quarta-feira, outubro 11

A sopa das mil e uma delícias

Fonte : Revista Seleções
Data : junho de 1978
Autor : Lam Wo Lap

Parece incrível que um prato tão delicioso, digno dos mais finos banquetes, tenha como principal ingrediente partes de um dos mais odiados animais da Terra.

Toda vez que servem sopa de barbatanas de tubarão, minha boca se enche de água. Para começar, aqueles filamentos longos e gelatinosos exalam um aroma adorável na sopeira borbulhante. Depois, eu os provo, e cada uma de minhas papilas gustativas vibra de prazer. Uma pergunta surgiu então: como foi que as barbatanas do odioso assassino que é o tubarão entraram nessa sopa que me serviram?
A pesquisa que fiz sobre isso teve início numa manhã de fevereiro em Aberdeen, Hong Kong, quando encontrei Chung, “o grande Dragão”, velho pescador de Hoklo. Chung, homem de 51 anos mas com o rosto já todo enrugado, e seu irmão, Da Hu, de 47, são a terceira geração de pescadores de esqualos em sua família. São donos de um dos cerca de 15 juncos de Hiklo especializados na pesca desse animal que trabalham na plataforma continental da costa meridional da China, da ilha de St. John a Shanwei. Durante o ano inteiro, Chung, o irmão e uma equipagem de seis homens singram com seu junco de fundo redondo e 15m de comprimento aquelas águas de 37m a 73m de profundidade.
Nesta bela manhã de inverno, Chung vai fundear ao largo da costa de Kang Kau, a 80km de Hong Kong. A seu ver, seria uma sorte conseguir nessa saída capturar uns 20 tubarões e uma boa quantidade de peixes de outras variedades. O problema é que, com o excesso de pesca na região, o tamanho dos tubarões e seu número vem decrescendo ano a ano. “Nossa pesca depende muito da sorte”, me conta ele, “Porque os tubarões não param de se mover de uma região para outra em busca de comida, de temperatura apropriada e de bons locais para se reproduzirem.” Não quis me levar no junco porque, segundo ele, quem não é pescador atrapalha. Disse adeus a mim e à sua família, que se mudara para a embarcação de um parente (o junco de Chung é também sua casa quando ele está no porto).
Às três da madrugada do primeiro dia (contou-me ele mais tarde), todos no barco se levantaram, a fim de preparar e por as iscas nas linhas à luz mortiça de lâmpadas de querosene. A técnica de pesca de que se utilizam (chamada linhada de fundo) necessita de 40 linhas de nylon juntas, perfazendo uma incrível extensão total de 21.840m. nos anzóis de aço de 1.200 linhas de pesca prendem pedaços de peixes (variedades de congro e cavala), num total de cerca de 260kg, e tais iscas se espalham em intervalos regulares, pendendo de uma longa linha-mestra. O pesado aparelho completo, que lembra uma centopéia gigante, recebe de lastro 41 pedras de 1,8kg a 4kg cada. Além disso, prendem-se à linha-mestra 11 bóias com bandeirinhas para permitir a Chung seguir a trajetória desse dispositivo mortal. Leva quase duas horas a operação de baixar as linhas na água, e não foi sem motivo que, depois de terminada esta, a primeira bóia estava a mais de 22km do barco.
O sentido do olfato entre os tubarões é espantoso, sendo eles capazes de seguir um odor por muitos quilômetros no oceano. Duas horas depois de a linha-mestra ter sido esticada, as bóias começaram a mergulhar e a reaparecer. Chung tinha dado bastante tempo para que os tubarões mordessem as iscas, mas, a partir de então, a tripulação por turnos começou a recolher o aparelho para bordo.
À uma da tarde, apareceu o primeiro tubarão – um bichão de mais de 2m de comprimento, com pontinhos brancos brilhantes nas pontas das barbatanas. Para evitar que o forte animal rompesse a linha, Da Hu muniu-se de um longo gancho de madeira e ferro muito afiado, debruçou-se para fora do junco e arpoou a mandíbula do esqualo. Aturdido, o lutador deixou-se içar sem problemas e foi atirado pela tripulação ao convés.
Mal retornaram a respiração, outro tubarão (este de 2,5m de comprimento e barbatanas negras) veio à tona, ziguezagueando histericamente na tentativa de partir a linha. Levou dez minutos para dois homens do grupo conseguirem traze-lo para bordo.
Às cindo da tarde, um enorme tubarão-tigre que pesava quase 60kg se fez anunciar com estardalhaço, saltando e salpicando água dentro do junco. Sangrava muito, aquele monstro de 4m, mas resistiu 15 minutos, e foram precisos três homens para arrasta-lo ao convés.
Conseguiram apanhar 25 tubarões em dois dias, num total de 900kg, e com isso as iscas acabaram. Passados quatro dias, desde que partira, Chung estava de volta ao mercado de peixe de Alberdeen, em Hong Kong.
“Tivemos sorte desta vez”, contou-me ele, enquanto todos se empenhavam em cortar fora as barbatanas dos animais. “Juntos vamos ganhar uns bons dólares com isso. Do lucro, 40% são meus e de meu irmão: o resto dos homens fica com 10% cada um. O problema é a gente não poder sair mais de cinco vezes por mês, pois é comum o mar ficar agitado e o tempo mudar.”
A carne de tubarão é relativamente barata, mas um simples lote de barbatanas de tamanho médio pode alcançar o equivalente a três dólares o quilo. Pouco depois que o junco de Chung descarregou o pescado no mercado, So Sun-lai, de 54 anos, veterano caçador de tubarões que também é dono de uma fábrica de beneficiamento, comprou todas as barbatanas.
Há 15 anos ele trabalha nisso em Hong Kong. No interior das modestas instalações de sua fabriqueta (37m²), observei operários curvados sobre uma espécie de bacias grandes e compridas, limpando as barbatanas da areia e outras impurezas. “A preparação das barbatanas dá um trabalho imenso”, contou-me So, enquanto me apontava fileiras e fileiras de barbatanas penduradas nas janelas. Elas são fervidas durante hora e meia, e depois ficam de molho em água fria. Com as mãos e pinças de precisão, tira-se cuidadosamente tudo o que for areia e outros materiais estranhos, além das cartilagens e peles. Em seguida, as barbatanas são arrumadas em fileiras sobre esteiras finas de bambu, repetindo-se o processo da água fervente e fria por dez horas ou mais, até que fiquem livres de tudo que for indesejável, tornando-as limpas, sem cheiro e tomando uma coloração branco-amarelada.
Lavadas e catadas, as barbatanas são postas a secar ao sol durante um mês ou mais, em geral no telhados das fábricas, depois do que podem ser guardadas durante anos.
Mas por que tanto esforço?
Ninguém sabe quem comeu barbatanas pela primeira vez. No século XVI, o célebre herbanário Li Shih-chen anotou em sua Pharmacopceia: “As barbatanas de tubarão são deliciosas.” Na verdade, elas não passam de uma substância gelatinosa e insípida que só apresenta sabor quando fervida num caldo rico. Muitas reputações de cozinheiros se fizeram ou foram por água abaixo com essas sopas.
O preparo dessa iguaria, para que ela possa deliciar o paladar dos gourmets de verdade, é um processo longo e aborrecido. Antes que tudo, as barbatanas já beneficiadas devem ser postas a cozer em fogo lento por quatro horas; depois são deixadas de molho em água fria uma noite inteira, para que fiquem macias; no dia seguinte, são de novo postas em fogo lento por mais quatro horas e, por fim, fervidas em água em que se metem cebolas verdes, raiz de gengibre e vinho, ficando assim meia hora, para se libertarem por completo de quaisquer matéria estranhas e perderem o cheiro de peixe. Só então é que ficam prontas para a sopa.
“Fazer um caldo de superior qualidade é condição sine qua non para se conseguir uma boa terrina de sopa de barbatanas de tubarão”, afirma Chang Wing, antigo professor de culinária chinesa e autor do livro 30 anos de Experiência na Cozinha, um best-seller. “Para fazer 1,2 litro de caldo, ponha numa panela de barro 6720g de carne de porco magra, 360g de carne de galinha e 120g de presunto em 1,6 litro de água, e coza tudo em fogo lento. Uma vez preparado o caldo rico, adicione-lhe 400g de barbatanas já preparadas.”
A receita de outro famoso mestre-cuca, Wu Luan, recomenda que se acrescentem coxinhas de galinha e mocotó de porco durante a feitura do caldo “com o fim de suplementar a textura gelatinosa das barbatanas, preservando sua característica tonalidade dourada”. É preciso controlar cuidadosamente a intensidade do calor, para evitar que as barbatanas se desintegrem. O que se consegue com esse processo é algo que só se poderia denominar de alquimia culinária. “Mil sabores aparecem quando se degustam alguns filamentos cor de ouro de barbatanas de tubarão. Hálitos etéreos de inumeráveis perfumes percorrem a boca e o estômago, fazendo fremir a menor célula de nosso corpo”, descreve Wu, mestre no assunto há mais de 40 anos. “Provar uma terrina de barbatanas é fazer que nosso corpo seja varrido por uma corrente fumegante de energia”, acrescenta Chan Wing, que come barbatanas todos os dias.
Talvez ele tenha razão. “Faz pouco tempo, pedi ao cozinheiro de um famoso restaurante chinês de Hong Kong que me preparasse duas terrinas de sopa de barbatanas de tubarão segundo duas receitas de Yuan Mei, célebre gastrônomo chinês (1715-1797). Uma dizia: “Cozer as barbatanas em fogo lento num bol caldo feito com presunto e carne de galinha, adicionando brotos tenros de bambu e açúcar cristal.” As barbatanas, assim meticulosamente cozidas, não apenas impregnaram do melhor gosto do mundo as carnes e vegetais, mas ainda ganharam, em troca, algo de superior. A outra terrina foi feita com a segunda receita, que recomendava: “Use apenas um caldo de galinha apurado, em que se tenham posto tiras de rabanete misturadas com os filamentos das barbatanas.”
Ao prova-la, vi-me transportado para outro mundo. Parecia-me ouvir e sentir o balanço do junco de Chung singrando os mares, ver mãos habilidosas atirando as linhas e apreciar a aparição do eternamente esquivo e rapinante tubarão em suas andanças pelos oceanos.
Foi uma experiência inesquecível.

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