terça-feira, outubro 24

Um homem de outra época

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1971
Autora : May Sarton

Perley Cole era “de outra era, quando um operário tinha tempo, paciência e vontade de fazer um serviço perfeito...”

A princípio – parece incrível agora – nós mal percebemos sua presença na aldeia. Vimos luzes na velha casa no alto do morro, atrás do prédio abandonado da escola, e imaginamos que os veados não mais desceriam nas noites de outono para apanhar as frutas caídas lá no pomar. Alguém se instalara na casa, e isso é geralmente boa notícia. Não sabíamos quem era, nem por que estava ali.
Passaram-se vários meses até que encontrei Perley Cole no terreno baldio que era o estacionamento da aldeia. Apresentamo-nos uma ao outro, no meio das latas de lixo, e lembro-me que admirei o capricho com que ele pintara a sua velha caminhonete de entregas. E então, num dia de junho, a velha campainha de minha porta tocou imperiosamente... e lá estava ele.
Começou um longo discurso, que conseguiu parecer lacônico devido à maneira pela qual era pronunciado: “Sei que sou um velho – e há quem diga, um velho tolo – mas já trabalhei um bocado em fazendas aqui e ali, e pode ser que a senhora precise de ajuda. Ouça bem, eu não vou passar fome, e tenho muito o que fazer no meu canto, mas...”
A minha casa na fazenda, estilo século XVIII, com seus 14 hectares e meio de matas e de campinas, estava abandonada havia muitos anos quando para lá me mudei. Um milhão de coisas ainda estavam por fazer, e eu citei algumas.
“Um dia desses eu apareço”, disse Perley, e sumiu.
Foi a minha primeira experiência com as suas retiradas repentinas. Vi-o afastar-se – seus passos eram os passos largos e vagarosos do fazendeiro que consegue trabalhar de manhã à noite sem se cansar. E meditei sobre o rosto – magro, vincado, com a testa alta e o queixo comprido e firme, o nariz bem marcado, olhos tímidos e penetrantes. Por que teria ele se instalado aqui, entre nós?
“Sou um velho”, dissera ele – mas havia uma certa impetuosidade no seu tom, que significava claramente “um velho indomado”.
No intervalo entre o nosso encontro no estacionamento e a sua visita, muita coisa acontecera na propriedade dele. Não só tinha pintado a casa e reconstituído e retelhado o celeiro, mas também o campo em volta fora segado e as macieiras podadas. Canteiros de flores apareceram em volta das pedras de granito. O velho indomado era visivelmente um homem de muitas habilidades, e tinha padrões que estamos desacostumados de ver. É maravilhoso, numa aldeia remota como esta, quando lutamos para evitar que o mato tome conta, ver-se a restauração de um lugar abandonado. Renova o ânimo de todos nós.
Estaria ele falando sério quando apareceu? – perguntei a mim mesma. Será que eu o teria afastado, dando a impressão de estar demasiadamente ansiosa, ou de não estar suficientemente ansiosa? Pois eu já percebera que esse era um homem orgulhoso, suscetível e tímido.
E então, numa manhã bem cedo, fui acordada por um sussurro no campo entre a casa e o celeiro. Fui ver o que era, e lá estava Perley Cole, derrubando o mato.
Era a primeira vez que eu via um homem ceifando. Fiquei observando os movimentos largos, firmes e ritmados, e quantas vezes ele aprumava a foice para afia-la. Vi como ele a pegava, com um jeito desconfiado e carinhoso. Vi também que esse não seria um trabalho grosseiro e apressado e sim uma questão de capricho e de elegância.
Ali, triunfante, ele parecia um homem na plenitude da vida. Eu nunca teria adivinhado que ele tinha mais de 70 anos. Velho? Eu viria a descobrir que ele era capaz de fazer o dobro do trabalho de um homem de 30 anos.
Aos poucos, Perley foi moldando, podando e limpando o meu terreno. Aparou três arbustos que circundavam a pedra no meio do meu prado grande, e de repente toda aquela era uma paisagem em que se podia descansar a vista. Ele aumentou o “gramado”, incluindo nele o mato entre a casa e o celeiro, e replantou a grama da frente. Não queria saber do meu aparador elétrico. “Nem morto eu queria um desses monstros barulhentos”, informou-me. Por fim, eu me desfiz da máquina; não se oferece uma pianola a Paderewski.
Lentamente fomos descobrindo o caminho da amizade, ratificada com muitos copos de xerez, quando Perley largava o serviço, ao meio-dia. Ele bebe o xerez de um trago. A bebida desce e depois de um momento lá vem uma história: “Está aberta a sessão. Agora, preste atenção no que vou contar!”
Sento-me no banco da cozinha, tomo o meu xerez devagar e escuto. Já conheço muita coisa a respeito dele e do seu “passarinho”, como chama a esposa, Angie. Perley veio ao mundo pesando cinco quilos e berrando. Era o caçula de quatro irmãos, e não era o predileto. Aos 12 anos fugiu de casa, e foi trabalhar para um fazendeiro vizinho. “Eu não era do tipo de ficar atado às saias da minha mãe!” – contou-me com orgulho selvagem.
Ao completar 18 anos, ele sabia com quem haveria de casar-se. “Mas primeiro a gaiola e depois o passarinho”, disse ele; não pedira Angie em casamento até que pudesse oferecer-lhe uma casa, com quatro hectares de terra. “Não dei entrada nenhuma”, contou-me ele, para provar como era bom o seu crédito.
Nunca o ouvi dizer o que quer que fosse que não viesse bem do íntimo da sua experiência essencialmente solitária; e ele me ensinou muita coisa. Quando ele me diz que tenha paciência, eu obedeço, porque sei que ele aprendeu a sua própria paciência e o seu próprio ritmo no decorrer de uma vida longa. Eu tenho absorvido Perley como uma fonte primitiva e saudável, e ele tem alimentado, em mim, a poeta e a jardineira. O seu fraseado vigoroso me volta à memória como temas repetidos numa fuga musical. Um dos meus prediletos é este: “Ele entende tanto de lavoura quanto um ganso entende de Jesus.”
Quando vê que estou deprimida por algum motivo, ele não consola; ele diz: “A vida é como uma parede de pedra. É só deixar uma pedra começar a deslizar e você está frito!” Considero estimulante este conceito de vida.
Quando Perley chegou à porta de minha casa, ele poderia ser um fantasma de outra época, uma época em que o trabalhador tinha tempo, paciência e vontade de fazer um serviço perfeito, não pelo dinheiro, mas pelo amor próprio e pela dedicação ao trabalho em si. Neste ponto Perley surge aos meus olhos como modelo. Ao pensar na maneira como ele se ajoelha para aparar uma cerca, eu às vezes revejo pela quinta vez uma página de meus escritos, ao invés de me dar por satisfeita após a quarta revisão. A bem dizer, creio que quando ele está presente eu trabalho melhor. Lá está ele, nos bosques, cortando mato, e cá estou eu, à minha secretária, podando uma moita de palavras. É ao mesmo tempo uma camaradagem, curiosa e solitária, e uma inspiração.
Pouco a pouco, Perley tirou a minha propriedade do desmazelo e do caos, e lhe deu um pouco de beleza e de ordem. Mas, se muitas vezes ele se assemelha a um anjo da guarda, esse anjo tem duas faces, e uma delas é menos benévola. Ele é um “bom brigão” – vem dizer-me – como se eu não soubesse! Volta e meia acumula pressão, de um tipo ou de outro, e por fim explode, com raiva. Certa vez ele foi embora, e não apareceu durante dois dias, deixando um serviço pela metade. Telefonei para Angie: “Diga a ele que venha até cá, para me dar uma explicação.”
Ele realmente apareceu, e num vocabulário veemente e copioso, disse-me que eu arranjasse outro homem mais moço, que ele ia embora. Consegui, afinal, descobrir o que ele estava querendo dizer: dois dias antes, no fim do trabalho daquela manhã, eu havia dito: “Você já esta há muito tempo nesse trabalho, Perley.” Ele tomara a minha expressão, de receio que estivesse trabalhando em excesso, como se eu quisesse insinuar que ele estava trabalhando devagar e que era um velho, que não valia o dinheiro que eu lhe estava pagando! Estava aberta a sessão e eu fiquei ouvindo. Depois, convenci-o de que, se ele não voltasse, o sal perderia o sabor e nunca mais as coisas voltariam aos seus devidos lugares.
Estarei errada em acreditar que uma aldeia muito necessitada de cuidado fosse exatamente aquilo que Perley procurava? Nada lhe dava mais prazer do que observar um emaranhado de árvores mortas e de mato, e depois ajeita-lo. Ao contemplar o que, para a maioria de nós, pareceria uma tarefa impossível, ele começa a cantarolar, com a expectativa; seu rosto, muitas vezes duro no repouso, ilumina-se com a alegria da luta, com a alegria do artista.

Nota da redação: Perley Cole morreu em setembro de 1970. as recordações da Srta. Sarton parecem um testemunho adequado à beleza e à ordem que ele deixou na Terra.

Nenhum comentário: