sábado, outubro 14

Como se faz um piloto de provas

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1971
Autor : Peter Browne

Este singular “universidade de vôo” inglesa ensina um dos mais perigosos e exigentes serviços do mundo: testar os aviões do amanhã.

Quando a turbina do seu jato em experiência falhou a 9.000 metros de altitude, o piloto de provas Peter Twiss tinha duas alternativas. A mais fácil era saltar de pára-quedas e deixar o avião espatifar-se; ou poderia tentar fazer o Fairey Delta planar os 30 quilômetros de retorno até ao centro de provas de Boscombe Down, perto de Salisbury, ciente de que, com o motor cortado, cada movimento dos comandos drenaria a pequena reserva de emergência da pressão hidráulica e reduziria suas chances de sobrevivência.
Com a coragem característica de todos os pilotos de provas, Twiss preferiu planar. À medida que o aparelho realizava sua silenciosa descida, ele transmitia um comentário para possibilitar aos técnicos a localização do defeito, caso falhasse na tentativa de alcançar o aeroporto; rompendo as nuvens a 900 metros de altitude, tentou baixar o trem de pouso. Mas somente a roda dianteira desceu. Projetado para pousar a 240km/h, o Delta estava a 400 quando Twiss desacelerou sobre a pista de concreto. O jato prateado ainda patinou por uns 1.800 metros em meio a uma chuva de faíscas antes de estremecer numa parada brusca.
Por ter salvado o valioso avião (no qual mais tarde estabeleceu um recorde mundial de velocidade no ar, atingindo 1.822 km/h), Peter Twiss fez jus à Comenda da Rainha. Acima disso, porém, ele provou dramaticamente o valor do seu treinamento nove anos antes naquele mesmo aeroporto de Wiltshire, onde, como aluno da Escola de Pilotos de Provas do Império, enfrentou o mais rigoroso curso de aviação do mundo.
Fundada em 1943 com o objetivo de suprir as necessidades de formação aeronáutica durante a guerra, a EPPI já treinou 779 pilotos de provas de 13 nacionalidades, desde gregos, indianos e suecos, até siameses e americanos (incluindo o astronauta Alfred Worden). A demanda de diplomados pela EPPI é tal que muitos dos pilotos militares ali formados renunciam aos vôos de provas do serviço ativo após vários anos para, como civis, juntarem-se aos construtores aeronáuticos britânicos ou de outros países e participarem do desenvolvimento de novos modelos. Às vezes os pilotos são escolhidos pelos empresários antes mesmo de completarem o curso. Como explica um diretor da Hawker Siddeley: “É um dos mais altos atestados, equivalente a uma distinção com louvor em vôos de provas.”
Os pilotos treinados pela EPPI atualmente trabalham para Hawker Siddeley, Rolls-Royce, Société Nationale Industrielle Aerospatiale da França, Fokker holandesa e Fiat italiana; na América, para a Lockheed, Ryan e Mcdonnell Douglas. O piloto chefe de provas da Força Aérea Sul Africana é diplomado da EPPI, da mesma forma que o piloto chefe de provas da Diretoria de Controle de Material de Aeronáutica do Reino Unido, responsável pelo certificado de segurança de todos os novos tipos de avião comercial usados pelas companhias britânicas.
Para cada curso de 10 meses em Boscombe Down – que custa cerca de 56.000 dólares – há mais de 50 candidatos. A idade média é de 30 anos e cada candidato é piloto experimentado, com pelo menos 750 horas de vôo no posto de comandante. Os 35 primeiros passam pelo crivo inicial e por dois fatigantes dias de entrevistas e exames. Destes, são selecionados 20 no máximo.
“O tipo impetuoso e ousado não nos serve”, diz o barbudo Capitão Pat Chilton, aposentado em dezembro último do seu posto de Comandante da escola, na qual ele próprio treinou para piloto naval de provas em 1948. A administração da escola, ao contrário, busca caráter forte, coragem, honestidade e a capacidade de ponderar os riscos aceitando os inevitáveis sem assumir os desnecessários.
“Antes de tudo”, diz Chilton, “um piloto de provas tem de possuir uma vigorosa motivação no sentido de averiguar por que as coisas acontecem.”
Um exemplo é John Cochrane, de 41 anos de idade, diplomado pela EPPI em 1960 e que já conta com 200 horas de vôo de provas no novo Concorde 002 britânico. Tranqüilo e reservado, Cochrane dirige um sedan comum, veste-se sobriamente de escuro para o trabalho e não hesita em afirmar que, na maior parte do tempo, seu emprego não é mais emocionante do que qualquer outro. Como todos os pilotos de provas, tem um interesse obsessivo pelas sutilezas técnicas do trabalho. Relatórios sobre todos os aspectos de cada vôo do Concorde estão empilhados em sua mesa, no escritório do aeródromo de Fairford, em Gloucestershire. Quando o avião entrar em serviço regular em 1974, estes relatórios serão mais de 3.000.
O talento de Cochrane para lidar em todas estas informações técnicas é um tributo ao primeiro estágio do curso da EPPI: a intensa preparação teórica em matérias como Aerodinâmica, Termodinâmica, Matemática e Mecânica. “É preciso estar bastante interessado para agüentar trabalho tão duro.”, afirma Cochrane. “Durante 10 meses a vida social não existiu para mim. Tinha de estudar todas as noites para manter-me em dia.”
Um futuro piloto de provas aprende em Boscombe Down a manejar aviões que vão desde caças supersônicos até grandes transportes de vários motores. “É altamente compensador”, diz Cochrane. “As 115 horas de vôo que completei em 18 tipos de avião foram tão diversificadas que valeram talvez por umas 2.000 em termos de experiência rotineira.”
Cochrane dedicou inclusive várias horas aos planadores da escola, os quais EPPI considera inestimáveis para treinamento. “Com o motor”, explica Pat Chilton, “conta-se com uma reserva de potência, mas o planador põe em jogo a perícia de pilotagem; temos de lançar mão muito mais da nossa habilidade.”
O futuro piloto de provas aprende a explorar os limites absolutos do desempenho de um avião. Enquanto no serviço militar era proibido realizar parafusos com os caças a jato Hunter, agora o que se espera é que ele o faça. Um piloto fala da sua primeira tentativa: “Não foi somente um parafuso, mas uma experiência emocional”, o que também vale para outro aluno que, perdendo altitude à velocidade de 3.600 metros por minuto num Scimilitar em parafuso, ficou tão desorientado que teve de saltar de pára-quedas, indo cair no mar, próximo a uma praia da costa meridional atulhada de espantados veranistas.
Em um corredor de Boscombe Down há dois tipos de assentos ejetores para familiarizar os estudantes, com as diferentes técnicas de escapar dos aviões. “os pilotos que se dedicam a esse tipo de trabalho”, diz Chilton, “tem de estar preparados para qualquer emergência.” Na qualidade de piloto-chefe de provas da Folland Aircraft, Teddy Tennant estva testando um Gnat – o pequeno e esguio jato que as célebres “Flechas Vermelhas” da RAF empregam agora nas suas brilhantes exibições de acrobacias em formação. Encontrava-se perto de Winchester, quando sentiu um curioso estremecimento percorrer o aparelho. A 1.100 km/h e apenas 150 metros acima do solo, o Gnat empinou violentamente, descontrolado. Tennant percebeu que a cauda se partira. Puxou a alavanca do ejetor e foi atirado para fora da cabina com o pára-quedas abrindo dois segundos antes que o Gnat se desintegrasse. Mas a falha foi descoberta graças às informações que ele pode fornecer aos engenheiros: um mínimo erro de cálculo no grau de rigidez do metal empregado na construção da cauda.
Em 27 anos, apenas nove pilotos da Escola morreram em treinamento. Em 1968 um estudante francês perdeu o controle ao pilotar um bombardeiro Canberra apenas com um motor funcionando. Permanecendo no aparelho para evitar que ele caísse sobre a cidade de Crewkerne, em Somerset, acabou saltando quando já era tarde para se salvar. Em outra ocasião um Meteor espatifou-se perto de Basingstoke. O piloto havia utilizado um gravador para comentar uma série de piques em alta velocidade, e a gravação recuperada dos escombros forneceu aos investigadores um relato póstumo do que acontecera.
Ainda que acidentes fatais sejam raros; os estudantes não tem ilusões quanto aos riscos que poderão correr na profissão que escolheram ( na qual dificilmente ganharão mais de 6.000 libras por ano – bem menos que um comandante de companhia aérea comercial). Quando foram introduzidos, no princípio da década de 60, os aviões comerciais de asas em flecha e caudas elevadas em forma de “T” revelaram-se incontroláveis em determinadas condições extremas de vôo. Dois diplomados da EPPI, Mike Lihgow e Peter Barlow, perderam a vida pesquisando este fenômeno nos protótipos do BAC 1-11 e do Trident.
Diz Sr George Edwards, presidente da British Aircraft Corporation: “O piloto de provas é o único homem que arrisca a vida para testar um produto.” Cientistas tentando aferir as exigências emocionais dos vôos de provas descobriram que o ritmo da respiração de um piloto pode quase duplicar no momento crítico da decolagem. Um engenheiro de vôo, intrigado com um estranho assobio no intercomunicador, localizou-o no próprio piloto, arfando com o esforço da concentração.
“Nesta profissão o homem sem apreensões não tem imaginação e torna-se uma ameaça”, afirma Bill Bedford, diplomado da EPPI que testou o revolucionário caça Harrier de decolagem vertical. E o conhecido piloto de provas John Derry disse: “Sem uma saudável porcentagem de medo, os testes dariam maus resultados e seria grande a probabilidade de terminarem em catástrofe.”
O clímax do curso da EPPI para todo aluno é a “pré-estréia” – uma antevisão do trabalho que terá de realizar. Abrange três semanas de esforço concentrado: cerca de 10 horas de dia e de noite, voando em um tipo de avião que ele nunca pilotou, e em seguida escreve um relatório completo sobre o manejo e desempenho. Uma das melhores pré-estréias foi realizada recentemente por um grupo de três estudantes ( um australiano, um alemão e um israelense), cuja análise de um Lightning foi tão precisa que os seus dados coincidiram com os do próprio fabricante.
Homens assim tão afinados com seus aviões estão equipados para enfrentar quaisquer emergências. Talvez o mais espetacular exemplo de perícia de pilotagem em situações de crise seja o que ocorreu em meados de 1970, quando um diplomado da EPPI, Neil Williams, voava num Zlin Akrobat a 300 metros de altura e uma das asas começou a arquear para cima. Williams virou o Zlin de cabeça para baixo para inverter a pressão sobre a asa, voou em círculo uma vez e mergulhou até 12 metros de altura antes de girar o avião para voltar à posição normal, e pousou no instante exato em que a asa se desprendeu.
A importância da Escola de Pilotos de Provas do império está de há muito provada pela contribuição dos seus diplomados à aviação internacional. Os aviões comerciais voam com mais segurança e os militares são mais eficientes graças aos homens que aprenderam na Inglaterra as técnicas daquela que é provavelmente a mais exigente de todas as profissões. Escolas similares à EPPI foram criadas pela Marinha e pela Força Aérea dos Estados Unidos, bem como na França e no Japão. O manual de vôos de prova adotado por todos os países da OTAN é baseado nos métodos da EPPI.
Os pilotos de provas de amanhã, treinados em Boscombe Down, enfrentam o desafio de aviões que se tornaram cada vez mais velozes, maiores e mais complicados. O Concorde – uma das mais complexas máquinas voadoras do mundo – é apenas o precursor de uma nova geração de aviões comerciais supersônicos. Caças com asas de ângulo de ataque variável e aeronaves de decolagem vertical, como o Harrier, esboçam a imagem do que está por vir na aviação civil.
Simuladores sincronizados e computadores são empregados cada vez mais para analisar o comportamento de novos aviões. John Cochrane, por exemplo, “pilotou” o Concorde durante centenas de horas, experimentando emergências semelhantes às falhas dos motores, muito antes de ergue-lo do solo. Mas é como diz Pat Chilton: “Um avião pode atender a todas as exigências técnicas dos cientistas, e não obstante ser desagradável de pilotar.” Quando chega a hora de avaliar as qualidades de manejo de uma aeronave nada pode substituir o piloto de provas. E aqueles que amam o espaço encontram no seu trabalho uma satisfação que excede todas as outras considerações.

Nenhum comentário: