quinta-feira, outubro 12

aquilo me mudou por completo

Fonte : Revista seleções
Data : Dezembro de 1983
Autor : Ray Bradbury

Um toque de um mágico acendeu em mim uma centelha de criatividade.

Desde os meus seis anos de idade, os mágicos e seus truques vem enxameando minha vida, enchendo-me daquelas alegrias e arrebatamentos que levam os garotos a se perderem eternamente nos labirintos da sua própria fabricação.
Mas deixe que eu lhe fale sobre o maior deles, em termos de influência sobre a minha vida. Não foi Blackstone, Houdine nem Thurston. Não: foi um mágico que integrava uma troupe mambembe de saltimbancos ( intitulada Dill Brothers Combined Traveling shows), que apareceu pela primeira vez em Waukegan, Illinois, lá pelos fins da década de 1920. Era o “Mister Electrico”.
Mr. Electrico. Os Irmãos Dill não sabiam do prodígio que possuíam viajando com eles. A meu ver, todos os anos, quando a troupe desembarcava dos decrépitos caminhões às 5:00 da madrugada, os donos estavam com caras chateadíssimas. Davam também a impressão de estarem depauperados por algo que emanava do seu hálito e que já naquela hora cheirava a pecado. De qualquer maneira, eu ia até lá e ajudava a armar as barracas, levava recados e arranjava entradas gratuitas para assistir ao meu doido predileto, Mr. Electrico.
É impossível superar um nome como este. Ele significa poder. Significa tempestades e incêndios no céu. Um homem chamado Electrico, ora... tem de saber tudo, não tem? Além disso, deve poder realizar o que bem entender.
O que ele fazia era sentar-se numa cadeira elétrica, enquanto seu ajudante gritava: “Aí vão 10 milhões de volts de fogo puro, 10 milhões de raios elétricos, para dentro da carne de Mr. Electrico!”
Ligavam um interruptor. O fogo saltava para o rosto magro, o nariz aquilino e os olhos subitamente iluminados. O cabelo branco se eriçava em mil direções, atiçando o pânico e o delírios dos espectadores. O fogo se contorcia em seus ouvidos. Havia chamas dançando nas narinas. Uma luz azul coriscava pelos dentes dele.
Nós, garotos, dávamos gritos de alegria.
Em seguida, Mr. Electrico pegava numa espada e a brandia no ar, onde ela tremia com uma chama azul e gotejava faíscas. Então, ele se estirava para frente e tocava de leve no ombro de um menino, ou no braço de uma menina. Quando eu tinha 12 anos, ele se aproximou de mim e, Deus do Céu, me deu uma atenção ultra-especial, pois já me via por ali zanzando há anos.
Então, lembrei-me da primeira vez em que havia visto um cartaz anunciando o Grande Blackstone serrando uma moça em três pedaços. Atordoado com aquilo, eu, garoto de nove anos, dei um passo atrás e caí, estilhaçando a vidraça de uma barbearia. Por um milagre não houve pescoços cortados nem ossos partidos. Recordei minhas perambulações pelas bibliotecas, absorvendo segredos egípcios, blasonando truques indianos com cordas, aos nove, dez, onze anos. Todos os mistérios, desde o meu nascimento até aquele momento, e também os futuros, se ordenaram numa interminável fileira, mas não era eu quem os controlava. Quem sabe se com a magia eu seria capaz de domina-los?
Mr. Electrico puxou a espada em chamas. Tocou-me no ombro direito, no esquerdo, depois, suavemente, na testa e na ponta do nariz. Senti tempestades tinindo nos meus tímpanos, o fogo azul tomando conta do meu cérebro, descendo pelos braços e saindo pelas pontas dos dedos como se fossem fontes de eletricidade. Vi o relâmpago cair com força diante dos meus olhos. Meu Deus, foi lindo! Fechei-os e tentei captar e prender nas mãos todo o seu esplendor.
Depois, abri-os e vi Mr. Electrico mexer com os lábios, condecorando-me com a mais alta das honrarias, dizendo a coisa mais maravilhosa que qualquer homem poderia dizer a um menino: Viva para sempre.
Então o papa da eletricidade, o monarca dos relâmpagos, o sacerdote das tempestades, afastou sua espada.
Mas eu estava mudado para o resto da vida. Vou crescer, pensei comigo mesmo, e ficar igualzinho a ele. Vou ser o maior mágico que já caminhou pelo mundo. O s fogos azuis se apagaram.. a cadeira elétrica foi desligada. Mas a magia me fora passada.
Algum tempo depois fui procurar Mr. Electrico por trás das barracas. Minha desculpa era um kit de mágica que eu tinha comprado ali no parque de diversões na véspera e não estava funcionando. Mr. Electrico, devidamente indignado, me arranjou outro, novo. Quando me viu olhando para a cadeira elétrica, deixou que eu a tocasse. Seguimos caminhando pelo mafuá. Vi um pigmeu, um anão, os trapezistas, o gigante, o homem tatuado. Antes de entrar em cada uma das tendas, Mr. Electrico gritava para os ocupantes: “Calma aí com os palavrões. Estou aqui com um jovem”
À nossa entrada a linguagem se depurava.
Antes de nos despedirmos, ele me deu mais dois presentes. O primeiro havia sido o fogo na cadeira; o segundo, um truque com uma bolinha e uma xícara. Ainda tenho isso guardado.
O terceiro presente foi o mais incrível. Ele já me dera o futuro. Desta vez dava-me o passado. Contou-me que eu já tinha vivido anteriormente e morrido. No campo de batalha de Argonne, na França, ele havia segurando nos braços o outro Ray Bradbury e presenciado sua morte. Agora, espiando para fora em meus olhos, ele estava vendo aquele homem que tinha partido deste mundo dois anos antes do meu nascimento.
Bem, você pode imaginar a revelação que isto foi, para uma criança de 12 anos. Que dia, que semana! Cadeiras elétricas, espadas flamejantes, presentes dados e recebidos, e mais... a imortalidade!
Torneira aberta. Voltei para casa e pouco depois comecei a escrever. Meus pais me haviam dado de festas uma máquina de brinquedo, e eu a bombardeei com uma saraivada de palavras. Sempre que quisesse, eu conseguiria abrir uma torneira em cada dedo e deixar escoar os milagres, sim, para as máquinas e para o papel, onde eu os congelaria e controlaria para sempre. Desde então, não parei mais.
As mágicas de Blackstone, de Holdini e de Mr. Electrico acompanham a minha vida como duendes, juntamente com a magia de outros, como Julio Verne, que idealizou um submarino onde eu pudesse mergulhar; H. G. Wells, que competiu comigo numa corrida até a Lua; e Shakespeare, que soube preencher silêncios quando os ouvia.
Continuo abrindo as torneiras das minhas mãos. Mentalmente eu ligo o interruptor e proclamo: “Aí vão 10 milhões de volts de eletricidade!” E lá vem eles, percorrendo todo o meu corpo: o fogo e a luz de Mr. Electrico, as nebulosas e os alumbramentos dele, sua energia e sóis explosivos. Tudo isto brota dos meus dedos... apaga-se no papel--- gera histórias. Interrompe o milagre durante o tempo necessário para decifra-lo. Represa a energia até transforma-la em palavras.
Viva eternamente!
Ou, de qualquer forma, até 50 anos após a minha morte. O que acontecer primeiro.

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