quarta-feira, novembro 8

Com o amor na garupa

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereiro de 2002
Autor : Peter Michelmore

Sobre duas rodas – Roy Hutchison dividiu com Tiffany as dores e alegrias da vida.
O motoqueiro salvou um bebê que ninguém queria

Roy Hutchison abriu a porta e, devagar, tirou o bebê de dentro do carro. Com todo o cuidado, como se estivesse carregando porcelana entre os braços musculosos, levou-o pela calçada até sua casa de tijolos vermelhos, na cidade de Independence, no Missouri. A partir daquele instante, a criança, bem enrolada e aquecida nas cobertas, com um fiapinho de cabelo louro aparecendo, tocou-lhe o coração. Ela parecia perfeita – mas não era. O corpo frágil de Tiffany tinha sido gravemente afetado no nascimento. Já dentro de casa, Roy Hutchison colocou a neném no sofá e virou-se para a mulher, Judy:
“Compramos todas aquelas roupinhas novas e bonitas”, disse. Vamos dar banho nela e ver se servem.”
Roy e Judy havia muito pensavam em adotar uma criança. Quando o casal soube de uma menininha deficiente, que ninguém queria, o Serviço de Assistência Social concordou que eles fizessem aulas de treinamento e cuidassem dela por um tempo. Cada um tinha dois filhos de casamentos anteriores, mas ambos queriam ter um bebê em casa.
A história de Tiffany era de cortar o coração. Cerca de oito meses antes, em setembro de 1984, uma adolescente com problemas mentais dera à luz no banheiro de um hospital, em Kansas City. O cordão umbilical tinha se enrolado no pescoço do bebê, cortando o fluxo de oxigênio, o que provocara sérios danos no cérebro. A menina tinha paralisia cerebral e era quase de todo cega e surda. E pior, uma curvatura na espinha dorsal, com o tempo, acabaria provocando problemas respiratórios e muito provavelmente lhe encurtariam a vida. Ela jamais conseguiria falar ou brincar como as outras crianças. Jamais se formaria, casaria ou teria filhos.
Posta sob custódia da Justiça, foi oferecida para adoção. Suas necessidades, porém, era um fardo pesado demais para que as pessoas cuidassem dela – até que os Hutchison apareceram.
Talvez algumas pessoas tenham se surpreendido em saber quer Roy, 37 anos, assumira tamanha responsabilidade. “Mas ele tem um coração enorme”, disse aos amigos sua filha, Bárbara. Técnico em emergências médicas, Roy estava certo de ter o treinamento ideal para assumir a tarefa.
Tiffany precisava ser alimentada, de quatro em quatro horas, por uma sonda estomacal; também precisava receber regularmente, pela mesma sonda, remédios destinados a evitar ataques epiléticos. Ela dormia num berço no quarto do casal, enquanto Roy e Judy se mantinham em vigília permanente. Mesmo assim, na primeira semana, Tiffany, ao remexer as pernas, prendeu os dedinhos do pé na sonda, que se deslocou. Roy e Judy tiveram de correr ao hospital para que o tubo fosse recolocado.
Apesar de assustadora, a rotina tinha suas compensações. Quando Roy colava o rosto de Tiffany no seu, ela se contorcia de prazer, e os olhos azul-esverdeados se iluminava. “Estão faiscando como diamantes, Tiffany”, dizia Roy. Havia uma forte ligação entre eles. Pouco depois do segundo aniversário de Tiffany, os Hutchison a adotaram.
Mas as pressões de cuidar da menina não diminuíram. Algum tempo depois, Roy e Judy se divorciaram, vendo-se diante de um dilema. O que seria melhor para Tiffany? Receber o tratamento médico que só uma família completa poderia oferecer? Ou o mais importante era a atenção individual? Roy acreditava nesta última hipótese. Não podia abrir mão de Tiffany. Em novembro de 1988, ele conseguiu a guarda da menina.
Como já não podia passar horas e horas de plantão na Emergência, Roy foi trabalhar como motorista de um caminhão de entregas. Sua vida girava em torno da filha: dava-lhe banho com esponja, administrava os remédios para evitar as crises e preparava a alimentação noturna, que às vezes chegava a durar oito horas. À medida que Tiffany foi crescendo, passou a leva-la a uma escola especial para crianças deficientes, além das freqüentes visitas ao médico.
Quando a trazia para casa à noite, ela ficava sentadinha em sua cadeira de rodas enquanto Roy preparava o jantar. ‘O que vamos comer hoje, Tiffany?’ perguntava em voz alta, brincando e acariciando-lhe o rosto. “Frango frito ou bife?’ a menina, que não podia comer nada, alimentava-se de afeição.
Às vezes, no meio da noite, Roy encontrava Tiffany arqueada para trás, com o corpo enrijecido por um ataque epilético. Ele então massageava-lhe as pernas e os braços até que o corpo voltasse a relaxar e ela adormecesse. Havia naquela menina, bem lá no fundo – Roy sentia isso – uma enorme vontade de viver. “Enquanto você lutar, meu bem”, dizia-lhe baixinho, “eu vou lutar com você.”
Tudo o que Roy fazia, Tiffany fazia também. Como ela não podia brincar, ele a fazia participar de suas atividades. Se ia ao cinema, a um restaurante, ao shopping, à igreja, ou mesmo se tinha um encontro com alguém, Tiffany ia junto. “Nós somos um pacote”, ia logo dizendo. Mas, mesmo assim, não eram todas as mulheres que entendiam. Uma vez, chegando à casa de Roy para comer uma pizza e assistir a um filme, uma mulher viu uma tabuleta na porta de um dos quartos. “Quarto de Tiffany”. Ela pensava que “a filha deficiente” morava numa instituição. “Acho que nosso encontro acaba por aqui”, disse a mulher a Roy.
Embora houvesse essa lacuna em sua vida, Roy vivia ocupado demais para se sentir sozinho. O emprego, os cuidados com a filha, o tempo que passava com os dois outros filhos e o trabalho que fazia com motocicletas preenchiam todo o seu tempo. Ao longo dos anos, Roy deixou a barba crescer e amarrou o cabelo castanho num rabo de cavalo, além de fazer várias tatuagens, daquelas que os motoqueiros usam. Até que, em 1992, comprou uma nova Harley-Davidson e a reformou com peças de metal cromado, a fim de participar de exposições de motos personalizadas.
À noite ele acomodava Tiffany na garagem, botava a toda altura a música favorita da menina e começava a trabalhar na motocicleta. Embora Tiffany quase não pudesse ouvir, Roy tinha descoberto que ela sentia a percussão. Ela detestava heavy metal, mas adorava as suaves vibrações da música country. Assim, Roy colocava sua cadeira de rodas num canto e conversava com ela sobre rodas de magnésio e freios a disco em meio à batida dos sucessos de Nashville.
No início de 1993, pai e filha levaram a enorme Harley preta, em cima de um trailer puxado por um caminhão, para sua primeira exposição de motocicletas, em Kansas City. Tiffany, que já estava com 8 anos, pareceu adorar o enorme auditório onde o ronco dos motores das motos era de estremecer. E deu mostras de grande excitação quando Roy a levou para passear na cadeira de rodas, mostrando-lhe as motos em exposição. A cada parada, os donos das máquinas, uns sujeitos barbudos, vestidos com jaquetas de couro, aproximavam-se para cumprimentar o pai e dizer “oi” à filha.
Roy ganhou um prêmio e logo se tornou assíduo nas exposições daquele tipo em todo o meio-oeste americano. O mesmo aconteceu com Tiffany – e com seus “tios”. Tudo começou em Kansas City, quando Roy não pode entrar com o caminhão no salão de exposições e teve de levar todo o equipamento carregando Tiffany, o que era complicado. “Roy, pode deixar que eu tomo conta dela”, ofereceu-se um motoqueiro.
Pelos anos afora Roy e Tiffany percorreram quase todos os estados americanos e nunca faltou quem ajudasse a tomar conta da menina. Quando os motoqueiros amigos de Roy iam visitá-los em casa, ela parecia reconhece-los. Percebia as passadas pesadas de suas botas e o toque suave daquelas mãos ásperas. Eles se autodenominavam seus “tios” – e havia montes deles. Na estrada, sua aparência era um tanto barra pesada – mesmo ameaçadora para algumas pessoas - , mas Tiffany era capaz de lhes derreter o coração. Por causa dela, alguns rodavam quilômetros extras a fim de participar de eventos em benefício de crianças deficientes.
O impacto de Tiffany na vida deles muitas vezes era sutil. Um “tio”, Bill Young, 56 anos, trabalhava como pintor na fábrica da Ford no Missouri. Magro e careca, de jeito rude e todo tatuado, Young trabalhava sete dias por semana para sustentar a mulher e os seis filhos. Mas, depois de observar Roy e Tiffany juntos, ele sentiu inveja. “Nunca amei meus filhos desse jeito”, admitiu. “Achava que amar era comprar tudo de que eles precisassem.” Inspirado em Roy, Bill passou a trabalhar menos horas por semana na fábrica e a ficar mais tempo com a família.
Entretanto, ainda faltava alguém na família Hutchison, alguém que não era nada fácil de encontrar. Até que, em 1999, Roy conheceu Eilene Brown, uma mulher alta e de fala mansa, divorciada e mãe de uma adolescente. No primeiro encontro, ela viajou 160 quilômetros na garupa da moto dele. Mas ainda havia um teste em que Eilene precisava passar: Tiffany.
Uma noite, a caminho de um restaurante, Roy acomodou Tiffany no assento do caminhão e deixou Eilene sentar-se entre eles. Numa curva, Eilene, meio indecisa, abraçou a menina para que não tombasse e Tiffany se aconchegou a ela. Olhando-as com o canto dos olhos, Roy ficou pensando que ali talvez estivesse a mulher de coração suficientemente generoso para acolher uma menininha doente.
Em pouco tempo, Eilene já estava usando jaqueta de couro e passeando na garupa de Roy nos fins de semana. Eles se casaram algumas semanas depois de Tiffany completar 15 anos.
Até então, o amor mantivera Tiffany viva por muito mais tempo do que os médicos haviam previsto. Mas a escoliose começava a pressionar os pulmões e o coração, e não havia como reverter isso. Ela precisou sair da escola e foi confinada em casa, presa a uma cama hospitalar.
Na segunda-feira anterior ao Dia dos Pais de 2000, os pulmões de Tiffany começaram a se encher de líquido. Ela ofegava com falta de ar quando Roy chegou em casa correndo. Mesmo com o oxigênio e todo o cuidado que ele lhe dedicou, passaram-se horas até que melhorasse.
Dia após dia Tiffany lutava para respirar. No domingo de manhã, Eilene deu a ela um relógio que havia comprado e embrulhado em papel brilhante. “Isso é para você dar ao papai pelo Dia dos Pais”, disse à menina. Mais tarde, naquela manhã, Roy encontrou Tiffany segurando com força seu presente. Por todo o dia e toda a noite ele permaneceu ao lado dela. “Prometi que ficaria com ela até o fim”, disse a Eilene.
Às 14h30 do dia seguinte, Tiffany ergueu fracamente a cabeça, parecendo olhar para Roy com uma expressão de ternura. “Está tudo bem, querida”, tranqüilizou-ª “Está na hora de você ir.”
Pouco depois, Tiffany afundou a cabeça no travesseiro. Seu rosto foi tomado por uma expressão de paz e ela parou de respirar. “Agora você não vai mais sentir dor, meu bem”, sussurrou Roy. ‘Chegou a sua vez de sorrir, cantar e brincar.”
“Venham de moto e com todas as roupas de couro”, disse Roy aos muitos amigos que quiseram ir ao funeral. Ele desejava que seu grupo de “tios e motoqueiros” se vestisse exatamente como Tiffany estava acostumada e gostava de vê-los.
Na manhã ensolarada do enterro, uma multidão de motoqueiros tomou a rua dos Hutchisons. Terminado o serviço fúnebre, uma guarda de honra de seis motocicletas foi à frente do cortejo, acompanhando Tiffany da capela até o túmulo simples, na colina do cemitério. Uma fila interminável de motos acompanhava o carro funerário.
Seguiram lentamente pela estrada sinuosa que cortava os campos, em meio ao trovejar dos motores – um som que Tiffany adorava. Aquilo foi um consolo para Roy, e ele se sentiu orgulhoso de repente. Nós somos vencedores, Tiffany, pensou. Nós conseguimos.
Com seu amor, ele lhe dera a vida. E, com sua vida, ela lhe dera o amor.

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