segunda-feira, outubro 23

A súbita quietude

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1977
Autor : Gerald Moore

Quando uma filha única deixa a família, abre-se um vazio que jamais poderá ser preenchido.


As fotos que tirei naquele dia mostram uma garota alta, bonita e de cabelos pretos, debaixo de um velho bordo, no campus tranqüilo de uma universidade. A garota está sorrindo, mas, para os olhos experientes de um pai, há impaciência em seu sorriso. “Depressa, por favor”, diz ele, “e deixe-me ir.”
Minha filha Cathy entrou para a universidade quase em fins de 1976. sempre soubera que ela iria, mas Cathy partiu aos 16 anos, bem antes de me sentir preparado para entrega-la ao mundo. Alias, é a partida, e não propriamente a idade, o que obriga um pai a enfrentar o súbito vazio que um filho deixa atrás de si.
É claro que tive tempo de me preparar para a separação. Durante toda a primavera precedente e no verão, ajudei Cathy a preencher os papeis de inscrição e, juntos, experimentamos a mesma alegria quando ela soube que fora aceita.
Depois, estudamos o prospecto da universidade, discutindo cursos e condições – ela olhando para o futuro e eu para o passado. E, como a maioria dos pais, agradava-me, na época, sabe-la cheia de iniciativa e de desejo de independência.
De repente, sem que me encontrasse pronto para isso, estávamos no campus, examinando o quarto de Cathy, comprando pequenas coisas que tínhamos esquecido de trazer. Comemos com outros calouros acompanhados dos pais, cada família observando discretamente as outras para descobrir com que tipo de companhia iriam os filhos conviver. À medida que se aproximava a hora da despedida, notei que meu diálogo com Cathy se tornava mais formal. Quando a luz do dia começava a desaparecer, pedi-lhe que posasse para umas fotos. “Para os seus avós”, disse-lhe, não acrescentando e para mim.
Cathy gentilmente acedeu ao meu pedido, mas percebi que ficara embaraçada por ser levada a separar-se, por lhe ter lembrado que representava algo de especial para alguém; na verdade, desejava sentir-se livre naquele momento de começar a vida sozinha. Recordei-me, então, do meu próprio começo de carreira universitária e do constrangimento que tive quando minha mãe insistiu em que posasse para um retrato diante do meu novo dormitório. “Bem, meu filho”, dissera ela, “você é o primeiro de nós que vai para a universidade; por isso, quero um retrato para lembrar este dia.” Por mais privilegiado que me sentisse em estar indo para a universidade, aquele pedido não deixou de mortificar-me. Agora, Cathy continuava a tradição que eu comecei.
Na segunda-feira de manhã, enfrentando o vazio na cozinha, doeu-me o coração enquanto me dava conta de que talvez não voltasse a ver Cathy, meio adormecida, de pé junto do esquentador, a camisola voejando à volta do corpo. Esses breves momentos matinais de sossego nunca me pareceram especialmente importantes, mas agora compreendia que tinham sido parte da rotina diária, algo que eu passara a apreciar. Pelo andar de Cathy, por sua postura, pela maneira como levantava a cabeça, podia dizer se ela dormira bem, se estava feliz, se eu devia apertar ou afrouxar o controle de suas atividades noturnas. Isso tudo agora competia a ela mesma, assim como outros aspectos essenciais de uma vida bem vivida. Estaria eu pedindo muito... e cedo demais?
“Acho que você está sendo um pai nervoso”, disse Bridget, minha mulher, mais tarde nessa manhã. “Quantas vezes Cathy realmente o decepcionou?”
“Poucas”, tive de admitir. “Muito poucas.”
A pergunta de Bridget fez-me recordar um fim de tarde, logo após Cathy ter completado 14 anos, quando me vi diante de sua primeira insistência em uma extravagância própria de um adulto.
Ao chegar do colégio, entrou na cozinha e disse: “Papai, vamos dar uma volta?”
O convite não me surpreendeu. Muitas vezes já havíamos resolvido problemas enquanto perambulávamos pelas colinas das redondezas. Antes de sair, meti um maço de cigarros no bolso.
Fomos caminhando por uma velha mata de pinheiros, sobre um leito macio de agulhas, e chegamos até uma pedra sobranceira a um riacho. Ali nos sentamos e continuamos a conversar, enquanto eu esperava que ela dissesse o que tinha em mente. Bruscamente, seus olhos encheram-se de lágrimas. “Sei que isso vai magoar você”, disse de repente. “Comecei a fumar.”
Realmente doeu. Eu era um fumante e odiava esse fato. Estava certo de que ela seguira meu exemplo, apesar de meus sermões sobre os malefícios do fumo. Chegara a acreditar que havia conseguido fazer-lhe compreender a diferença entre os exemplos positivos que um pai pode dar a suas falhas de comportamento.
“Chathy”, comecei. “Deus lhe deu um corpo magnífico. Você é forte, pode correr depressa e pular alto. Como é que você pode maltratar um corpo assim?”
Mais lágrimas. Então, pareceu-me ouvir minha própria voz, meu próprio fracasso repetido diante de mim. “Não sei”, disse ela. “Não consigo evitar.”
Subitamente, senti raiva. Lembrei-me dela, garotinha ainda, partindo meus cigarros ao meio e recitando anúncios contra o fumo.
“Um minuto menos de vida!”, costumava apregoar. Deixava-me doutrinar desse jeito, na esperança de que ela não cairia no tremendo hábito que já então eu vinha tentando vencer. Comecei a imaginar uma forma de influenciá-la para que deixasse de fumar. Não acreditava que uma atitude de indignação teria sucesso onde a razão falhara. Sabia também que minha própria credibilidade no assunto era nula, pois não conseguira dominar-me a mim mesmo.
“Cathy”, expliquei finalmente. “Gosto de você. Detesto pensar que está fumando. Hei de esperar sempre que você pare.”
Ela deitou a cabeça no meu colo, ainda lavada em pranto, e disse: “Sinto muito, papai.”

Cathy já estava na universidade há mais ou menos um mês quando Bridget e eu fomos visitá-la e a levamos para almoçar. Íamos pela estrada principal e, em dado momento, vimos duas garotas muito atraentes pedindo carona. Filhas dos outros, pensei.
“Pare!”, berrou Cathy do banco de trás. “É a Karen e a Amy.” As duas entraram no carro e nós as deixamos depois no lugar que indicaram. Mais tarde, já instalados para o almoço, formulei minha suspeita.
“Você já andou pedindo carona com Karen e Amy?”, perguntei.
“Já, sim. Uma vez andei”, foi a resposta brusca de Cathy.
“Você gostou?”
“Não”, disse ela. “Apanhamos um bruto susto.”
“Que aconteceu?”
“Apenas um bruto susto. Bruto mesmo.”
Bridget cutucou-me, disfarçadamente por baixo da mesa. “Como o susto que a gente pode sentir num rodeio”, disse ela. Referia-se a um caso que só lhe havia contado há uma semana.
Quando eu tinha 15 anos, convenci meus pais a deixarem-me assistir a um rodeio no estado de Novo México, onde vivíamos na época. A chuva nesse dia enlameara a arena, e o show foi cancelado. Vaqueiros sedentos invadiram o bar local, para aproveitar o dinheiro recuperado das entradas. Naturalmente, meus dois amigos e eu estávamos lá também. Eu tinha até conseguido comprar uma cerveja, embora me faltassem uns anos para poder fazê-lo legalmente. Quase de repente, estourou uma briga perto de mim. Um homem levou uns cortes com uma garrafa quebrada e o sangue espirrou na minha camisa branca. Meus amigos e eu corremos para a porta.
Chegamos em casa bastante tarde. Eu estava exausto, inteiramente arrebentado de emoção e medo. Sem refletir, despi-me e adormeci.
De manhã bem cedo, fui acordado bruscamente. Mamãe me sacudia. “Gerald! Gerald!”, dizia ela engasgada. “Você está bem?” Olhei seu rosto pálido e vi a camisa ensangüentada que ela tinha nas mãos.
“Estou bem, mamãe. Palavra! Houve uma briga, mas não foi comigo.”
Ela puxou o cobertor e viu que eu não estava ferido. Então, fez algo que sempre considerei espantoso. Olhou-me transtornada, levantou a camisa cheia de horríveis manchas de sangue, olhou outra vez para mim... e saiu do quarto. Nunca mais voltou a falar nisso.
Anos mais tarde, perguntei-lhe sobre o caso.
“Acho que preferi não saber detalhes”, disse-me. “Deve ter sido nessa altura que compreendi como é arrasante a tarefa de criar um filho. Às vezes, você chegava perto de mim e eu tentava consertar os danos que você poderia ter sofrido; depois esforçava-me por incutir-lhe um pouco de caráter – e você ia outra vez embora. Tudo o que eu podia fazer era esperar que minha influência tivesse sido boa. Já era grande o medo, mesmo desconhecendo os detalhes.”
Com a lembrança vívida dessas palavras na mente, olhei para Cathy do outro lado da mesa. “Você pretende pedir carona de novo?”, perguntei.
“Nunca!”, veio a resposta enfática.
Nessa noite, telefonei a minha mãe para partilhar com ela aquela experiência paralela de pai. Ouviu-me atentamente e disse: “Sei que você às vezes considera meus ditos um bocado bobos, mas penso que os filhos podem ser como as peônias: tem que apanhar um pouco de frio antes de darem flor.”
“Talvez”, disse eu, “mas esse mesmo frio mata flores mais delicadas.”
“Pensei”, retrucou ela, “que estávamos criando peônias.” A seguir, acrescentou: “Mas, meu filho, não é fácil ficar indiferente. Você verá o que quero dizer.”
Na tarde seguinte, eu estava no jardim varrendo as folhas quando ouvi o ônibus do colégio se aproximar. Durante anos tive o costume de ir até o pátio no fim do dia, e, geralmente estala lá ao chegar o ônibus, com Cathy. Ficava observando Sam, nosso cão preto, peludo, que corria pela estrada e parava precipitadamente junto à porta do ônibus. Ali esperava cheio de ansiedade, com a cauda abanando furiosamente, até que Cathy descesse.
Nesse dia, o ônibus parou e Sam continuou na varanda, em seu canto predileto, ao sol. Levantou a cabeça em expectativa, mas não se mexeu. Observou cada criança que descia do ônibus e depois, lentamente, pôs outra vez a cabeça entre as patas. Na hora do jantar, contei a Bridget que Sam tinha desistido de ir ao encontro do ônibus do colégio. “Eu sei”, disse ela. “Coitado do Sam.”
De noite, com Sam enrolado a meus pés, comecei a compreender o que minha mãe queria dizer. Tornar-se indiferente, deixa-los partir, é de fato muito mais complicado que eu tinha imaginado.

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