sábado, dezembro 23

Fuga para a liberdade

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1983
Autor : William Gilden

Com a polícia rente no seu rastro, os dois ativistas do Solidariedade sabiam que sua única esperança era sair da Polônia, e o único meio possível, uma perigosa viagem.

A mulher soluçou de terror enquanto a polícia vasculhava sua casa na cidade portuária báltica de Gdynia. Os vizinhos observavam silenciosamente enquanto os rudes agentes levavam um mimeógrafo e panfletos recentemente impressos trazendo a marca do Solidariedade, o proscrito sindicato dos trabalhadores poloneses.
Uma mulher correu em direção à parada de ônibus onde Tadek Nowak, de 25 anos, desceria no caminho de casa, vindo do seu trabalho no estaleiro. “Há visitantes na sua casa”, sussurrou ela, ao passar por ele. Tadek percebeu o medo no semblante da mulher e afastou-se rapidamente, sabedor de que jamais poderia voltar ali.
Ele era apenas um dos milhares de membros do Solidariedade a continuarem atividades sindicais, apesar da proibição governamental subseqüente à imposição de lei marcial da Polônia, a 13 de dezembro de 1981. Juntamente com o seu velho amigo Marek Zuraw*, um estivador de 25 anos, ele escreveu um boletim que fornecia informações a respeito do Solidariedade não acessíveis à mídia controlada pelo governo. Noite após noite, os dois labutaram no estreito porão da casa de Tadek, imprimindo um folheto de cada vez. Em seguida os distribuíam, sempre à espreita da polícia. Os riscos eram sérios: a impressão e a divulgação do material “contra o Estado” poderiam significar 10 anos de prisão.
Plano audacioso. Imediatamente os dois homens se reuniram às pressas no apartamento de um amigo para combinar o seu próximos passo. Inevitavelmente a polícia iria descobrir o envolvimento de Marek. Pela manhã, chegaram com relutância à conclusão de que não tinham alternativa. “Temos de sair do país”, disse Tadek.
Embora Varsóvia e o esperado asilo na embaixada americana estivessem a apenas 320km de distância, eles precisariam de licenças especiais para chegar lá. Viajar sem permissão e não ser apanhado nos sucessivos postos de controle era absurdo. Foi então que ocorreu a Marek um audacioso plano de fuga: os dois homens se esconderiam dentro de um engradado num cargueiro polonês. Marek aproveitaria a oportunidade de ainda não ter sido implicado e voltaria a trabalhar no estaleiro. Sua missão: descobrir o engradado que os levaria para a liberdade.
Na manhã de segunda-feira, Marek folheou os pedidos de remessa, anotando cargas, destinos, épocas de partida. Veterano de 10 anos nas docas, não despertou suspeitas. O destino mais seguro que conseguiu achar foi Halifax, Nova Escócia – a uns 5.600km através do Atlântico Norte. Seria uma viagem difícil, de pelo menos 14 dias. Naquela tarde, ele percorreu os embarcadouros à procura dos engradados destinados a Halifax. Finalmente os descobriu, registrados para o navio container Kazimiers Pulaski. A partida estava marcada para dentro de seis dias, domingo, 25 de abril de 1982.
Marek e Tadek prepararam uma lista de provisões – barras de chocolate, bisnagas de pão, pílulas de vitaminas, 38 litros de água e recipientes para resíduos corporais. Eles se limitariam a quatro quadradinhos de chocolate, uma bisnaga de pão e não mais do que três xícaras de água por dia. Além disso, levariam uma lanterna elétrica, um baralho de cartas, um relógio, uma faca, cigarros, exemplares de seus impressos clandestinos e um pequeno dicionário polonês inglês.
Na manhã de terça-feira, Marek, fingindo preparar um dos engradados para embarque, enfiou um pouco de chocolate e bisnagas de pão através de uma pequena abertura. E se eu for apanhado? pensou. Mas seus movimentos passaram despercebidos. Na quarta-feira, colocou mais provisões. O engradado onde iriam embarcar media 2m de altura por 9m de comprimento, mas continha um torno industrial de 14 toneladas, deixando apenas espaço suficiente para os dois homens.
Na noite de sexta-feira, a esposa de Tadek foi trazida até ele para uma rápida despedida. Abraçaram-se, chorosos. Ele tentou consola-la. “Se eu ficar, serei metido na prisão e não a verei durante anos”, disse ele. “Se alcançar o Ocidente, as autoridades poderão deixar que você se reúna a mim. Precisamos tentar.”
“Sei que vocês precisam”, concordou ela. “Boa sorte, meu amor.”
Marek, que é divorciado, deixou atrás de si uma filha de três anos. Ele pôs a menininha no colo, abraçou-a várias vezes, beijou-a e disse um “até logo”.
Os dois fugitivos enfrentavam um grande obstáculo antes mesmo de chegarem ao engradado; como poderia Tadek, cujo cartão de identidade era para um estaleiro vizinho, penetrar no cais? Resolveram então faze-lo dissimuladamente pelo portão dos operários. O sábado amanhecia frio e chuvoso. Marek cumprimentou o único guarda do portão. “Ainda bem que estamos agasalhados”, gracejou ele. O guarda, descontraindo-se com a conversa, não percebeu que apenas Marek exibira um cartão de identidade.
“Nunca!” Uma vez no cais, ele conduziu Tadek até o engradado, e os dois arrastaram-se para dentro. Mal podiam se mover sem esbarrarem no torno. Temerosos de que o menor som os denunciasse, quedaram-se em silêncio enquanto a noite caía e tornava-se muito fria.
No domingo, o dia marcado para a partida, nada aconteceu. A segunda noite no engradado pareceu interminável. Por volta do meio-dia de segunda-feira, os dois começaram a ter dúvidas. E se eu li errado a lista de remessas?, perguntou Marek a si mesmo. Ambos temiam que, devido à demora, seus mantimentos acabassem antes do término da viagem. Cada um fazia a si próprio a mesma pergunta. Será que deveríamos sair agora e desistir da idéia?. Mas ambos respondiam para si mesmos: Não, nunca!
No fim da tarde, eles ouviram o motor de um monta cargas, e minutos depois o engradado balançou ao ser apanhado, conduzido ao longo do cais e colocado no interior do navio. Mas somente ao anoitecer de terça-feira foi que as grandes turbinas do navio começaram a funcionar. Finalmente estavam partindo! Pela primeira vez, uma sensação de regozijo os invadiu. Agora só o que tinham a fazer era esperar; parecia fácil.
Nessa noite novamente sofreram com o frio terrível. Seus receios voltaram: E se formos descobertos? E se as autoridades canadenses em Halifax nos puserem de volta no navio ou nos entregarem à embaixada polonesa? Tinham de se manter ocupados. Uma grossa lona recobria o torno. Com a faca de Tadek, começaram a recortar um saco de dormir. Durante dois dias, lutaram com o espesso tecido. O projeto foi interrompido quando o navio chegou a Bremerhaven, Alemanha Ocidental, uma parada que Marek vira no pedido de remessas.
Espiando através de uma fresta do engradado, observaram os estivadores descarregarem mercadorias. De repente, Tadek sussurrou:: “Vamos tentar uma escapada.” Marek pôs a mão no ombro de Tadek. Eles haviam eliminado essa idéia antes de partirem: os marinheiros poloneses poderiam agarra-los antes que atingissem o cais, e, mesmo se o conseguissem, não sabiam se os alemães os ajudariam.
O porão foi fechado, a escuridão desceu mais uma vez e os motores do navio de novo começaram a soar. Os dois homens voltaram a trabalhar no saco de dormir, terminando-o no dia seguinte. Escorregaram, então, para dentro dele, e por fim sentiram-se agasalhados.
A longa viagem atlântica começou. O tempo parecia ter parado. Acendendo a lanterna, tentaram jogar cartas, mas não conseguiam se descontrair. Os dois se enfraqueciam. Suspiravam pelas pessoas de quem gostavam. Preocupavam-se com a diminuição dos mantimentos. Ansiavam por uma refeição quente, um banho quente. Queriam se esticar, mas, devido ao torno, só podiam se mover pouco mais de um metro. A solidão e a tensão mental cresciam. À medida que cada dia terminava, Marek fazia uma incisão no engradado.
Dormitavam com intermitências, os corpos doloridos. Após 11 dias, o chocolate e o pão acabaram. Acreditavam estar a três ou quatro dias de Halifax, com uma parada intermediária em Nova York. Jaziam quietos, tentando poupar as forças que lhes restavam. Rezavam em silêncio. Finalmente, os motores do navio pararam. O porão foi aberto e os engradados foram removidos. Um monta cargas pegou o deles. Sentiam-se quase livres!
Através da fresta, puderam ver a luz do dia – estavam indo em direção à entrada do navio. Mas aí o monta cargas girou, moveu-se pelo porão, afastando-se da entrada, e depositou-os em outro lugar! O engradado ficou espremido entre um tabique e outros engradados, impedindo sua saída. O desânimo os invadiu.
Dentro em pouco, o navio abandonava o porto. Tadek e Marek não sabiam era que tinham acabado de deixar Halifax. A próxima parada era de fato Nova York, mas, julgando ser Halifax, aguardavam-na com ansiedade. Ouviram de novo os monta cargas no porão. Depois as máquinas e as vozes que enfraqueciam. O porão foi fechado e os motores soaram de novo. Alguma coisa não dera certo. Estavam indo de volta à Polônia! “É o fim para nós”, sussurrou Tadek.
Ele pensou em desistir, mas Marek o animou: “Lembre-se de Ewa e de Stefan. Agüente por amor a eles!” Tadek recuperou a coragem. Havia ainda 15 litros de água; talvez conseguissem sobreviver por todo o caminho de volta à Polônia.
No dia seguinte, Marek fraquejou. Agora era ele quem se lamentava. Desta vez Tadek ofereceu apoio: “Cedo ou tarde eles tem de nos levar para algum lugar. Espere um pouco mais!”
Continuaram a se animar mutuamente. Mas, no fundo, pensavam o pior: Como morrerei? Será fácil ou difícil?
Dois dias depois, o Kazimierz Pulaski parou em outro porto. Desorientados, mas conseguindo se erguer, Tadek e marek não tinham idéia de onde se encontravam. Novamente o porão foi aberto, os monta cargas entraram. O engradado foi conduzido em direção à entrada; só que desta vez não parou. A luz solar se enviesou através das frestas do engradado, enquanto ele era erguido até a doca. Dentro, Tadek e Marek se abraçavam. Mas onde se encontravam? O maquinista do monta cargas estava a apenas um metro e pouco deles. Era um negro. “Estamos em Cuba”, sussurrou Tadek, assustado.
Decidiram permanecer ali até o anoitecer. Ocorreu então a Tadek: e se os outros engradados estivessem espremidos contra o deles e os encurralassem? “Não me importo com o que aconteça”, disse Tadek. “Vamos!”
Empurraram a porta e tombaram no cais, aos pés de um punhado de estivadores espantados. Após 18 dias no engradado, a luz e o ar livre os estontearam. Estavam medonhos: Barbados, lívidos e fracos. Cada um deles perdera 7kg. Tadek tirou o vocabulário polonês inglês do bolso e indicou a pergunta: “Onde estamos? Os trabalhadores do porto sorriram e responderam: “Estados Unidos...Baltimore.” Eram homens livres.

Hoje, Tadek e Marek permanecem em Baltimore e obtiveram asilo político. Sentem uma falta terrível dos entes queridos e estão tentando traze-los para os Estados Unidos. Enquanto isso, a sensação de liberdade “é maior do que poderíamos ter possibilidade de imaginar”, diz Marek, enquanto Tadek acrescenta: “A menos que se tenha conhecido a tirania, não se pode inteiramente avaliar o que é esta maravilha.”

* Foram usados pseudônimos para Nowake Zuraw, a fim de proteger seus parentes na Polônia.

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