sexta-feira, outubro 6

"Não perca o élan!"

fonte : Revista Seleções
data : Junho de 1975
autor : Gerald Moore

Como foi que você se comportou no pior dia de sua vida?

Cathy entrou correndo em casa naquela tarde de outono e foi direto para seu quarto. Percebi logo que minha filha de 13 anos estava na mais completa “fossa”, e tentei imaginar o que lhe poderia ter acontecido na escola para provocar-lhe tamanha depressão. Fui procura-la para ver o que havia.
Cathy estava prostrada na cama, a ponto de chorar. Contou-me que fora derrotada nas eleições para o grêmio estudantil – por sete votos.
“Sabe, papai, era a única coisa que eu queria este ano”, confessou. “Seria melhor que eu nem tivesse tentado.”.
“Mas você chegou perto. Sete votos não são nada.”
“Não importa. O fato é que perdi.”
Amargurado com tanto desespero, eu disse: “Ora, não perca o élan!”
“Você está sempre dizendo isso. Vovó também. Eu nem sei o que élan significa.”
Súbita e vividamente, lembrei-me do dia em que aprendi o significado daquela palavra. Tentei defini-la precisamente para Cathy: “É ter a capacidade de nos recuperarmos quando estamos atravessando o pior momento de nossas vidas.”
“Então ninguém tem élan”, disse Cathy confiante.
“Seu avô tinha”, respondi, igualmente confiante.
“Você presenciou o pior momento da vida dele?”
“Acho que sim. Posso te contar como foi?”
Cathy abraçou-se às próprias pernas e preparou-se para ouvir, enquanto eu remontava a um certo domingo de verão, no ano de 1945.

Tínhamos ido à igreja – mamãe, minha irmã caçula Sharron e eu. Normalmente, papai teria ido conosco, mas fora obrigado a viajar até Vaughan, a pequena cidade de onde despachava o gado que criávamos em nosso rancho do Novo México.
Estivera animadíssimo na véspera de todo aquele dia. Havíamos tido a melhor primavera de que alguém se lembrava. Chovera bastante e a grama vicejava no solo permanentemente úmido. Fora o melhor capim dos últimos 15 anos. Pela primeira vez, não teríamos de comprar forragem para o gado Hereford que papai tanto apreciava, e o dinheiro economizado serviria para pagar dívidas que se acumulavam havia quase dez anos.
Papai começara a construir o rancho em meados da década de 20, logo após terminar o ginásio, mas a Depressão viera antes que ele tivesse pago a propriedade. Não sendo desses que vivem se queixando ou desistindo, ele simplesmente fincou pé, trabalhou e resistiu. Através de cuidadosa administração e enormes sacrifícios, conseguiu conservar a propriedade durante os piores anos da crise.
Tenho certeza que, no dia em que pendurou o pequeno cartaz dizendo RANCHO MOORE – HEREFORES REGISTRADOS à entrada do rancho, ele só queria dizer a verdade. O cartaz refletia o seu sonho de gado gordo e bonito, pastando em sedosas campinas, de estábulos pintados de fresco e de vacas que atrairiam os criadores de toda a região.
No entanto, a realidade era ligeiramente diferente. Por trás daquele cartaz, papai estava criando muito mais gado do que o registrado. Uma estrada enlameada e quase impraticável conduzia à nossa casa. Papai tinha construído a casa sozinho, com reboco e tijolo cru, mas nunca a pintara. Controlava quatro mil hectares, mas metade havia sido arrendada ao Estado ou à estrada de ferro. Não tínhamos eletricidade, água corrente ou telefone, até que ele instalou 23 quilômetros de fios com suas próprias mãos.
Naquele domingo, em particular, precisamos do telefone. Estávamos voltando da igreja, quando mamãe olhou pela janela do carro e observou o horizonte. “Não estão vendo a fumaça?”, perguntou às crianças – e então nos ordenou de repente: “Segurem-se.” Pisou até o fundo o acelerador de nossa velha caminhonete e não reduziu a velocidade, nem nas curvas cós currais, até a entrada do rancho. A fumaça era agora claramente visível, manchando o céu sobre as colinas ondulantes.
Perto da casa, tínhamos de atravessar um portão de ferro para entrar nas pastagens. Pulei fora para abri-lo. “Deixe-o aberto!”, mamãe gritou. Os portões nunca eram deixados abertos, mas obedeci e pulei de volta para a caminhonete.
Bastou-nos percorrer apenas um quilômetro e meio para ver o muro de chamas amarelo pálido, quase invisível contra o brilho do sol. O crescente calor parecia fazer a terra bruxulear. As chamas se moviam em nossa direção, impulsionadas pela brisa. Três vacas e um novilho corriam pouco à frente das chamas, com suas caudas tão eretas como mastros.
Sharron começou a chorar. A voz de mamãe brotou do fundo de sua garganta: “Oh, não!” Senti um profundo arrepio. Mamãe tinha feito uma curva fechada para fugir ao fogo e voltar em direção à casa. Nunca me esquecerei de seu rosto naquele instante. Havia lágrimas em seus olhos castanhos. As mãos seguravam o volante com tanta força que suas articulações estavam brancas. Quando Sharron foi jogada para um lado e bateu com a cabeça em algum lugar, mamãe disse friamente: “Gerald, deite sua irmã no assento e segure-a”.
Defronte à casa, ela saltou e correu para o telefone.
Os vizinhos começaram a chegar, dois ou três de cada vez, até que tínhamos umas 15 famílias ali reunidas. Muitos ainda estavam em roupas de domingo. Eu contava apenas oito anos e não podia ajudar muito, mas mamãe ordenou-me que fosse pegar uns sacos de aniagem. O tecido grosso, depois de ensopado, seria a única arma contra o fogo. A cidade vizinha tinha um corpo de bombeiros voluntários, com dois carros, mas estes seriam inúteis, tão longe da água.
Quando papai chegou de Vaughan, encarregou-se de tudo. Mandou Tom Foxx ao moinho, a fim de encher um tanque de dois mil litros que tínhamos na carroçaria de um velho caminhão. Aquilo devia chegar para manter os sacos ensopados durante algum tempo. As crianças foram reunidas no quintal e postas sob a supervisão da filha mais velha dos Thompson.
Em toda a tarde, uns 40 homens e mulheres trabalharam lado a lado, usando os sacos contra as chamas. Durante uma hora terrível, parecia que o vento iria levar o fogo até a casa e o estábulo, mas, por volta das quatro horas, ficou claro que o fogo queimaria para leste e pouparia os edifícios.
Ao cair da tarde, as chamas atingiram a estrada. Naquela mesma primavera, papai havia capinado o terreno justamente de forma a impedir que os cigarros e fósforos atirados pelos passantes ameaçassem o rancho. Quando o fogo chegou ao aceiro, pareceu hesitar. Os homens que o combatiam aproveitaram aquele instante para extermina-lo.
Metade de nosso rancho era agora um tapete em brasas, quente demais para ser pisado. Vinte cabeças de gado, presas num canto da certa, tinham sofrido queimaduras. Outras cinco estavam em estado tão ruim que papai teve de abate-las e, com a fúria das chamas, tinham se evaporado em fumaça todos os seus sonhos de pagar as dívidas – todos os seus sonhos, em suma, de possuir um rancho.
No entanto, ali estava ele, no quintal, cumprimentando cada vizinho, agradecendo-lhes a ajuda. Quando o último carro desapareceu, ele resolveu entrar. As botas novas que comprara, por conta da promessa das vacas gordas, estavam arruinadas.
Ainda levaria semanas até que o gado conseguisse ser recolhido e cercado, mas poucos dias se passariam antes que ele tivesse de comprar forragem para o inverno. Eu estava olhando para um homem que lutara com denodo e que perdera tudo. Enquanto mamãe lhe oferecia um pouco de café, eu sentia todo o horror daquele dia, mas contemplava fascinado aquele homem magro e altivo, sentado à mesa da cozinha.
De repente, ele me pegou, pôs o braço ao redor de minha cintura e me olhou bem nos olhos. “Que fogueira, hem, garoto?”
“As vacas se queimaram?” perguntei.
“Algumas.”
“Você estragou suas botas.”
Ele se curvou para olhar as belas botas pretas e disse: “Bem, ainda servirão como botas de trabalho – e nós vamos precisar de umas.”
Eu queria abraça-lo, mas não conseguia. Queria chorar, mas não podia. Ofereci-lhe a única coisa de que me lembrei no momento. “Pode ficar com meu bônus de guerra, se quiser.”
Seu rosto se abriu num sorriso. “Fique com eles, garoto. Você pode precisar, se algum dia quiser fazer uma viagem até Cingapura.”
“Cingapura?”, perguntei, sem saber o que significava.
“Claro, todos os jovens acabam indo a Cingapura. Eu mesmo passei sete anos lá antes de você nascer.”
“Não acredito.”
“Pergunte à sua mãe”, disse, virando-se para ela. “Ela jamais teria se casado comigo, se eu não tivesse ido a Cingapura.” Então, deu uma gargalhada, e vi o rosto de mamãe se desanuviar. Todos nós rimos – e, por um momento, esquecemos o fogo. Mamãe sentou-se em seu colo, enlaçou-lhe o pescoço e olhou-o com amor.
“Ben”, disse, “Você tem mais élan do que todo o exército romano.”
Não creio que já tivesse ouvido aquela palavra antes, mas compreendi logo o que significava – e sabia também que élan era algo que todos nós deveríamos ter.

Quando terminei minha história, Cathy sentou-se para pensar um momento, antes de falar. “Sabe, papai, essa história faz com que eu me sinta muito orgulhosa e muito envergonhada.”
No outono passado, Cathy foi eleita para o grêmio da escola – e por goleada. Prometi-lhe (por mais que custasse abrir mão dele) que, se fizer uma boa administração, eu lhe darei o velho e arranhado cartaz branco que costumava pender tão altaneiramente à entrada do Rancho Moore.

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