terça-feira, outubro 17

Regresso a casa

Fonte : Revista Seleções
Data : Abril de 1972
Autor : Peter Hamill

Qual seria a mensagem do grande carvalho?

Ouvi esta história pela primeira vez há alguns anos, contada por uma jovem que conheci no Greenwich Village, em Nova York, e que me disse ter sido uma das protagonistas. Depois disso, pessoas a quem contei disseram-me que já tinham lido outra versão num livro qualquer, ou ouvido de um conhecido, dizendo que acontecera a um amigo.
Provavelmente, trata-se de uma daquelas misteriosas lendas folclóricas que emergem, de tantos e tantos anos, do subconsciente de uma nação, para serem de novo contadas, de uma maneira ou de outra.
O elenco varia, mas a mensagem mantém-se a mesma. Gosto de pensar que aconteceu, de fato, em algum lugar, num dia qualquer...

Eram três rapazes e três moças e iam à Florida. Quando se meteram no ônibus, levavam sacos de papel com sanduíches e bebida, e, à medida que a cinzenta e fria Nova York ficava para trás, sonhavam com praias douradas e ondas do mar.
Enquanto o ônibus avançava para o sul, começaram a reparar em Vingo. Ia sentado à sua frente, metido num terno simples, que lhe caia mal no corpo. Não se mexia e o rosto empoeirado parecia uma máscara a ocultar-lhe a idade. Mordiscava sem parar o interior do lábio, petrificado, em silêncio.
Alta noite, já Washington ficara para trás, o ônibus parou defronte de um restaurante de beira de estrada, onde todos desceram, menos Vingo, que parecia preso ao banco por raízes. Os jovens começaram a especular a seu respeito, tentando imaginar a sua vida. Talvez fosse um lobo do mar, alguém que fugira à mulher, um velho soldado que regressava a casa... Quando voltaram, uma das moças sentou-se ao lado dele e apresentou-se.
“Vamos à Flórida”, começou, sorridente. “Dizem que é muito bonita.”
“É sim”, concordou serenamente, como recordando algo que fizera força para esquecer.
“Quer um gole de vinho?”
Vingo sorriu e bebeu um trago. Depois agradeceu e tornou a mergulhar no seu silêncio. Passados alguns momentos, a garota voltou a juntar-se aos amigos, Vingo começou a cabecear, e por fim dormiu.
De manhã, acordaram à porta de outro restaurante, e, desta vez, Vingo também desceu. A jovem insistiu em que lhes fizesse companhia, e ele acedeu. Parecia muito constrangido. Pediu café simples e fumou nervosamente, enquanto os jovens falavam de como seria bom dormirem na praia. Quando regressaram ao ônibus, a garota sentou-se de novo ao lado de Vingo, e, passado algum tempo, lenta e penosamente, ele contou a sua história.
Estivera quatro anos preso em Nova York, e agora regressava a casa.
“É casado?”
“Não sei.”
“Não sabe?”
“Bem, quando estava na cadeia, escrevi à minha mulher. Disse-lhe que estaria ausente muito tempo e que, se ela não agüentasse, se os nossos filhos começassem a fazer perguntas e fosse muito doloroso, me esquecesse. Eu compreenderia. ‘Arranje outro homem’, disse-lhe. Ela é uma mulher formidável, especial..… ‘Arranje outro homem e não pense mais em mim...’ Disse-lhe que não precisava de me escrever, e ela não escreveu. Isso faz três anos e meio.”
“E você está indo para casa sem saber?”
“Pois é”, respondeu acanhado.
“A semana passada, quando tive a certeza de que me concederiam livramento condicional, escrevi-lhe de novo. Há um grande carvalho na entrada da cidade onde vivíamos, e eu disse que, se ela me quisesse de volta, deveria amarrar um lenço amarelo à árvore. Nesse caso, desço e vou para casa. Se não me quisesse, não amarraria lenço nenhum e eu continuaria viagem.”
“Meu Deus!”, exclamou a moça, estupefata.
Contou aos outros, e pouco depois, com a cidade de Vingo se aproximando, todos admiravam as fotografias que ele lhes mostrava, da mulher e dos três filhos. A mulher era bonita, de uma beleza simples, e os garotos ainda não tinham feições formadas, nas fotografias velhas e muito manuseadas.
Encontravam-se a 30 quilômetros da cidade, e os jovens sentaram-se à janelas, à direita, atentos ao grande carvalho. A atmosfera dentro do ônibus tornou-se carregada, pesada de ansiedade, do silêncio da ausência e dos anos perdido. Vingo deixou de olhar e seu rosto tornou-se inexpressivo atrás da máscara de ex-presidiário, como preparando-se para mais uma decepção.
Agora só faltavam 15 quilômetros, 10... De súbito, os jovens levantaram-se todos, gritando, chorando, dançando de felicidade, numa grande alegria. Mas Vingo não se mexeu.
Deixou-se ficar, petrificado, olhando para o carvalho, que estava coberto de lenços – 20, 30, talvez centenas de lenços! A árvore sobressaía na paisagem como uma bandeira de boas vindas ondulando ao vento. Enquanto os jovens gritavam, o ex-presidiário levantou-se e dirigiu-se para a frente do ônibus, pronto para ir para casa.

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