sábado, dezembro 2

Eles estão nos esperando

Fonte : Revista Seleções
Data : Janeiro de 1974
Autora : Loma Chandler

A menina só viu seu avô uma vez, mas aquela estranha visita a marcou profundamente.

Eu não era obrigada a ir ao Hospital Estadual de Weston, na Virgínia Ocidental, naquele dia de 1932. mas, aos dez anos incompletos, eu tinha uma vontade enorme de visitar meu avô – um avô de quem ouvira falar toda a minha vida, mas que nunca tinha visto pessoalmente.
“Você quer mesmo ir?”, perguntou vovó, enquanto embrulhava o nosso almoço. “Olhe que vai perder a parada e o discurso de seu pai. Além disso, seu avô nem vai perceber que você está lá.”
“Quero ir, sim vovó.” Sacudi minha franja de cima dos olhos, e fiquei olhando, enquanto ela tirava, com toda a delicadeza, do seu velho baú de tampa redonda, uma bandeira desbotada. “Você vai todos os anos. Se ele não percebe quando alguém está lá, por que é que você vai?”
“Comigo é diferente.” Vovó enfiou na sua grande bolsa de brocado um vidro de geléia de amora silvestre, feita por ela. “Ele está me esperando.”
“Eu quero ir também.” Senti que estava começando a fazer beicinho. Tantas vezes eu tinha imaginado um encontro com esse avô desconhecido... Era sempre assim: eu ia ao encontro de um homem alto e forte, uma espécie de mistura do meu pai, que era pregador, com meu tio favorito, e anunciava: “Olá. Eu sou sua neta. Sue é a minha mãe, mas vovó diz que eu pertenço a ela.”
E o homem alto e forte respondia sempre: “Olá, Loma. Se você pertence à sua avó, isso já é o suficiente para mim.” Nesse ponto, a minha imaginação deixava de funcionar. O que é que a gente podia dizer a um avô desconhecido? Convida-lo a passear? Pedir-lhe um picolé? Ou simplesmente responder como ele tinha respondido: “Eu sei que a vovó gosta de você, vovô. Por isso, eu vou gostar também.”
“Eu quero ir sim vovó”, disse mais uma vez.
“Bom, pense nisso enquanto eu fecho a casa e penduro a bandeira”, disse vovó. “Pense em tudo que você vai perder.”
E eu pensei. A cidade de Clarksburg, na Virgínia Ocidental, comemorava de fato o Dia do Armistício.*
Naquele dia, as pessoas iriam se enfileirar ao longo das ruas principais, para ver a parada dos soldados veteranos. Os uniformes quase todos já estavam muito apertados nos ombros, mas os homens que os vestiam marchavam orgulhosamente. Aquele era o seu dia. O prefeito da cidade ia fazer um discurso. E depois papai ia dizer a toda a gente reunida que o dia não era só um feriado, mas um dia santo.
Sim. Eu ia perder aquilo. Eu ia perder o entusiasmo vibrante da banda de música, mas ia ter algo melhor. Eu ia, finalmente, ver o homem que tantas vezes viveu na minha imaginação.
“Lembre-se de conservar o casado abotoado”, disse vovó quando subíamos para o enfumaçado compartimento do trem. Deixamos Clarksburg para trás, e pareceu-me que andamos entre duas falésias durante a maior parte do caminho. Apesar de novos passageiros subirem em cada parada, poucas pessoas pareciam saltar do trem. “Porque?”, perguntei a vovó.
“A maior parte deles vai para o mesmo lugar que nós”, respondeu ela.
Espantada, exclamei: “Toda essa gente conhece o vovô?”
“Eles conhecem alguém como ele.”
Fiquei desapontada. O vovô que eu tinha imaginado era algo especial. Não podia existir “alguém como ele”.
Descemos do trem, e subimos num ônibus com o letreiro HOSPITAL. ESTADUAL DE WESTON, no qual atravessamos a cidade. O ônibus estava apinhado de gente que tinha vindo no trem conosco. Atravessamos o rio West Fork, e paramos na Avenida do Rio, em frente de um edifício de pedra cinzenta, de cinco andares. Havia uma passagem em arco, com um alto portão de ferro, e por cima as palavras ASILO ESTADUAL. “Por que é que chamam a isto um asilo, vovó?”, perguntei eu. “Os asilos são para os loucos.”
“Às vezes, os asilos são justamente aquilo que deviam ser – um lugar de descanso para as pessoas que se perdem na vida.”
Passamos pelo portão e chegamos a um pátio onde homens, de roupas desbotadas, vagueavam pelos gramados. As pessoas que tinham vindo no trem juntaram-se a eles, e se dividiram em grupos cada vez menores.
“Por que é que todo mundo veio hoje, vovó?”, perguntei.
“Porque hoje é o Dia do Armistício, como você sabe. Hoje, até mesmo os violentos podem comemorar. Como aconteceu com seu avô, a guerra colocou muitos nesse estado. Os que perderam um braço ou uma perna, até que tiveram sorte. Os mais infelizes são estes, homens cujas mentes foram destruídas pelo choque das granadas ou pelos gases, e que hoje tem de viver em asilos, longe da sociedade.”
“Qual deles é o vovô?”, perguntei, procurando na multidão.
“Ele está lá dentro”, disse vovó. “Muitas vezes, ele se torna furioso, e é por isso que só me deixam vir cá uma vez por ano.”
Lá dentro, esperamos numa ante-sala de teto alto, até que um funcionário nos conduziu por três lances de escadas, abriu a tranca de uma porta, e nos levou através de um comprido corredor. Deixou-nos finalmente à porta de um pequeno quarto. Pregado à porta, estava um cartão que dizia: GRANT WHITE, SEXO MASCULINO, ALTA PERICULOSIDADE.
Vovó respirou fundo. Endireitou os ombros. Apareceu-lhe no rosto um sorriso, como se ela o tivesse tirado diretamente da bolsa e atarraxado ali. “Olá, Grant”, disse ela. Sua voz era suave, como quando falava com a minha priminha nova.
Olhei em volta do pequeno quarto. Lá em cima, uma janela estreita deixava entrar uns raios de sol. A luz tocava na cadeira dura, na mesa pequena; não chegava até a cama de ferro, onde um homem estava sentado, em silêncio. Seus ombros magros estavam encolhidos sob uma camisa azul de trabalho. Onde os ossos não apareciam sob a pele, seu rosto era esquálido e cheio de rugas, e seus olhos como as janelas de uma casa vazia. Não parecia violento, só velho – tão velho como a montanha que ficava detrás do presbitério. Ele não era o avô dos meus sonhos. Senti-me desapontada.
Vovó caminhou pelo quarto, comigo agarrada a ela. “Olá, Grant”, disse ela outra vez.
“Eh?”, os olhos vazios a encontraram. “Lena?”, perguntou. A voz parecia estranha, vinda daquele velho. De repente, os olhos deixaram de estar vazios. Ele olhou para vovó (gorducha, de cabelos cinzentos, esfiapados) como se ela fosse jovem e bonita.
“Ele vai ficar bom”, pensei. “Talvez a gente possa leva-lo para casa conosco..” Talvez ele pudesse se transformar completamente, assim como seus olhos se transformaram, e eu poderia afinal ter um avô. Mas, passado pouco tempo, percebi que isso também não passaria de um desejo.
Vovó sentou-se na cadeira dura. Eu fiquei em pé do lado. Vovô não parecia perceber que eu estava ali. Mantinha os olhos fixos na vovó. “Estou muito contente de te ver, Lena. Não sei como você conseguiu vir até a França, para me visitar neste dia.”
“Não foi difícil”, respondeu vovó. “Eu sabia que você estava me esperando.”
“Você não deixou as crianças sozinhas, não, Lena?”, perguntou ele.
“Não, Grant”, respondeu vovó. “Não deixei.”
Eu pensei naquelas “crianças” com as quais ele se preocupava. Mamãe, Tio Fred, Tio Earl. Não. Eles não estavam sozinhos.
“Eu lhe trouxe comida”, disse vovó. “Você quer que eu me sente aí perto de você, Grant?”
“Não.” Outra vez a voz jovem saiu daqueles lábios tão velhos. “Fique aí onde eu possa te ver, Lena. Agora não estou com fome. Todo o pelotão comeu ainda há pouco.”
“Então vou comer só um sanduíche”, disse vovó. Ela me passou um sanduíche de bacon frito. Engasguei-me com a primeira dentada, e o larguei em cima da mesa.
“Parece um milagre você estar aqui”, disse o velho. “E um milagre eu estar aqui também. Senti que você estava rezando por mim, Lena.”
“E ainda rezo”, respondeu vovó. “Todas as noites.”
“Eu sonho com você, Lena”, disse a voz jovem e forte. “Lembro-me, nos meus sonhos, do conforto que você é para mim. Mas quando vou toca-la, o alarme soa, e está na hora de levantar e ir mungir as vacas.” Ele sacudiu a cabeça, confuso. “O pior é que, mesmo o despertador, não é de verdade. É sempre mais uma bala alemã que me acorda.”
“Não vai ser sempre assim”, disse vovó. E eu pensei por que ela não lhe dizia que a guerra que ele estava vivendo acabara havia 14 anos.
“Sim, eu penso muito em você”, disse ele. “Em algumas noites, você parece mesmo muito próxima de mim. Quase posso sentir o seu corpo junto de mim na lama. Lama! Que lugar para pensar no amor! Lembra-se dos nossos passeios pelos bosques, Lena? Mesmo depois que os bebês começaram a vir, eu e você, nós gostávamos de dar os nossos passeios pelos bosques. Você se lembra, Lena?”
“Lembro-me de tudo de bom que nos aconteceu”, respondeu vovó.
Eu senti que estava escutando algo sagrado. Queria sair discretamente do quarto, mas tive medo.
“Às vezes, eu até falo com você”, continuou o velho. “Como se você pudesse me ouvir.” Ele riu. Foi o primeiro som alegre que eu ouvira naquele quarto.
“Eu o ouço”, disse vovó. “O que não ouço, imagino.”
“Imagino’. É tudo que eu faço aqui, quando não estamos combatendo. Tenho que ter cuidado, ou posso ficar maluco.”
“Você não está maluco, Grant.”
Chocada, olhei para a vovó. Aquilo era uma deslavada mentira, tal como eu nunca tinha ouvido. Papai poderia fazer um sermão de uma hora sobre aquilo. Vovó ainda estava com aquele sorriso atarraxado no rosto. Seus lábios curvavam-se para cima, mas as lágrimas lhe caiam dos olhos e rolavam pelas faces. Ela não se preocupava em limpa-las. Admiti que ela, afinal, não tinha dito uma mentira de verdade. Papai nunca iria saber daquilo.
“Você ainda tem a bandeira que eu lhe mandei, Lena?”, perguntou o velho.
“Tenho sim”, disse vovó. “Agora mesmo ela está pendurada na porta da frente.”
“Engraçado o que aconteceu com aquela bandeira. Reconheço que a roubei. O nosso pelotão estava se retirando rapidamente, e parecia que a estávamos abandonando. Peguei nela e enfiei-a na mochila, até que pude manda-la para você.”
“Você não a roubou, Grant”, disse vovó. “Penso que você a ganhou.”
Parecia que mal tínhamos acabado de entrar no quarto, quando se ouviu um ruído de passos no corredor. Vovó se levantou. “São horas de ir, Grant. Eu lhe trouxe geléia de amora-silvestre, com as sementes dentro, como você gosta.” Ela deu o vidro e os nossos sanduíches ao enfermeiro, que estava em pé, do lado de fora da porta.
O velho não me olhou, mesmo durante as despedidas. Disse adeus à vovó, e então a expressão vazia lhe voltou aos olhos.
O ônibus estava esperando no portão. Antes de entrar, virei-me para dar um último olhar ao edifício coberto de hera. “Adeus, vovô”, murmurei, admitindo finalmente que aquele homem velho e novo que estava lá dentro era realmente o meu avô. Eu sabia que nunca mais iria voltar. Aquela única vez por ano que ele voltava à vida era só para a vovó. Só ela possuía o privilégio de saber amenizar sua solidão.

*No dia 11 de novembro, comemora-se o aniversário do armistício da Primeira Guerra Mundial. A partir de 1954, a data passou a ser denominada Dia dos Veteranos.

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