quinta-feira, outubro 19

Duas ou três coisas que sei do Japão

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 1978
Autor : Andrew H. Malcolm

Este é um país onde tudo corre de acordo com os planos – onde mesmo o imprevisível de alguma maneira não o é

Após 18 meses em Tóquio, são estas as coisas que minha família e eu, norte-americanos, estamos apenas começando a saber a respeito do Japão: A honestidade que impede um homem de pegar uma moeda esquecida numa cabine telefônica porque “não é minha”. A segurança pessoal, que torna o medo na cidade uma ficção. Certa filosofia de atendimento, que faz um dentista telefonar a um paciente vários dias depois da consulta para se certificar de que uma nova capa do dente ainda está bem. O valor das coisas, capaz de transformar um pedregulho vulgar num objeto decorativo de grande valor. A linguagem, que faz com que uma simples palavra como haku tenha três significados: varrer, calçar sapatos e vomitar.
Minha mulher, June, meus dois filhos (Christopher, de oito anos, e Spencer, de quatro) e eu já nos acostumamos a algumas dessas coisas. Porém, mesmo ano e meio depois que os encarregados da nossa mudança nos espantaram, entregando nossos pertences domésticos no preciso momento em que tinham prometido faze-lo, ainda estamos fascinados pelos acontecimentos que fazem nossa vida aqui.

Multidões. Gente, gente em quantidade por toda a parte. Tóquio tem 12 milhões de habitantes, e a população do Japão (112 milhões de pessoas) é mais de cinco vezes a da Califórnia – num espaço menor. E são montanhas o que cobre 80% das mais de 3.000 ilhas japonesas.
Os elevadores, trens, aviões, calçadas e parques vivem superlotados (as pessoas que vão fazer piqueniques saem de madrugada para pegar um bom lugar onde almoçar). Os hidrantes de água são enterrados na calçada sob coberturas para poupar espaço. No Japão, as portas não abrem para os lados: para poupar espaço, são portas de correr. Tudo aqui parece feito numa escala menor: as ruas, os carros, as casas, os quartos, as latas de refrigerante. As coisas tem de ser pequenas para caber. Esse é o primeiro fato da vida no Japão, pátria do radinho de pilha e da televisão minúscula.

Bons modos. Quando um cliente entra num restaurante de bairro, todo mundo, do caixa ao cozinheiro, grita: “Bem vindo, bem vindo!”. Uma amiga nossa perdeu seu passe de metrô uma manhã, a caminho do trabalho: à noitinha, ele tinha sido devolvido. Na véspera de começar a construção de uma obra, o mestre de obras distribui enormes caixas de biscoitos a todos os vizinhos, para se desculpar antecipadamente de qualquer transtorno.
Um dia, fui apanhado por uma tempestade fora da cidade. Um conhecido de poucos minutos antes telefonou a uma loja, e ela me mandou um guarda-chuva novo em momentos. Nas bombas de gasolina, três homens impecavelmente vestidos de camisa e gravata cercam o carro da gente para lavar os vidros, passar aspirador por dentro e polir as calotas. Quando June vai fazer compras na mercearia, o dono sempre promete mandar entrega-las em casa naquela mesma tarde. Outro dia, ele reparou que ela estava carregando um embrulho grande e pesado. “Também vamos mandar entregar isso”, disse ele. E mandou mesmo – na hora marcada.

Limpeza. Tomar banho é uma religião. As donas de casa e os proprietários de lojas limpam as calçadas em frente de suas casas. Há grupos que varrem as sarjetas e lavam as grades de proteção das estradas.
Fiquei muito embaraçado quando, sabendo como sei que quarta-feira é o dia da recolha do lixo para incinerar, deixei sem querer, dentro de nossa lata de lixo, uma latinha. Quando saí, lá estava ela muito arrumadinha ao lado da lata vazia. Alguém tinha separado nosso lixo.

Opostos. A vida aqui parece cheia de contradições: a gente se lava antes de entrar na banheira. Nas lojas de departamentos, a seção de preços de promoções, em vez de ser no subsolo, como nos Estados Unidos, é no último andar. O romantismo é associado não ao crepúsculo mas sim ao nascer do sol. No Dia dos Namorados, são as mulheres japonesas que dão presentes. As mães ameaçam os filhos mal comportados mandando-os brincar lá fora.

Comunicação. Além da barreira normal que é a língua japonesa, existe uma complexa linguagem muda. Essa linguagem por implicação é preferida à outra, e muitas vezes torna aquilo que você não diz mais importante do que aquilo que diz. Uma noite, nossa professora de japonês sugeriu duas vezes que os meninos, ali brincando na sala, podiam estar com frio. Foi só 15 minutos mais tarde, quando ela vestiu um casaco, que nós entendemos o que ela na verdade estava querendo dizer.

Chuva. Muito da vida no Japão é semelhante a assistir a uma tempestade numa noite escura. Há um relâmpago, e, no instante entre o clarão e o trovão, você vê através da chuva algo mais profundo.
Em Kioto, existe um templo budista que tem uma goteira no chão em vez de no telhado. O sulco está cheio de pedras, e durante as chuvas as gotas pingam e salpicam junto do jardim de meditação. Perto há uma cascata escondida nas moitas. Você só ouve o barulho da água caindo. A aparência da cachoeira é deixada à imaginação das pessoas.
Dia após dia, surgem encantadoras descobertas: há o velhote que viaja no metrô com um periquito para distrair as crianças. A carrocinha iluminada por lanternas que para perto da nossa casa todas as noites às 9:10 para vender talharim quente. Os relógios juntos dos telefones de moedas que marcam os três minutos, momento em que os telefonemas de dez ienes são automaticamente cortados. E música nos sinais luminosos de trânsito para avisar os cegos quando podem atravessar a rua com segurança.
Até mesmo o imprevisível dessas situações é de alguma forma previsível. No Japão, as coisas funcionam segundo um plano. Não se dá valor à surpresa. Os trens saem e chegam no horário. Se a seta pintada na plataforma diz que o Vagão nº 5 vai parar ali, ele para mesmo – ali, precisamente.
Sabemos, é claro, que é impossível chegarmos a entender completamente esta complexa sociedade. Quando você pensa que conseguiu, abre-se uma nova porta que dá para um quarto inacabado. Um dia, eu ia num trem expresso quando reparei num aviso que dizia: “R 45,5”. Perguntei ao maquinista o que aquilo queria dizer, e ele me disse: “Ah, é o raio da próxima curva – que é muito fechada.”
No entanto, um incidente recentemente ocorrido demonstrou que nossa família adaptou-se firmemente no Japão. Uns amigos nossos norte-americanos passaram por Tóquio há pouco tempo, e falaram no alto preço que tinham pago pelas passagens de avião – cerca de 1.300 dólares cada.
Foi quando Christopher perguntou: “Quanto é isso em ienes?”

Nenhum comentário: