sexta-feira, dezembro 8

Falando pelos cotovelos

Fonte : Revista Seleções
Data : Setembro de 1983
Autor : Alexander Theroux

Ele não é exatamente o que se poderia chamar de um bicho sereno, mas falar, ás vezes até fala pelos cotovelos.

A história registra que houve pelo menos um papagaio com a honra de estar num relicário entre os membros da família real na abadia de Westminster. Esse papagaio cinzento, africano, ao que se diz, morreu de tristeza poucos dias depois de sua proprietária, a duquesa de Richmond e Lennox, falecer, em 1702. lá, ele jaz, empoleirado, junto à efígie de cera da duquesa – o mais antigo dos papagaios empalhados da Inglaterra. Mas não é o primeiro caso documentado do vínculo inquebrável entre um papagaio e sua dona. Há vários séculos, Ovídio, o poeta romano, escreveu uma elegia sobre a morte de um papagaio que pertencia a uma amiga sua.
Eu tenho uma papagaia campeira, mexicana, de cabeça amarela, a quem batizei de Belladonna. Eis que essa minha companheira de muitos anos me acorda com arrulhos, pipilos, guinchos e ganidos, além do canto soluçado do relógio de cuco, que ela imita e na verdade ridiculariza, porque, afinal, há anos ele está com defeito.
O papagaio representa o diário do seu dono, pois nada se pode dizer sobre um que não inclua também o outro. Já ouvi que quem tem papagaio é pessoa esquisita. “Ela não era propriamente o que se poderia chamar de fina”, escreveu Mark Twain sobre certa mulher, “nem o que se consideraria casca grossa. Era o tipo de pessoa que tem papagaio.”
Virtuose. Quanto a mim, até entôo um cântico ao papagaio (que, aliás, sabe cantar sozinho): uma combinação politonal de assovios, risotas e grasnidos; um concerto que ele mesmo rege, chocalhando a batuta do seu bico, e muitas vezes prossegue com um prolongado trêmulo, que só pode significar aplauso. O papagaio sabe imitar a tagarelice do rádio, motores de automóveis, o burburejar da chuva, as batidas de um martelo, pessoas tossindo, o farfalhar de celofane amassado, vozes, animais da floresta, as gargalhadas hilariantes e quase qualquer tolice que você lhe disser.
A aptidão que os papagaios tem de imitar as coisas ainda não foi esclarecida. São leais como um eco. No entanto, muitas vezes ele é levado a um estado de frustração por pessoas que insistem em limitar esse relacionamento verbal a frases degradantes e idiotas como: “Fala, meu louro! Quem é a belezoca da mamãe?”
Não admira que o papagaio estoure em censuras ríspidas. Quem já se deu ao trabalho de engajar esse bichinho querido em assuntos mais nobres, que ele talvez prefira: a História, de Macaulay; o Tractatus, de Wittgenstein, ou até mesmo a péssima exibição do nosso time de futebol na temporada passada?
O papagaio é um ser enigmático. Seu rosto reprime uma risadinha, mas os olhos parecem desvairados, loucamente amarelos. Ele é vaidoso, arcaico, manso e severo, ao mesmo tempo pluma e fogo.
Suas penas são duras e lustrosas, e ele as alisa com freqüência, pois a modéstia é tão prejudicial aos papagaios quanto para as mulheres da vida. Suas pernas são curtas e grossas; a língua, uma lesminha dura, perfeita para pronunciar palavras como “ziriguidum” e “currupaco papaco”. E funciona como um perfeito canivete suíço vivo. Seu bico encurvado se fecha com a perfeição de uma tesoura pesada. (Já fui dolorosamente mordido diversas vezes no nariz e no polegar.) A parte superior é articulada e móvel, própria para esmagar e quebrar pevides, e cuspir fora as cascas.
O papagaio parece contestar o curso de sua vida, principalmente porque os seres humanos estão sempre lhe apontando o dedo (fato que o irrita) e gritando-lhe (coisa que o chateia); por isso ele morde. Poderíamos chamá-lo de processador ornitológico de alimentos: escolha qualquer dedo, e o papagaio o cortará em frangalhos, em tirinhas ou em postas.
O vôo do papagaio é um alvoroço, muitas vezes forçado e pesado, com ondulações baixas. A cabeça dele se inclina em agradecimento, mas sem servilismo, quando nos dá a honra de confiar-nos a sua atenção mística. Ele tem fases endemoninhadas, mas é passível de ser ensinado; aprende a andar de bicicleta, a tocar campainhas, a contar, e, que eu saiba, a recitar, fazendo gestos, o “Navio Negreiro”. É uma ave tão ágil que consegue segurar as folhas debaixo das asas, como se fosse uma pessoa voltando para casa com o seu jornal.
O papagaio tem inúmeras posturas. Salta, anda de um lado para outro, se abaixa todo. O curioso é que eles tem medo de qualquer perigo que possa surgir do céu. Sobem por superfícies verticais, caminha de pernas para cima, giram com a cabeça, executam minuetos pomposos; com seus pés de quatro dedos e de garras longas, seguram corretamente os alimentos que consomem com a elegância de qualquer adolescente de boa família.
Mais gracinhas. Dormem sentados no seu poleiro, com os músculos das pernas retesados, equilibrados nos dedos traseiros em forma de catraca. Outra curiosidade é a exibição que os papagaios fazem do seu poder de intimidação, quando se empinam e recuam, com as asas abertas, lançando desafios.
Adoram tomar banho, mas frio não. Demonstram grande afeição pelo dono, mas muitas vezes se recusam a dar espetáculo para as visitas, o silêncio é sua réplica viva, insuportável. Detestam guarda-chuvas; tem uma sensibilidade mórbida ao ar encanado, e demonstram uma predileção especial por frutas, pevides de abóbora, sementes de girassol e... isso mesmo, bolachas. Belladonna tem um fraco por carne assada, batatas cozidas com molho, pele de pato, manteiga, molho de soja chinês, óleo de gergelim, bananas e...polegares humanos.
Alexandre o Grande adorava papagaios. Até Aristóteles neles falou. (A Bíblia silencia sobre o assunto.) Na antiga Roma, os louros faziam o maior sucesso e eram exibidos em magníficas gaiolas de tartaruga e de marfim.
No Sudão, comi papagaio. A carne é seca como um estalo, e exige umas fatias de bacon enroladas nela para enriquece-la de gorduras. São deliciosas as fatias de carne de papagaio em cima de pão torrado. Igualmente delicioso é papagaio desossado, recheado com trufas e fígado de ganso. Mas talvez o melhor seja fritá-lo com um bom xerez e servi-lo com arroz bravo oriental.
Há muito que superei a tentação de degustar a Belladonna. Afinal, quem poderia comer um bichinho de estimação que a gente mesmo batizou? Seria como um ventríloquo que deglutisse o seu próprio boneco!
Nas Américas, na África, na Ásia e na Austrália encontram-se mais de 300 espécies e variedades de papagaios, uma explosão aristocrática de línguas, de truques e colorido, que vão do escarlate, do turquesa e do azul até o verde, o branco níveo e o dourado. Por certo são estas as cores mais surpreendentes, sobretudo em relação à vivacidade, à variedade e à combinação das mesmas, em toda a natureza. Tal fato talvez explique por que os papagaios são tão valorizados e atingem preços tão altos. Há um grande comércio que consiste em contrabandear esses pobres seres das suas origens nos trópicos. Depois que chegam ao seu destino, nas lojas de animais de estimação, alguns papagaios são vendidos por preços que atingem cinco mil dólares.
Os preconceitos contra os papagaios custam a desaparecer. Durante séculos essa ave foi rejeitada por causa do barulho que faz, das sementes que espalha, das penas que solta e da sua insensata matraca – enfim, um artigo que só interessava a piratas, empalhadores de animais e doidos. Não é a minha opinião. Todas as manhãs, ao acordar, levanto e ouço Belladonna em toda a sua glória. Penso então nas palavras de Izaak Walton: “A boa companhia e a boa conversa constituem a própria essência da integridade.”

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