão de porta, e, assim que o tiroteio acabava, lá ia eu pisando os cacos de vidro e nos destroços. De vez em quando, os guerrilheiros faziam de babás; ficavam sentados no chão de um abrigo ou atrás de sacos de areia, e davam a Tarek cápsulas de balas para brincar. Imaginem!
Estaria eu sendo imprudente? Agora, há momentos em que acho que sim... mas naquela época não achava. Quando a luta estava no auge, todos os lugares eram igualmente perigosos.
Em julho de 1976, os Estados Unidos organizaram uma retirada dos estrangeiros, e eu concordei, devido à insistência de Jihad, em levar Tarek à Austrália. Foi muito duro separar-me de meu marido; se já não estivéssemos habituados à constante incerteza sobre a segurança um do outro, não teria conseguido partir. Com freqüência, durante a primeira parte de nossa viagem, a bordo de um transporte anfíbio norte-americano, Tarek, de pé no convés, acenava para longe dizendo: “Adeus, papai!”
A sensação de segurança lá na Austrália era como um sonho. Todos aqueles banhos de chuveiro, toda aquela carne e frutas frescas! Três meses na tranqüilidade de Sydney fizeram que os horrores e as privações da guerra se tornassem mais reais do que no momento em que eu estava passando por eles.
Mas, quando Tarek e eu voltamos em outubro de 1976, imediatamente o absurdo se tornou de novo comum. Levei horas para encontrar um motorista de táxi que estivesse disposto a levar-nos de Damasco a Beirute. Várias vezes tivemos de fugir de balas de atiradores esparsos, vindas de aldeias que ainda resistiam ao controle do exército sírio que avançava.
Quando cheguei a casa, Jihad estava fora, trablhando. Duas famílias que tinham ficado durante os piores meses da guerra vieram dar-nos as boas vindas.
O apartamento estava um caos. Assim que Jihad regressou, a meio da tarde, Tarek correu para os braços dele com um grito de alegria: “Papai!” Amargamente, queixei-me das baratas e das cascas de nozes de pistache debaixo das cadeiras.
“Eu me preocupando que nem doida, e você sentado aqui, comendo pistache!”, berrei.
“Não havia mais nada para fazer”, disse Jihad com um sorriso sarcástico.
Muito mais tarde, depois que Tarek foi dormir, Jihad e eu olhamos bem um para o outro. Disse-lhe que não parecia mudado; ele comentou que eu estava na mesma. Levamos tempo para compreender que estávamos completamente errados... e quanto os últimos 18 meses nos haviam modificado. Nossa pequena família resistira, mas a euforia apenas por estarmos vivos em breve desapareceu. Nosso desejo de sobrevivência tinha-se tornado de tal forma um instinto animal, tão preocupado em evitar a destruição, tão entranhado, que continuava sendo a força dominante de nossas vidas.
Nesse aspecto, éramos também vítimas da guerra, e, por essa razão, iremos deixar Beirute logo que Jihad arranje um novo lar para nós.
Queremos um lugar onde as pessoas não guardem pistolas nos carros e metralhadoras nos quartos de dormir, onde possamos esquecer a tortura e a morte, onde o insólito não seja aceito como normal.

Nenhum comentário: