quinta-feira, dezembro 28

Jamais esquecerei você

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1983
Autor : Ray Bradbury

Eles formavam um casal extraordinário, mas tolhido por um mundo em que as convenções importam mais que um verdadeiro encontro de almas.

Ann Taylor veio a ser professora em Green Town no verão em que ela fazia 24 anos e Bob Spauding, 14. Ann era o tipo de mestra para quem todos os alunos querem levar laranjas grandes ou flores cor de rosa. Era como os belos pêssegos do verão na neve do inverno, e como o leite fresco para o cereal numa quente manhã de verão. Também os raros dias do ano em que o tempo se equilibrava delicadamente como uma folha entre ventos eram como Ann Taylor, e deveriam chamar-se como ela em nosso calendário.
Quanto a Bob Spaulding, poderia ser descrito como um peixe, metálico e lento, nas águas ligeiras do ribeirão de Fox Hill, ou dizer-se que sua voz podia ser ouvida nas copas das árvores, onde reinavam os ventos, caindo aos poucos. E lá ia Bob Spaulding, para ficar sentado sozinho, olhando o mundo.
Naquela primeira manhã em que a Srta. Ann Taylor entrou na sala e escreveu seu nome no quadro negro, a sala de aula de repente pareceu iluminar-se, como se o telhado tivesse recuado. Bob Spaulding estava sentado com uma bolinha de papel escondida na mão, mas deixou-a cair. Depois da aula, foi buscar um balde de água e começou a lavar os quadros.
“Que é isso?” perguntou-lhe ela, da mesa onde estava corrigindo exercícios de ortografia, voltando-se, para ele.
“Os quadros estão meio sujos. Acho que devia ter pedido licença”, disse ele parando, sem jeito.
“Acho que podemos fazer de conta que você pediu”, respondeu ela, sorrindo, e, diante daquele sorriso, ele acabou de lavá-los todos com rapidez e depois bateu os apagadores, com tanta força que parecia que o ar ficara cheio de neve.
Na manhã seguinte, ele por acaso passou pela pensão de Ann no momento em que ela ia saindo a fim de ir para a escola.
“Bem, aqui estou”, disse ele.
“E sabe”, volveu ela, “não me surpreendo.”
“Posso levar os seus livros?”, perguntou ele.
“Ah, obrigada, Bob.”
Foram andando por uns minutos, sem ele dizer coisa alguma. Ann o olhou, um pouco mais baixo do que ela, e viu como ele estava à vontade, como parecia feliz. Quando chegaram junto do recinto da escola, ele disse: “É melhor eu deixar você aqui. Os outros garotos podem não compreender.”
“Não sei seu eu entendo”, considerou a Srta. Taylor.
“Ora, somos amigos”, explicou :Bob, com uma sinceridade natural.
“Bob...”, ela começou a dizer.
“Não faz mal.” E afastou-se.
E lá estava ele na sala de aula, e lá estava ele depois das aulas, nas duas emanas seguintes, sem dizer nada, lavando os quadros, calado enquanto ela trabalhava; e lá estava o silêncio do Sol se pondo no céu brando, e o farfalhar dos papéis e o roçar da caneta. Às vezes o silêncio perdurava até quase as 17:00, quando a Srta. Taylor encontrava Bob no último banco, esperando.
“Bem, está na hora de ir para casa”, dizia ela, e ele corria a buscar o chapéu e o casaco dela. Depois passavam pelo pátio vazio e falavam de uma porção de coisas.
“Que é que você vai ser quando crescer, Bob?”
“Escritor”, respondeu ele.
“Ah, é uma ambição grandiosa!”
“Eu sei, mas vou tentar”, disse ele. “Já li muito.”
E, depois de pensar um pouco: “Faz um favor par mim, Srta Taylor?”
“Depende.”
“Todos os sábados, dou um passeio a pé pelo ribeirão até o lago. Há muitas borboletas e pitus. Talvez a senhora gostasse do passeio.”
“Acho que não posso. Vou estar ocupada.”
Ela já ia perguntar com que, mas parou. “Levo sanduíches e refrigerante. Gostaria que fosse comigo.”
“Obrigada, Bob, talvez outra vez.”
“Eu não devia ter convidado você, não é?”, refletiu ele.
“Você tem todo o direito de convidar quem quiser”, disse ela.
Alguns dias depois, Ann lhe deu um exemplar de Grandes Esperanças, de Charles Dikens. Ele varou a noite, lendo, e depois ambos conversaram a respeito.
Todos os dias Bob se encontrava com a Srta. Taylor e várias vezes ela ensaiou dizer-lhe que não o fizesse, mas nunca conseguia.
Então, numa manhã de sábado, ele estava no riacho, de calça arregaçada até os joelhos, abaixado para apanhar um camarão da água doce, quando levantou os olhos e a viu.
“Bem, aqui estou eu”, disse ela, rindo.
“E sabe”, atalhou ele, “não me surpreendo.”
“Quero ver os pitus e as borboletas”, pediu ela.
Andaram até o lago e sentaram-se na areia, um vento morno soprando à volta deles, fazendo esvoaçar os cabelos de Ann e o babado na sua blusa. Bob sentou-se alguns metros atrás dela e ambos comeram os sanduíches e beberam o refrigerante de laranja, com ar solene.
“Nunca pensei fazer um piquenique como este”, disse ela.
“Com um guri”, acrescentou ele.
Disseram pouco mais que isso a tarde toda.
“Está errado”, confessou Bob, depois. “e não sei por que. É só passear a pé, apanhar borboletas e camarões, e comer sanduíches. Mas mamãe e papai iam implicar comigo se soubessem, e meus colegas também. E os outros professores haviam de rir de você, não é?’
“Acho que sim. Não sei bem como é que vim parar aqui”, disse ela.
Foi mais ou menos só isso, o encontro de Ann Taylor com Bob Spaulding: duas ou três borboletas, um livro de Dickens, uma dúzia de pitus, quatro sanduíches e duas garrafas de refrigerante.
Na segunda-feira seguinte, se bem que Bob esperasse muito tempo, ela não saiu para ir à escola. Já tinha ido antes. E, naquela tarde, saiu mais cedo, com dor de cabeça.
Mas na terça-feira, depois das aulas, estavam ambos de novo na sala silenciosa – ele satisfeito, limpando o quadro negro, ela trabalhando com seus deveres, em paz, quando de repente o relógio da torre bateu as 17:00. O som forte do bronze era de estremecer o corpo, fazendo a pessoa parecer mais velha a cada minuto. A Srta. Taylor largou a caneta.
“Bob”, disse ela, “venha cá.”
“Sim, senhora”. Ele pousou a esponja.
Ela fitou Bob atentamente por um instante, até ele desviar o olhar.
“Bob, será que você sabe de que lhe vou falar?”
“Sei”, disse ele, por fim. “Sobre nós.”
“Quantos anos você tem?”
“Vou fazer 14.”
“Você sabe quantos anos eu tenho?”
“Sei sim, senhora. Já soube. Tem 24 anos. E eu vou ter 24 daqui a 10 anos, quase”, replicou ele. “Mas às vezes sinto que já tenho 24.”
“É, e às vezes você quase age como tal.”
“É mesmo?”
“Agora fique quieto. É muito importante nós compreendermos o que está acontecendo. Primeiro, vamos admitir que somos os melhores amigos do mundo. Nunca tive um aluno como você, nem nunca senti tanta afeição por um menino.” Ele corou, ao ouvir isto. Ela continuou. “E vou falar por você: você me achou a melhor professora que já conheceu.”
“Ah, mais do que isso”, disse ele.
“Talvez mais do que isso, mas é preciso encarar os fatos – uma cidade e seus moradores, e você e eu. Já pensei sobre o assunto, Bob. Não julgue que ignorei os meus sentimentos. Em certas circunstâncias, a nossa amizade seria estranha, mas você não é um menino comum. E sei que eu não sou doentia, nem mental nem fisicamente, e que o que se deu aqui foi uma estima sincera pelo seu caráter e bondade. Mas não são essas as coisas que levamos em conta neste mundo, a não ser que apareçam num homem de certa idade. Não sei se estou me exprimindo direito.”
“Se eu fosse 10 anos mais velho e uns 40cm mais alto, seria bem diferente”, atalhou ele.
“Sei que parece uma grande tolice”, disse ela, “já que você se sente muito adulto e certo, e não tem nada do que se envergonhar. Talvez um dia o povo chegue a julgar a mente das pessoas tão precisamente que dirá: ‘Este é um homem, embora o corpo dele seja apenas o de um rapaz de 13 anos, com a noção de responsabilidade de um homem.’ Mas até então, temos de obedecer aos critérios de idades e alturas, num mundo comum.”
“Não gosto disso”, disse ele.
“Talvez eu também não goste, mas na verdade não há nada a fazer, quanto a nós.”
“É, eu sei.”
“Temos de resolver o que vamos fazer”, sugeriu ela. “Posso arranjar uma transferência desta escola...”
“Não vai ser preciso”, informou ele. “Nós vamos nos mudar. Minha família e eu vamos morar em Madison.”
“Não tem nada a ver com tudo isso, não é?”
“Não, não, o meu pai arranjou outro emprego lá. Fica só a 80km daqui. Posso vir visitá-la, não?”
“Acha que ia ser boa idéia?”
“Não, acho que não.”
Ficaram sentados ainda um pouco na sala silenciosa.
“Quando é que aconteceu tudo isto?”, perguntou ele, desamparado.
“Não sei. Ninguém sabe, jamais há milhares de anos”, respondeu ela. “Às vezes acontece que duas pessoas se gostam quando não deviam. Não sei explicar.”
“Há uma coisa que quero que você se lembre”, disse por fim. “Na vida, há certas compensações. Você agora não está satisfeito, nem eu, mas vai acontecer alguma coisa para remediar. Acredita nisso?”
“Gostaria de acreditar. Se você ao menos esperasse por mim”, explodiu ele.
“Dez anos?”
“Aí eu teria 24 anos.”
“Mas eu teria 34, e talvez fosse outra pessoa inteiramente diferente. Não, não creio que isso seja possível. “
Ele continuou ali sentado, muito tempo.
“Não vou nunca esquecer você”, disse por fim.
“Há de esquecer.”
“Vou arranjar um meio de nunca esquecer você”, reafirmou ele.
Ela foi apagar os quadros.
“Eu ajudo”, disse Bob.
“Não, não”, cortou Ann, depressa. “Vá indo para casa.”
Ele saiu da escola. Olhando para trás, viu a Srta Taylor pela janela, junto do quadro, lentamente apagando as palavras escritas com giz.
Ele se mudou na semana seguinte e ficou fora 16 anos. Embora se encontrasse a 80km de distância, só voltou a Green Town quando já estava com quase 30 anos e casado.
Então, numa primavera, quando iam passando por lá, a caminho de Chicago, pararam para ficar um dia.
Bob deixou a mulher no hotel e passeou a pé pela cidade, e por fim perguntou pela Srta Ann Taylor.
“Ah, sei, aquela professora bonita. Morreu em 1936, pouco depois que você partiu.”
Tinha se casado?
“Não, nunca se casou.”
Bob foi ao cemitério e encontrou a lápide dela, que dizia: “Ann Taylor, nascida 1910, morta 1936.” E ele pensou: Tinha 26 anos. Ora, agora sou quase quatro anos mais velho que você, Srta. Taylor.
Mais tarde, naquele dia, o povo da cidade viu a mulher de Bob Spaulding andando ao encontro dele, sob os olmos e carvalhos. Ela era os belos pêssegos do verão na neve do inverno, e era o leite fresco para o cereal numa manhã quente de verão. E aquele era um dos poucos e raros dias do ano em que o tempo se equilibrava como uma folha entre ventos e deveria se conhecer, todos concordavam, pelo nome da mulher de Robert Spaulding.

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