terça-feira, outubro 10

Os rivais

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1982
Autor : Geoffrey Household

No mundo limitado do recinto da catedral, todos esperavam pelo episódio seguinte da velha rixa.

Papai era o jardineiro da catedral, e seus gramados e discretos canteiros de flores haviam sofrido uma invasão de toupeiras, seres de eclesiástica sutileza que evitavam todas as toscas armadilhas que lhes eram preparadas. Apareceu, porém, um gato, vindo não se sabe de onde, que se interessou pelo assunto, e numa semana as apanhou todas, expondo seus troféus de caça todas as manhãs na lona que cobria a máquina de cortar grama.
Alimentado e elogiado por meu pai, em breve ele se aventurou dos gramados e túmulos para o átrio da catedral. Ali, cativou o deão, arqueando e roçagando delicadamente seus coleantes flancos contra as pernas empolainadas do bom homem. Era muito bem educado para o bispo e para o mais alto clero, mas acariciar só o fazia o deão. Sabia pelo porte e tom de voz deste, por mais afáveis que fossem que a catedral lhe pertencia. Foi o deão quem o batizou de Abner.
Para Abner, MacGillivray, o respeitável cão de meia-idade do novo bispo, era uma crise. Seu primeiro encontro marcou o tom de suas relações futuras.
MacGillivray tentou com terrível temeridade divertir-se à custa do gato. Abner se espreguiçou, bocejou, deixou o atacante MacGillivray aproximar-se até um metro mais ou menos; depois pulou para a cabeceira estreita e arredondada de um túmulo, e, deitando-se languidamente, deixou-se dormir. MacGilivray saltou e latiu à ponta da cauda do gato que lhe acenava graciosamente, e acabou descobrindo que estava sendo tratado como um cachorrinho. Depois disso, os dois passaram a se cruzar cortesmente, mas sem comentários. No mundo restrito do recinto da catedral, tal frieza entre o criado do bispo e o do deão era absolutamente natural.
MacGilivray cativou pela primeira vez o coro e o clero na cerimônia de tomada de posse do bispo. Magnífico, de mitra e com os paramentos de gala, o bispo, liderando a procissão bateu à porta da catedral com seu báculo, pedindo admissão. MacGilivray, vendo seu dono fechado do lado de fora e precisando de ajuda, precipitou-se pelo gramado, atirou-se à porta e juntou seus latidos excitados à formal solenidade. Afastado em meio a um silêncio, cheio de reprovação, levou a gravidade do seu crime mais a peito do que qualquer um de nós.
O esperto e o desajeitado. Quando voltou a aparecer, comportou-se com sensata humildade, seguindo o bispo, sem este notar, até o púlpito, de cabeça descaída e cauda bem abaixo da horizontal. Tão ansiosa devoção conseguia ser ainda mais embaraçosa que a bravata anterior. Por isso, o bispo nomeou um menino do coro, eu, para assegurar que nas ocasiões oficiais MacGilivray ficaria fora da cena. Eu tinha até autorização para prende-lo em caso de emergência.
Não creio que alguma vez o bispo tenha chegado a compreender o que é que estava preocupando MacGilivray, habitualmente um cão tão sensato quando acompanhava seu dono nas voltas pela diocese. Nós, porém, tínhamos certeza de que sua indisciplina em casa se devia a ciúmes de Abner. Ele se ressentia de ter sido expulso da catedral, enquanto Abner tinha autorização para ficar.
O deão podia declarar (e fazia-o com toda a honestidade) que nunca havia visto o gato na catedral; mas olhos mais jovens várias vezes tinham distinguido o vulto de Abner enroscado sobre o pálio de pedra do túmulo de um almirante do século XVII. Às vezes, no inverno, dormia sobre o braço esquerdo de um cruzado pétreo, na cavidade entre o escudo e a sua cota de malha. Em ambos os pousos ele podia, se quisesse, ficar invisível. Era meio persa, riscado como um tigre, com listas cinzento-acastanhadas fundo cinza mais claro – a mesma cor de pedra da catedral.
Com o passar do verão, a rixa entre Abner e MacGilivray tornou-se mais sutil. Ambos marcavam pontos. MacGilivray, quando acordava se sentindo jovem, ia correr atrás dos pombos. Certa manhã, para surpresa tanto do cão como da ave, um pombo não conseguiu se desviar a tempo, e quebrou uma asa. MacGilivray ficou embaraçado. Cheirou o pombo, abanou a cauda para mostrar que não havia ressentimentos, e sentou-se.
Abner, que ia passando por ali, pegou suavemente o pombo com a boca, e o apresentou a uma elegante turista norte-americana. Ela jurou que o gato lhe estava pedindo para tratar da avezinha... e foi isso mesmo que ela fez, ficando uma semana inteira na nossa cidade, com visitas constantes ao consultório do veterinário. Penso que Abner foi atraído pela graça felina do andar dela, e estava mais era sugerindo que, como na catedral não se precisava do pombo para nada, talvez ela quisesse come-lo. Quaisquer que tenham sido os seus motivos, uma vez mais ele conseguiu fazer MacGilivray passar por um tolo desajeitado e impulsivo.
Golpe magistral. A vingança de MacGilivray foi meio primitiva. Plantou ossos e restos de carne pelos cantos escuros da catedral, fingindo que fora Abner que os tinha posto lá. Conseguiu enganar o bedel, que entregou uma séria queixa por escrito ao deão. Este, porém, sabia perfeitamente que Abner não tinha o mínimo interesse por ossos de carneiro, frescos ou não.
Não me recordo de todas as peripécias daquela guerra fria, mas lembro-me do triunfo de MacGilivray e das suas conseqüências, pois presenciei ambos. Foi na festa de St. Giles, nosso santo padroeiro. A missa das vésperas seria totalmente acompanhada por coro e orquestra, e o sermão iria ser dito pelo bispo. Eu ia prendendo MacGilivray, quando ele conseguiu fazer-me largar a trela, e partiu para sua corrida de 500m à volta da catedral, procurando uma entrada particular. Acabei por apanha-lo, mas faltavam apenas cinco minutos para a entrada do coro em procissão.
Por isso, enfiei-o pelas escadas da cripta abaixo, e tranquei-o lá mesmo. Sabia que ele não ia poder sair; nossa cripta ficava fechada ao público durante a missa. Meu medo era que seus latidos fossem ouvidos através das grades do chão da catedral. Enfiei-me apressadamente na sobrepeliz amarrotada, e tomei meu lugar na procissão, sob o olhar desaprovador do diretor do coro.
O bispo, que sempre havia sido um pregador muito convincente, ultrapassou-se a si próprio. Só hesitou uma vez, quando lhe chegaram aos ouvidos os latidos de MacGillivray, apenas perceptíveis para ele e para mim. Mesmo essa hesitação momentânea foi atribuída a busca da palavra certa.
Logo a seguir à eucaristia, corri lá abaixo para soltar o cão. Mal abri a porta, o barulho ficou insuportável. MacGillivray estava defendendo a escada contra um estranho com uma pequena maleta. Para tentar faze-lo calar-se, o homem lhe dizia que ele era um bom cachorrinho. Quando dois robustos bedéis, atraídos pelo barulho, apareceram logo atrás de mim, o intruso tentou escapar, arrastando MacGillivray, de dentes ferrados nas calças dele. Apanhamo-lo e abrimos a maleta, onde havia peças de prata da catedral. Durante a missa, nosso primitivo cofre tinha sido aberto.
A oferenda. MacGillivray foi o centro de uma agitação muito elogiosa. Os cônegos teriam afagado qualquer cão, mas aquele era o cão do bispo. As abas dos paramentos e das sobrepelizes esvoaçavam sobre ele como as asas de barulhentas gaivotas descendo sobre um peixe dado á costa. Depois de terem levado o ladrão, MacGillivray seguiu respeitosamente o dono para fora. No pórtico da catedral, voltou-se e soltou um breve e triunfante latido para a nave deserta. O capelão do bispo sugeriu untuosamente que era uma pequena expressão de ação de graças. E era, mas nada piedosa. Reparei para onde estava apontando o focinho de MacGillivray. Aquele latido fora dedicado a uma sombra espojada sobre o pálio do túmulo do almirante – Abner.
Abner ficou vários dias sem aparecer na catedral. Voltou a ajudar meu pai, representando sua parte de caça miúda. Era óbvio que, para Abner, a catedral tinha sido momentaneamente profanada, mas voltou um pouco antes das festas das colheitas, que apreciava muito. Na semana em que a catedral estava enfeitada (o deão gostava de grandes molhos de trigo, aveia e cevada) ele tinha uma grande quantidade de esconderijos discretos onde era impossível detectar a sua presença. O deão tornara a celebração das colheitas tão agradável como a do Natal, restabelecendo o antigo costume de uma procissão dos locatários e benfeitores da catedral, cada qual com uma oferenda em gêneros, que ele próprio recebia sobre os degraus do altar. Todos os artífices podiam apresentar um espécime único do que faziam. Meu pai, como de costume, abria a procissão levando uma travessa de palhinha com um enorme cacho de uvas dos vinhedos dos jardins canônicos.
Enquanto a fila composta por cerca de 20 pessoas avançava até o altar, o coro cantava a plenos pulmões o Salvo LXV, alegremente acompanhado pelo nosso organista. O sentido teatral do deão continuava impecável. Suntuoso no ritual e nos paramentos, ele representava seu papel com a maior simplicidade, agradecendo a todos os doadores e benzendo-os.
A fechar a procissão iam quatro rapazes, alunos da escola da catedral, com uma grande tigela de prata cheia de nozes apanhadas em volta do templo. Quando se separaram, dois para a direita e dois para a esquerda, deixando o deão sozinho nos degraus do altar, apareceu uma sombra aos pés dele, desaparecendo tão rapidamente que, quando nossos olhos perceberam o seu vulto, já não estava lá.
O deão baixou-se, apanhou uma ratazana morta e depositou-a reverentemente ao lado das outras oferendas. Não havia ali ninguém a quem agradecer por aquilo, mas quando o deão saiu da catedral depois da missa e parou no átrio para falar com Abner, ainda estava vestido, para surpresa do público presente, solene e deslumbrante, com os seus paramentos, sugerindo o poder de Deus para proteger defender por sua benção até o mais humilde dos servos.

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