segunda-feira, dezembro 4

Espelho da minha disposição

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1977
Autor : Bil Gilbert

Este cão de pêlo avermelhado não verá outro inverno; é altura de meditar em como decorreram nossas vidas.

No início do inverno, há certos dias límpidos e luminosos em que devem ser feitas determinadas coisas que, antes dessa época, são despropositadas ou completamente impossíveis, tais como rachar lenha. Esperamos até que uma leve camada de neve cubra o solo e os raios solares estejam suficientemente quentes para derrete-la ao meio-dia. Com madeira seca, uma serra afiada, um bom machado e tempo suficiente, parece não haver mais nada que devêssemos ou quiséssemos fazer do que ficar rachando lenha. Temos a sensação de que éramos capazes de continuar naquilo o dia todo...
Meu velho cão de pêlo avermelhado, Dain, sobe a ladeira caminhando com dificuldade e se esgueira por baixo da cancela. Procura um lugar ao sol, do lado da pilha de toros que fica abrigado do vento, deita-se com lentidão e se enrosca sobre o casaco que eu despi e joguei no chão. Aí fica o dia inteiro, enquanto o trabalho prossegue. Sedentário como é, ele está de serviço, fazendo aquilo que toda a vida fez sempre junto de mim, no banco do carro a meu lado, sobre meu saco de dormir, sob minha cama, por baixo de minha secretária. Dain é um cão de companhia; especificamente, de minha companhia. Corresponder a meus estados de espírito e atividades tem sido seu trabalho a vida inteira.
Dain me observa rachando lenha com um ar pouco interessado. Se lhe falo ou o afago durante uma pausa, levanta a cabeça e bate com a cauda no chão em resposta. De contrário, esgaravata, ergue o focinho para farejar quaisquer odores, dormita ao sol.
Foi em tempos um cão corpulento de 45kg, capaz de correr durante horas, trepar a penhascos como uma cabra, obrigar um guaxinim a se refugiar numa árvore. Está agora com 11 anos e pesa menos 10kg, seus flancos está magros, seu traseiro perdeu firmeza, seu pêlo, outrora lindo ( uma farta pelagem vermelho dourada da cor das folhas dos carvalhos no outono e abundante como a de um castor), está agora rareando, e com malhas brancas. Ele próprio já vai estando um pouco surdo, e algumas vezes também desmemoriado.
Sua idade e doenças tem feito alterar o padrão de nossas duas vidas. Por uns tempos, não haverá mais caçadas no mato; seria cruel pedir-lhe isso. Agora, é uma questão de cortesia dizer-lhe com um pouco de antecedência que estou indo a qualquer lugar, a fim de que ele não tenha de levantar-se rapidamente para seguir-me. Quando quero bater papo, que não se sinta obrigado a pôr-se de pé ou, pior do que isso, tentar faze-lo e não ser capaz.
Enquanto está deitado apanhando sol encostado à pilha de lenha, ele por vezes geme quando muda de posição. Alguns de seus achaques são aqueles que sobrevêm normalmente a qualquer cão grande de idade avançada, mas, devido à maneira como ele abusou de si próprio e os outros abusaram dele, os anos se tornaram especialmente duros para Dain.
Quando ele tinha dois anos, caminhamos três mil quilômetros através de uma cadeia de montanhas; mais precisamente, eu caminhei três mil quilômetros e Dain talvez seis mil. Ele explorava atalhos laterais, corria à frente, voltava, ficava para trás a fim de investigar o que quer lhe chamasse a atenção. Desde então, percorreu talvez mais oito mil quilômetros em matas, montanhas e desertos, através de pedras e gelo, e pelo meio da neve. Suas pernas estão agora artríticas, com cicatrizes deixadas por rochas calcárias e fragmentos de gelo, por arame farpado, por espinhos de roseira brava.
Recordo-me de ter partido numa quente manhã de junho para percorrer 25km através de um grande deserto. Não levávamos água porque, com meu orgulho, pensei que quando dela precisasse podia encontra-la em qualquer lugar da região, mas enganei-me. Dain caminhava com um ruído surdo, respirando com dificuldade, de língua pendente. Ele ainda prosseguia, meio morto; depois, começou a cambalear e, finalmente, teve um colapso, entrando em coma. Foi arrastado e levado às costas durante os últimos oito quilômetros até que chegamos a uma cisterna na qual tropecei e onde me sentei, segurando sua cabeça acima da água até ele se reanimar.
Uma noite, dormimos juntos de um pequeno lago num bosque. Três trutas, já limpas e envolvidas em folhas, ficaram escondidas na forqueta de uma árvore; para comermos pela manhã. O cheiro do peixe atraiu um urso noturno. Dain se ergueu e desapareceu na escuridão; após algumas corridas para cá e para lá, o urso sumiu fugindo pelo matagal de abetos, mas Dain ficou com algumas costelas fraturadas.
Ele já foi muito maltratado pelas presas de um coati, escoiceado por um cavalo, dilacerado pelas garras de um açor, mordido por uma serpente venenosa; caiu num poço de mina; sua perna esquerda foi esmagada por um caminhão. Agora, são evidentes os indícios de que seus dias estão contados; ele já não verá outro inverno.
Dain e eu temos sido bons companheiros, um exemplo do que é possível entre o homem e o cão. Parte de nossa linguagem mútua é tradicional: sente-se, fique, venha, me siga, vá buscar, não; o abanar da cauda, a cabeça no colo, o chorar à porta, uma variedade de ganidos e latidos. Quando anda vagueando lá fora, há um latido especial como resposta a um estranho que passa na estrada, a um desconhecido que entra na picada, a pessoas que conhece, às que vão de carro e às que vão a pé. Há certos latidos para cães, outros para gatos e outros ainda para seres que não são pessoas, nem cães nem gatos. Dain não solta latidos com o fim de dar qualquer informação específica, mas como manifestação externa de seu sentir interior. O resultado, porém, é o mesmo do que se estivesse emitindo palavras.
Dentre uma variedade de sinais, eu sei quando Dain está excitado, alarmado, contente, fatigado, confuso. Ele sabe tudo isso acerca de mim... e ainda mais. Reconhece diferentes graus de minha ira, alegria, incerteza, receio, triunfo, dor, doença, júbilo, impaciência, aborrecimento, satisfação – e responde a todos eles. Houve uma época em que meus amigos e eu celebrávamos as noites de fim de ano de forma exuberante e pouco moderada. Eu costumava me levantar na manhã seguinte e dar um passeio pelas montanhas com alguém que estivesse disposto a isso. Há nove anos, ninguém foi comigo. Estava um dia carregado de nuvens e sombrio. Eu caminhava, evidentemente de ressaca, com mau gosto na boca, má disposição no estômago, cabeça a latejar e meditando na fraqueza do caráter e na estupidez geral.
Nesse tempo, quando Dain era mais jovem, se eu não lhe pedisse que ficasse, ele tomava gostosamente parte em nossos passeios sem destino, desfrutando um prazer canino dos sons e aromas com que deparava. Naquela manhã de Ano Novo, estando tão preocupado comigo próprio, não lhe prestava muita atenção. Então, olhei para baixo e o vi caminhando silenciosamente a meu lado, de cabeça e cauda pendentes – a imagem da depressão. “Meu Deus!”, lembro-me de pensar, “ele está de ressaca por simpatia.”
Um cão de companhia reage ao nosso estado de espírito imitando-o, funcionando como uma espécie de espelho vivo. À medida que os anos foram passando, houve ocasiões em que Dain, por seu comportamento, me mostrou como eu me estava sentindo. Eu podia não saber até que ponto me estava achando bem disposto ou deprimido, entusiasmado ou irritado, mas então ficava sabendo, quando, por acaso, surpreendia a atitude e disposição do meu cão.
O amor, disse alguém, é o desejo de entender os conhecimentos de outrem. Se for assim, as afirmações de que os cães amam os homens não são tão piegas como por vezes parecem. Este velho cão de pêlo avermelhado me conhece de uma forma tal que nenhum outro ser vivo jamais me conheceu ou virá a conhecer. Um cão não pode aconselhar ou discutir ou criticar. Não tem possibilidade de exprimir algo como: “Você se sente mal porque bebeu demais e é um imbecil.” Há momentos em que ser objeto de um amor sem críticas é provavelmente uma coisa triste, mas também há ocasiões em que isso se torna uma sensação imensamente agradável.
Certa noite, os acontecimentos me deram uma rápida e temerosa compreensão daquilo que Dain podia realmente valer para mim. Nós nos encontrávamos sozinhos numa cabana num ermo desfiladeiro, através do qual serpenteia uma horrível estrada pedregosa. Má como é, essa estrada só serve para trânsito de indivíduos cujas intenções não são das melhores. Nessa noite, eu estava na cabana trabalhando à luz de uma lanterna em apontamentos de campo relacionados com coatis. Ouvi um carro lá embaixo e depois vozes; então, houve alguns tiros. Peguei num rifle e saí com Dain. Descemos silenciosamente um pouco do atalho que se perdia através de um denso bosque de carvalhos. Ouvimos vozes, depois passos no atalho que passava lá embaixo e vimos o clarão dos faróis. Dain avançou na direção de onde vinham os ruídos, ladrando ferozmente.
“Mata esse cachorro maldito!” ouvi alguém dizer – e, logo a seguir, dois tiros. Praticamente sem refletir, desatei a correr na direção dos carvalho e comecei a gritar ameaças.
As vozes e ruídos se afastaram. Pouco depois, ouviu-se o bater da porta de um carro e este se pôs em marcha. Fiquei trêmulo, não tanto pelo encontro com o perigo, que provavelmente era mínimo, mas devido à minha reação perante ele. Estava tremendo porque, num momento de ira cega, parecia que teria morto outro homem em defesa de um cão. É bastante duvidoso que haja circunstâncias em que valha a pena uma pessoa pagar esse preço, mas, por alguns instantes, considerei Dain digno dele.
Enquanto continuava rachando lenha, pensava no velho cão de pêlo avermelhado, observava-o e falava com ele. Quando ele dormitava ao sol dos primeiros dias de inverno, eu refletia sobre outro preço que, dentro em pouco, teria de pagar por Dain. Num dia já muito próximo, talvez mesmo antes de chegar a primavera, aconteça o que acontecer, antes que sua idade e debilidade se tornem para ele um estado de permanente humilhação e dor, eu o matarei. Não será um veterinário a faze-lo com uma agulha, numa sala esterilizada. Se Dain puder, me seguirá; se não, eu o levarei para um lugar tranqüilo e o matarei com minhas próprias mãos. Será essa a última coisa que faremos juntos; então, quando esse doloroso momento tiver de chegar, os soluços, a dor e a perda constituirão o preço derradeiro que eu terei de pagar.

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