terça-feira, dezembro 5

Eu e meus amigos congelados

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereiro de 2002
Autor : Randy Wayne White

Seria eu um dos malucos dispostos a saltar nas águas gélidas do Alasca?

Não se pode dizer que os habitantes do Alasca inventaram o comportamento excêntrico, mas suas pretensões de eleva-lo à categoria de arte devem ser levadas a sério. Pense tanto nos mentalmente perturbados pela neve quanto nos agoniados pela depressão de inverno que, todo mês de janeiro, mergulham na Baía Ressurrection. Pense também nos milhares que vão observa-los.

Como vivi quase sempre no sul dos Estados Unidos, nunca passei pela agonia da depressão de inverno. Percebi, porém, que compreender esse distúrbio seria um passo importante para entender o Alasca. Poderia também explicar por que, em um instante de loucura, eu havia concordado em viajar a Seward para mergulhar na Baía Ressurrection no meio do inverno.
No entanto, como acabaria sabendo mais tarde, o infame Mergulho do Urso Polar de Seward não é apenas para os que sofrem com a depressão do inverno. É, isto sim, para os que ficaram completamente doidos.
“Aqui no Alaska”, Celeste Dorsey me diz, “sabemos inventar diversões próprias.’
Eles também sabem dirigir sobre o gelo – razão pela qual optei, na viagem de Anchorage a Seward, por pedir uma carona a Celeste, em vez de me arriscar sozinho nos 200 quilômetros de estrada de neve compacta.
Celeste era uma boa escolha como motorista por no mínimo dois motivos; na qualidade de diretora regional da American Câncer Society, em benefício da qual o Mergulho do Urso Polar foi criado, ela poderia me contar a história do evento. Além disso, seu carro tem pneus apropriados para a neve, e Celeste me garantiu que sabia como usa-los.
Partimos em condições típicas do sul do Alasca no mês de janeiro: uma violenta tempestade de chuva e neve, que por duas vezes se transformou em chuva de granizo antes de se acomodar em uma intensa nevasca quando chegávamos às primeiras elevações das Montanhas de Chugach.
“Deve estar agradável e quente para você mergulhar”, comenta Celeste, animada. “Houve um ano, não faz muito tempo, em que a temperatura era de –38º C. Amanhã pode subir à temperatura de congelamento.”
Estou tão entorpecido pela visibilidade zero nas curvas da estrada montanhosa que mal consigo responder. Mas Celeste continua a falar: “Só não pode é ficar quente demais. O Mergulho de Seward é o mais frio do mundo, e é assim que a maioria do pessoal gosta.”
O mergulho mais frio do mundo – até aí eu já sabia. Celeste gentilmente vai me colocando a par do restante. O Mergulho de Seward surgiu em 1986, quando uns poucos moradores da cidade arrancaram dos patrocinadores a promessa de fazer doações em dinheiro vivo à Câncer Society se os arrecadadores mergulhassem na baía. Eles mergulharam, os patrocinadores pagaram e assim foi criada uma nova tradição no Alasca.
“No início os mergulhadores eram poucos”, prossegue Celeste. “Mas a prática vem se difundindo muito. Agora, há um festival de uma semana na época do mergulho, com boliche de gelo, leilão de solteiras, competição de tração para cães, comida mexicana, entre outras variedades. Mesmo assim, somando os participantes dos últimos seis anos, foram menos de cem mergulhadores.”
Fico surpreso com o número pequeno e digo isso a ela, largando por um instante o painel do carro.
Celeste explica: “Milhares de pessoas vem assistir, mas, convenhamos, quantos são malucos o suficiente para mergulhar no Golfo do Alasca em janeiro, em pleno inverno? Este ano serão uns 25, mas esse número vai crescer. Pessoas de outros estados já estão nos procurando querendo se inscrever para o ano que vem. Hoje dá prestígio você contar que deu o mergulho mais frio do mundo – que é um Urso Polar de Seward. E com razão.
Chamamos os nossos mergulhadores de ‘os poucos, os bravos, os congelados’”.
As palavras dela me alertam: os poucos, os bravos – os congelados.
Em Seward, caminho silenciosamente pelas ruas – ou, melhor dizendo, escorrego silenciosamente, pois as ruas não passam de grandes placas de gelo. O Desfile do Urso Polar vai começar logo, e ao meu redor vejo caminhonetes de entrega enfeitados, estudantes em evoluções acrobáticas e indivíduos com roupas esquisitas. É tradição os mergulhadores usarem fantasias estranhas. (Segundo Celeste, os super heróis de capa são muito populares, assim como as latas de cerveja gigantes – metaforicamente mais sintonizadas com a ocasião.) Mesmo assim, essas pessoas, embora vestidas com extravagância, movimentam-se sobre o gelo, se não com graça, ao menos com facilidade.
Não me importo com a dor de um tombo. É a perda da dignidade que gostaria de evitar. Não estou vestido para a ocasião – vim lá da Flórida para mergulhar, mas não trouxe roupa especial. Se me esparramar no chão agora, diante de meus pares – Rei Netuno, Homem Alce, Mulher Leopardo, Mr. Gorila e os demais -, a vergonha só vai aumentar.
Com o cuidado exagerado de um sofredor de hemorróidas paralisado, consigo atravessar o gelo e assumir meu lugar. O desfile logo se inicia, arrastando-se como uma ameba em direção ao pequeno porto.
Tenho esperança de que as condições da rua melhorem. Não melhoram. Nossa rota segue um brilho de gelo que parece não ter fim. Não há onde apoiar o pé.
“Quanto mais teremos de andar?” pergunto à Mulher Leopardo.
Aqueles de nós que vão mergulhar formaram um grupo coeso, uma irmandade de idiotas caminhando ombro a ombro.
“Mais ou menos 1,5 quilômetro” responde ela, despreocupada.
E por que se preocuparia? Ela não está escorregando. Nem os outros. (Mais tarde, Flip Foldager, da loja de ferragens, iria me revelar um segredo local: travas nas solas das botas) Mas agora, para mim, isso não é um desfile; é a prova de que o inferno, na verdade, é congelado.
Chegamos enfim ao pequeno porto, com seu restaurante e píeres com fileiras de barcos atracados. Há gente por toda parte; multidões se espremem à beira da água para saudar os que estão prestes a se atirar na Baía. Honestamente, eu não havia pensando muito sobre o mergulho em si. Afinal, já tomei banho gelado, logo entendo de água fria, certo?
Já não tenho tanta certeza. Uma ambulância está estacionada junto ao píer. E a água da baía não se parece com nenhuma outra: é cinzenta, mas completamente transparente, como uma grande laje de cristal de rocha esfumaçado. Além do mais, há gelo boiando nela. Não apenas pedaços, mas grandes poças semiderretidas, como se uma carcaça de carga de alguma fábrica de sorvetes tivesse encalhado ali e derramado enormes picolés. A água do mar, como bem si, congela por vota de –1,5 º C, portanto devo admitir que esta água é provavelmente mais fria do que o tipo de chuveirada a que estou habituado.
Do barco da patrulha costeira o locutor começa a convocar os mergulhadores. Lá vão eles, um a um: a Mulher Leopardo, o Homem Alce, a Mulher Mariposa, etc. mergulham de pé e imediatamente batem as pernas até a superfície, as mãos se agitando, os olhos esbugalhados. Começo a me sentir melhor. O choque ainda não matou ninguém na hora.
Quando o locutor anuncia meu nome, já estou só de short de corrida e me aproximo do píer com um plano bem elaborado em mente: vou mergulhar de cabeça e depois emergir com um floreado – pés em ponta, costas arqueadas. Nada forçado ou óbvio: apenas um alegre lembrete de que não é todo mundo que nada como um cão se debatendo.
Piso no píer e salto no ar com os pés unidos, e a última lembrança que tenho é a desagradável sensação da multidão vaiando porque perdi meu short. Quero puxa-lo de volta, mas não consigo me mover porque os dedos estão entorpecidos e os braços, inertes. Partes do meu corpo se enrijecem violentamente, e eu teria gritado por socorro se minha mente não houvesse parado de funcionar.
Mais tarde, ao fazer pesquisa do que deveria ter feito antes, aprenderei a respeito da histeria psicológica que se iniciou no instante em que meu rosto tocou a água. Primeiro, existe algo chamado “resposta do nervo vago”, que tem relação com o décimo nervo craniano. Se um idiota mergulha de cabeça em águas quase congeladas, reduz a marcha como um motor em pane e, por razões que ainda não compreendo, o coração praticamente pára.
No mesmo instante, um fenômeno chamado “Reflexo do mergulho em mamíferos” assume o comando, desviando o sangue das extremidades do corpo para todos os órgãos vitais. O sujeito fica tão ágil quanto um urso hibernando.
Na verdade, tenho sorte de conseguir me mexer. Não afundo, mas também não consigo nadar. Lutar para chegar à superfície é como tentar nadar cachorrinho numa piscina de éter. No entanto, de alguma forma, estico o braço e agarro o píer.
Consigo enfim chegar a um cobertor... e depois às minhas roupas... e depois a um dos 13 bares da cidade, onde, com meus companheiros, membros do exclusivo Clube do Urso Polar de Seward, comemoramos a agonia da qual, agora, estávamos todos curados.

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