quarta-feira, dezembro 27

Um camarada não voltou

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1971
Autor : Ken Agnew (segundo narrativa feita a Kenneth Schaefer)

Durante anos o jovem Karl Bley sonhou em fugir do mundo comunista. De repente ele deu o salto.

Era agora ou nunca para Karl Bley. Meti meu aviãozinho numa curva fechada e rumei para o navio alemão. O vôo rasante sobre o navio era o sinal para o maquinista de 24 anos pular na água.
Eu estava apreensivo. A sete milhas da cadeia de ilhas Florida Keys o Oceano Atlântico é geralmente hostil, e naquele dia de novembro de 1970 ondas fortes esperavam o maquinista em seu salto para a liberdade. Se ele escapasse à poderosa sucção da hélice do navio, teria de arriscar-se com os tubarões até que a lancha de socorro o alcançasse.
E eu nem tinha certeza de que Karl Bley estivesse no navio. Se estivesse, teria ele coragem de saltar – ou desanimaria com os 12 metros que o separavam das águas revoltas?
Os Irmãos Bley. Fugir era o sonho de Karl Bely havia dois anos, desde a noite em que, a bordo do mesmo navio misto da Alemanha Oriental, o Wolkerfreundschaft, ele passara ao largo das luzes de Miami. Mil milhas a noroeste, em Villa Park, Illinois, morava seu irmão mais velho. Eric Bley conseguira deixar a Alemanha Oriental em 1955, e fora seguido um ano depois por sua noiva, Marlis. Os dois eram agora americanos naturalizados. Eric abrira uma firma de máquinas de construção em um subúrbio de Chicago, e seus negócios iam bem.
Durante 15 anos os irmãos se corresponderam. (Eles combinaram um código para iludir os vigilantes censores postais da Alemanha Oriental.) Logo após uma viagem a Havana em 1968, Karl escreveu a Eric dizendo que se tornasse a passar tão perto dos Estados Unidos, estava disposto a “pular e nadar”. E não era conversa. Eric sabia o que ia no íntimo do irmão. Ele havia sentido a mesma ânsia de liberdade.
Eric sabia também a dificuldade de cobrir a nado as sete milhas do navio à praia, de modo que a aflição era de ambos os lados da Cortina de Ferro. Foi nesse ponto – dois meses antes – que eu entrei no esquema.
O plano. Eric tinha ido a Florida Keys, ao sul de Miami, à procura de ajuda para o plano que ele e o irmão haviam traçado. Em Duck Key ele viu um excelente barco de aluguel, o Pequod, pertencente ao meu velho amigo Comandante Bob Lowe. Veloz e em ótimas condições, o Pequod era o barco ideal para passar o Volkerfreundschaft quando ele navegasse pelo litoral da Flórida a 18 nós. Eric conversou com Lowe, que o escutou em silêncio.
“Você quer pôr um barco de salvamento ao lado do navio no momento exato em que o seu irmão vai saltar?”, perguntou Lowe.
Eric confirmou.
“É preciso haver coordenação terra-ar. E um sinal para avisar seu irmão de que tudo está pronto para o salto.”
Precisando de um piloto, Lowe apresentou-me a Bley. Foi Lowe que me convenceu. Percebi que ele tinha gostado de Eric. Antes de Eric terminar a exposição do plano, eu estava tão cativado quanto Bob pela determinação de um homem na luta pela vida do irmão.
Eric sabia quase tudo o que precisávamos saber sobre o Volkerfreundschaft, graças a um folheto de propaganda mandado por Karl. Os passageiros embarcariam no porto báltico de Rostock para uma viagem a Havana, o oásis comunista no Ocidente, e voltariam a Rostock. O folheto trazia uma fotografia do navio, e o texto dava até as freqüências captadas pelo rádio de bordo.
Traçamos um plano. Eu voaria a rota que a maioria dos navios comunistas seguem na viagem para Havana – das Bahamas eles seguem diretamente no rumo de Palm Beach, depois contornam o litoral da Flórida até passarem os Keys. Avistando o navio, eu me comunicaria pelo rádio com Bob e Eric, que sairiam no Pequod. Quando eles alcançassem o navio, eu faria um vôo rasante com o avião. Esse seria o sinal para Karl saltar.
Na segunda semana de novembro Eric disse-nos que Karl estava no navio. Ele estaria ao largo dos Keys no dia 26 de novembro. Vestiria uma jaqueta de cor viva para facilitar o reconhecimento e levaria um salva-vidas debaixo dela. Mas, escreveu Karl, mesmo se o barco de salvamento não aparecesse, ele saltaria antes que o Volkerfreundschaft fizesse a volta para afastar-se do litoral americano.
Alarma falso. Para garantir uma vigilância permanente, procuramos a colaboração de George Butler, engenheiro aposentado e um entusiasta piloto. Durante dois dias ele e eu voamos pala lá e para cá a 60 milhas entre Palm Beach e as Bahamas, bem em cima da rota que o navio seguiria. Estendemos a vigilância também para o sul, acompanhando os Keys até American Shoal, um farol abandonado a 16 milhas de Key West – ponto de virada da maioria dos navios russos que demandam Cubam. Nada conseguíamos, a não ser cansaço.
Às cinco e meia da manhã de 27 de novembro, Eric deixava desanimado o seu hotel de Duck Key para mais um vôo de reconhecimento. De repente, olhando para a escuridão do oceano a leste, ele viu luzes – o navio! Eric correu para o carro e tocou para o aeroporto de Marathon em Key Vaca. Eu o esperava, e quando decolamos vimos o navio, o costado todo iluminado. Apaguei as luzes das asas e o foto de fuselagem para não alarmar o objetivo. Voando alto sobre o navio, pegamos o folheto de propaganda para identificar-lo pela fotografia. O céu e o mar ainda estavam escuros, mas as luzes do convés nos ajudaram – o navio no mar era o mesmo do folheto, nem faltava a linha vermelha acompanhando o casco.
Improvisação. Em poucos minutos estávamos de volta ao aeroporto, onde Bob Lowe nos disse que não havia tempo para ir a Duck Key, pegar o Pequod e ainda alcançar o navio, que já passava pela cidade de Marathon a 18 nós.
“Será preciso um barco que faça 40 nós para alcança-lo”, disse Lowe. “Vamos Eric! Vamos arranjar um barco nem que seja roubado.” Segundos depois o carro roncava na estrada, rumo a Big Pine Key, 30 quilômetros ao sul.
A essa altura, Butler já tinha chegado, e ia fazer o vôo de vigilância, a 600 metros, ficando o vôo rasante para mim. Pouco antes de decolarmos, pedi à mulher de Butler que chamasse a Guarda Costeira: “Diga-lhes que você recebeu uma mensagem muito clara a respeito de American Shoal, e peça para mandaram um barco imediatamente.” Precisávamos de algum apoio. Eu receava que Bob e Eric não conseguissem um barco, e que Karl estivesse mesmo disposto a pular na água de qualquer maneira, com ou sem sinal.
Voei para Big Pine Key no momento justo em que um barco de fiberglass de 22 pés equipado com motor de popa saía da marina de Sea Center e rumava para a claridade que começava a se mostrar a leste. O barco enfrentava fortes ondas quando entrou no mar aberto. Eu não acreditava que Lowe avistasse o navio, e passei por cima dele para pô-lo numa rota de interceptação que o colocasse adiante do navio.
Nesse ponto o barco parou completamente. Vi Bob pelejar com o motor até que ele pegou. Meia milha adiante o motor parou de novo.
“Bob não vai conseguir!”, gritei para Butler, pelo rádio.
Enquanto eu pensava se devia ou não dar o sinal, vi a espuma na popa do barquinho, sinal de que Lowe ligara o motor pela terceira vez. Ainda não estávamos derrotados!
Rumei para o ponto combinado, bem na dianteira do Volkerfreundschaft para esperar o aviso de Butler de que o barco se aproximava.
“Já!”, avisou ele afinal.
“Muito bem. Lá vou eu!”
Quatro na água. Rumei para a proa do navio e passei paralelo a bombordo, pouco acima dos cachos de espuma branca que se formavam na água. Avistei passageiros na amurada – uns 20 rostos dos mais assustados que já vi. No tombadilho de ré fiz uma virada brusca para a esquerda, tão perto que quase raspei o mastro de ré com a ponta da asa. Se Bley estava no navio ele não podia deixar de ter ouvido o sinal. Mas durante um segundo torturante nada aconteceu – eu só via gente boquiaberta na amurada quando passei roncando a estibordo.
“Ninguém pulou!”, gritei ao microfone.
Mas logo um vulto de camisa vermelha voava sobre o gradil e mergulhava na água.
“Ele pulou!”, gritei, quase engasgado de emoção.
Meu rádio estalou de repente, e a voz d eButler entrou:
“Tem dois na água!”
Olhei incrédulo. Pela janela lateral eu vi não dois, mas três! Não...quatro! Eric tinha-nos avisado: “Se o garoto pular, estejam atentos; talvez venham outros.” E vieram.
“Puxa! Que coragem!”, pensei. Nenhum dos outros três sabia do nosso plano. Apenas Karl tinha colete salva-vidas – os outros só tinham bóias circulares que jogaram na água antes de pular. Circulei sobre as figuras que se debatiam tentando alcançar as rodelas alaranjadas na água. Aquilo era coragem da mais pura.
A pilotagem de Lowe no barco de salvamento foi magnífica. O último homem nem bem tinha caído na água, Bob já passava pelo navio e Eric Puxava Karl para dentro.
A seguir veio a reação do navio. Sabíamos que os vermelhos estavam preparados para uma tal possibilidade, e debatemos muito sobre o tempo que o Volkerfreundschaft levaria para fazer uma volta de 180 graus. Calculamos mal.
Eric e Bob estavam ainda puxando os homens da água quando o navio inclinou-se numa virada fechada a toda velocidade. Era espantoso ver um navio grande inclinar-se assim, e por um momento tive a impressão de que o comandante queria todos os homens na água.
Pouco faltou! Quando o último homem foi retirado do mar o navio já vinha perto do barco de salvamento. Bob rumou para águas rasas perto da praia, onde o Volkerfreundschaft não podia segui-lo. Finalmente o navio alemão abandonou a perseguição, fez uma manobra em S e tomou o rumo sul na direção de Havana. Estava tudo acabado.
O rosto da liberdade. Mais tarde, sentado ao lado de Karl numa sala do posto da Guarda Costeira em Key West, contemplei o rosto decidido daquele rapaz magro, de cabelos escuros, da Alemanha Oriental. Seu sonho se realizara, quando Karl ergueu os braços em sinal de vitória e gritou para o homem da proa do barco: “Bruder! Bruder!”
Os outros que saltaram para a liberdade com ele era o Dr. Manfred Kupfer, neuropatologista de 37 anos, de Leipzig; seu irmão, Dr. Renhold Kupfer, patologista de 33 anos, de Zwickau; e o Dr. Peter Rost, de 37 anos, microbiologista, também de Zwickau. Eles haviam embarcado no navio com a esperança secreta de que surgisse alguma oportunidade de fuga. O salto de Karl foi a inspiração que eles esperavam.
Por intermédio de Eric, que serviu de intérprete, fiquei sabendo que Karl estava no convés desde muito cedo observando as luzes dos Keys, estudando a praia com binóculos à procura de um sinal qualquer de ação. “Vi quando vocês levantaram vôo do aeroporto”, disse-me ele. “Vi você apagar as luzes, e quando ouvi você no escuro acima do navio tive certeza de que Eric viria.”
Olhando aquele rapaz, de 24 anos, cujo rosto me garantia que o salto seria dado, com ou sem aviso, compreendi de repente o que significava a liberdade.

Nenhum comentário: