quarta-feira, outubro 18

"Culto da carga" no Pacífico Sul

fonte : Revista Seleções
data : Setembro de 1971
autor : Ben Lucien Burman

Uma lenda dos negros do Pacífico Sul criou agora uma estranha religião nas ilhas da Melanésia.

O avião deu um mergulho violento. Voávamos às cegas entre nuvens negras de tempestade que ocultavam o Mar de Bismarck. O australiano de tez fortemente bronzeada sentado ao meu lado, médico do governo a caminho de um novo posto, apertou o cinto.
“Não se pode misturar a Idade da Pedra e a era espacial sem criar complicações”, disse ele. “O senhor descobrirá isso antes de passar uma semana nessas ilhas da Melanésia.”
Uma resga de verde apareceu momentaneamente através de uma abertura na nuvem. O médico continuou.
“Embaixo de nós está um exemplo perfeito do que estou dizendo. É a ilha de Nova Hanover. Os nativos desta ilha querem comprar o presidente ianque.”
O homem magro e louro da poltrona ao lado, um engenheiro inglês com longa residência nas ilhas, confirmou com a cabeça.
“Isso faz parte da crença chamada ‘Culto da Carga’, que predomina em toda esta parte negra do Pacífico Sul”, disse ele. “É uma coisa tão doida que chega a ser incrível, mas infelizmente é verdadeira.”
O médico entregou sua xícara de chá vazia à aeromoça que passava.
“Essa loucura começou quando chegaram os primeiros europeus. Vendo as maravilhas trazidas pelos recém-chegados, os nativos, que ainda viviam na Idade da Pedra, pensaram que era mágica. Como tudo aquilo vinha em navios e era chamado de carga, tudo o que pertencia ao homem branco passou a ser conhecido Por esse nome. E foi assim que nasceu a nova religião da Carga.”
O inglês tomou a palavra.
“Vocês americanos também entraram na história, e de maneira muito curiosa. Na antiga religião dos negros havia a lenda de que seus antepassados, um dia transformados em brancos, voltariam com toda sorte de novidades milagrosas que distribuiriam grátis aos habitantes das ilhas. Os europeus tentavam explicar-lhes que essas coisas só podiam ser obtidas a custa de muito trabalho, mas os nativos não acreditavam.”
“Depois vieram a Segunda Guerra Mundial e os americanos com centenas de navios cheios de suprimentos. Boa parte do que eles levavam deram aos nativos para conquistar-lhes a boa vontade ou recompensa-los por serviços prestados. Quando terminou a guerra, os americanos deixaram montes de coisas nas praias. E agora não há quem possa convencer os negros de que a lenda não é verdadeira.”
O avião começou a baixar e eu espichei o pescoço para dar uma última olhada a Nova Hanover, que ia ficando para trás.
“Esse negócio de quererem comprar o presidente foi resultado direto da guerra”, disse o médico. “Chegou a época de recolher o diminuto imposto que os nativos pagam todos os anos, e as autoridades verificaram que o dinheiro não estava entrando como de costume. Investigaram o caso, e com assombro descobriram a razão. Os nativos estavam economizando para comprar o presidente americano.
“Afinal de contas”, continuou o médico, “a idéia era perfeitamente lógica. Os Estados Unidos eram o pais mais rico do mundo, e sendo o presidente o seu chefe, ele era o homem indicado para lhes dar Carga.”
Um dia, há alguns anos, chegou ma remessa de motores de popa Johnson, adquiridos pelo governo das ilhas. Os nativos haviam ouvido que um homem chamado Johnson era o presidente. Quando as autoridades recusaram-se a entregar-lhes os motores, ele protestaram violentamente. Estavam certos de que os motores eram parte da Carga que o presidente Johnson lhes tinha mandado.
“Antes da guerra houve um incidente parecido com esse dos motores”, disse o engenheiro. “Um líder nativo chamado Batari iniciou um culto de carga que conquistou milhares de adeptos. Por esse tempo chegou um grande carregamento de caixas com a indicação ‘Battey’(bateria, ou pilha, em inglês). Batari ficou furioso com os brancos que não lhe quiseram dar as caixas. Quem não via que elas eram propriedade dele, enviadas pelos deuses dos seus antepassados?”
Minutos depois pousamos no aeroporto de Kavieng, na costa verdejante da Nova Irlanda. Novos passageiros embarcaram – rudes mercadores recém-saídos de algum navio de cabotagem, missionários em licença com suas famílias, agricultores que iam fiscalizar suas colheitas de cacau ou copra. Logo decolamos novamente. A água embaixo de nós era um espelho iridescente coalhado de jóias verdes, os famosos atóis do Pacífico Sul. Surgiu um grande vulcão desprendendo um fio de fumaça. Nas suas imediações espalhavam-se as edificações de uma vasta cidade, cintilando ao sol claro. Era Rabaul, na Ilha de Nova Bretanha, não longe de Bougainville e a umas seis horas de vôo de Guadalcanal, nas Ilhas Salomão, teatro de sangrentas lutas na Segunda Guerra Mundial. Aterrissamos.
Um fazendeiro que eu conhecera no avião conduziu-me no seu carro pelas ruas cheias de negros de cabelo crespo que usavam coloridas tangas chamadas lava-lavas. Acompanhava-nos um técnico da escola de agronomia local, que me apontou os magníficos hospitais australianos, num esforço hercúleo para incutir o espírito da autonomia de governo àquela população primitiva.
“A Carga é a velha filosofia dos deserdados da sorte. Essas escolas e os rapazes que nelas se formam e iniciam uma plantação ou algum outro negócio por conta própria são o melhor remédio”, disse o agrônomo. “Mas os outros são um terrível problema. Há pouco tempo os habitantes de uma aldeia aqui perto destruíram todas as plantações, mataram todos os porcos e queimaram as casas. Estavam convencidos de que, se mostrassem desse modo a sua fé na Carga, os deuses lhes mandariam 100 vezes mais.”
“O Culto da Carga”, emendou o fazendeiro, “faz irrupções aqui com a mesma regularidade com que um australiano toma a sua cerveja das cinco.”
Ainda ontem ouvi a história mais recente, que se está espalhando como fogo no matagal. Segundo essa história, num dia desta semana centenas de aviões americanos deixarão cair ovos enormes na casa de cada indígena de Rabaul. Cada um desses ovos se abrirá e soltará um pelotão de soldados americanos carregados de latas de conservas, máquinas de lavar roupa e carros novos.
Nessa noite jantamos com um grupo de líderes indígenas da ilha, homens sérios e solenes, alguns dos quais falavam excelente inglês, outros apenas pidgin, essa curiosa língua tão disseminada no Pacífico Sul. O homem sentado ao meu lado, escultural figura preta com uma cabeleira que se elevava uns 25 centímetros acima da cabeça, falou em tom pesaroso.
“A Carga é uma das tristes ilusões do meu povo”, disse ele. “Na Ilha de Manus eles enrolaram todo o dinheiro em cartuchos de papel e os plantaram. Pensavam que os cartuchos dariam dinheiro, como de uma batata nasce uma batateira.”.
“Não muito longe daqui”, disse outro convidado, “levamos semanas tentando persuadir o povo a construir uma escola. Mas sempre respondiam que estavam muito ocupados. Estavam levantando um vasto armazém para receber carga.”
No dia seguinte voamos para Port Moresby, capital do Território de Papuásia e Nova Guiné, a enorme ilha que é uma das últimas regiões selvagens do globo. Por toda parte vagueavam ociosamente indígenas cuja tez variava do preto reluzente ao moreno-claro, alguns com esquisitas tatuagens no peito. Em toda parte havia estranhas mesclas do antigo e do novo. No ultramoderno palácio do parlamento falaram-me de um candidato recentemente derrotado, cuja única promessa eleitoral fora converter em realidade os milagres da Carga para todos os homens, mulheres e crianças da Nova Guiné.
Dirigi-me para a fronteira da antiga Nova Guiné Holandesa, agora sob controle da Indonésia. Chegando a Wewak, que fina na Nova Guiné Australiana, transferi-me para um pequenino avião em que só iam o piloto e Colin, funcionário do governo em giro de inspeção.
“Para quem ao é daqui deve ser difícil compreender a Carga. Nós, que vivemos nesta terra, acabamos por aceita-la e até por contar com ela”, disse Colin.
Voamos sobre um amplo vale cortado por um rio sinuoso e lamacento, e pousamos numa pista perto de um minúsculo povoado. O inspetor do distrito era um moço de uns 24 anos e que, com uma meia dúzia de policiais nativos, era o único representante da lei para 10.000 negros, muitos dos quais talvez fossem ainda canibais.
“O Culto da Carga assumiu aqui uma forma estranha”, disse ele enquanto nos servia o chá. “Alguns homens estiveram em Wewak e viram refrigeradores. Na volta fizeram imitações de refrigeradores com sobras de madeira trazida de avião e as ligaram com cipós para servirem de fios elétricos. Depois sentaram-se diante da sua obra, rezaram aos seus antepassados e ficaram esperando o milagre. Estavam certos de que, se rezassem com fé, a madeira se transformaria em metal, os motores apareceriam e eles só teriam de abrir as portas e tirar o sorvete e os refrigerantes que desejassem, como faziam os brancos de Wewak.”
Ao amanhecer partimos num aviãozinho, transpondo picos inóspitos e a densa selva do planalto ocidental, vasta região ainda há 30 e poucos anos desconhecida dos europeus.
“O Culto da Carga não chegou a pegar aqui como na costa”, disse Colin, “provavelmente porque os indígenas quase não tem contato com os brancos. Mas aparece aqui e ali.”
Estamos a uns 240 quilômetros em linha reta da costa marítima mais próxima, e de permeio há uma cadeia de montanhas de 4.000 metros de altura. Entretanto já vi aqui uma enorme doca construída pelos nativos para os navios transoceânicos atracarem com carga. Em outro lugar vi uma pista de pouso feita segundo a concepção deles, atravancada por milhares de troncos de árvores, e junto dela uma estrada de três ou quatro quilômetros que não leva a parte alguma. Eles não sabiam se a carga chegaria de caminhão ou pelo ar, e queriam estar preparados para ambas as eventualidades.
Pousamos junto de um punhado de choças, num lugar tão remoto que do outro lado da montanha nunca um branco pôs os pés. Descemos do avião sob os olhares de indivíduos fantasticamente pintados, alguns empunhando machados de pedra, outros uma estranha arma feita de pata de casuar com cabo de madeira, destinada a arrancar as entranhas dos inimigos. De quando em quando um nativo mais curioso do que os outros aproximava-se para apalpar a minha roupa e tocar na minha pele.
Na manhã seguinte, sob um magnífico nascer do Sol, estávamos a caminho de Monte Hagen, centro administrativo do planalto. Aí os constastes e contradições entre os sistemas de vida antigo e moderno, que tínhamos notado em outros lugares, alcançavam um ponto absurdo. À porta da loja que vendia refrigerantes e as mais recentes histórias em quadrinhos estavam encostados selvagens de aspecto feroz, com as narinas arreganhadas com presas de javali, os rostos pintados compondo máscaras aterradoras. Contaram-me que os montanheses, devido às profundas gargantas que separam as suas aldeias, comunicam-se por meio de cantos gritados, como os habitantes dos Alpes Suíços. Daí a extraordinária popularidade dos discos de música tirolesa entre as populações das cidades da região.
Fora do pequeno mas moderno hotel de Monte Hagen uma figura alta, nua, ornada de madrepérola e um brilhante cocar de plumas de ave do paraíso, esperava junto à porta. Quando me aproximei, ele estendeu-me um pedaço de papel.
“Patrão dar mim dinheiro muito”, disse ele em pidgin.
Olhei o papel, provavelmente jogado à cesta por algum branco, igual aos outros papéis em que o nativo vira o branco traçar alguns sinais mágicos diante de um guichê de banco e receber maços de libras ou dólares em troca. Era um cheque em branco do Commonwealth Bank of Austrália. Era a Carga do Pacífico Sul!

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