quarta-feira, dezembro 20

O pastor

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1977
Autor : Frederick Forsyth

O autor dos best-sellers O dia do Chacal, O dossiê Odessa e Cães de Guerra conta aqui uma extraordinária história de Natal, colhendo seu material dos dias em que, com 19 anos, era um dos mais jovens pilotos da Real Força Aérea. Esta História foi inicialmente escrita como um presente de Natal para sua mulher.

Durante um breve momento, enquanto aguardava da torre de controle permissão para decolar, deu uma olhada através da cúpula da carlinga pelos campos alemães à minha volta. Estavam brancos e ondulantes sob o crepitante luar de dezembro.
À minha frente, durante atenta espera da voz do controlador de tráfego que me chegaria pelos fones, eu via estender-se a pista, uma lisa faixa escura, ladeada de duas fileiras de luzes brilhantes.
Minutos depois que eu levantasse vôo, as luzes se apagariam, pois nessa noite não haveria aviadores errantes olhando para a terra e confirmando suas posições. Estávamos na noite de Natal, no ano da graça de 1957, e eu era um jovem piloto procurando voltar para casa para comemorar a data.
“Charlie Delta, pronto para decolar!” A voz do controlador arrancou-me de meus devaneios, ressoando em meus fones como se ele estivesse ali comigo, em minha minúscula carlinga, gritando ao meu ouvido.
Avancei a manete para frente com a mão esquerda. Por detrás de mim, o gemido apagado do motor aumentou até tornar-se um grito. Quando o fim da pista passou a toda a velocidade sob meus pés, fiz que o meu jato Vampire descrevesse uma curva de subida suave para a esquerda.
Por baixo e atrás de mim, ouvi o ruído seco das rodas entrando em seus compartimentos, e senti que o jato dava um salto para frente, livre da resistência do trem de aterragem. Mantive-o na curva ascendente, pressionando o botão do rádio com o polegar esquerdo.
“Charlie Delta, decolagem efetuada, com trem em cima e travado”, disse eu em minha máscara de oxigênio.
“Charlie Delta, OK. Mude para o canal D”, respondeu o homem que estava de serviço na torre, e, antes que eu pudesse mudar o rádio de canal, acrescentou: “Feliz Natal!”
É claro que isso era inteiramente contra as normas do uso do rádio. Naquele tempo eu era muito moço, e extremamente consciencioso. Apesar disso, respondi: “Obrigado, torre. Feliz Natal para você também!” A seguir, sintonizei o rádio na freqüência do Controle Aéreo da RAF na Alemanha do Norte.
Sobre minha coxa direita estava aberto o mapa com a minha rota traçada a tinta azul, mas eu sabia de cor todos os detalhes. Sessenta e seis minutos de vôo, inclusive com o tempo de descida e pouso, e o Vampire tinha combustível para mais 80 minutos no ar.
Ao virar sobre o aeroporto de Celle, a 1.500m de altitude, observei o ponteiro de minha bússola fixar-se numa rota de 265º. O nariz do aparelho estava voltado para a abóboda negra e gelada do céu envolto na noite, pontilhado de estrelas tão brilhantes que lançavam centelhas brancas contra meus olhos. Embaixo, o mapa em preto e branco da Alemanha do Norte estava tornando-se cada vez menor, com as massas escuras das florestas de pinheiros confundindo-se com as claras vastidões dos campos. Aqui e ali, uma vila ou uma pequena cidade com suas luzes cintilando. Lá embaixo, por entre ruas alegremente iluminadas, devia haver gente entoando cânticos de Natal, batendo às portas engalanadas de azevinho para cantar Noite Feliz. Seiscentos e tantos quilômetros à minha frente, seria o mesmo: as canções em minha própria língua, mas muitas das melodias idênticas.
Quer se diga Weihnacht ou Christmas, tudo é Natal em todo o mundo cristão – e era bom estar a caminho de casa. A hora do café da manhã, eu estaria festejando a data com a minha família.
O altímetro marcava 8.300m. reduzi a marcha do motor, aliviando as manetes, para ter uma velocidade de 900km, e mantive-a fixa nos 265º. Num ponto abaixo de mim, estaria ficando para trás, na escuridão, a fronteira holandesa. Eu já tinha 21 minutos de vôo.
O problema começou de maneira tão despercebida que levei alguns minutos para compreender que qualquer coisa não ia bem. O primeiro sinal de anormalidade que tive ocorreu quando dei uma olhada para verificar minha rota na bússola. A agulha, em vez de estar firme nos 265º, oscilava à toa pelo mostrador, passando de Leste para Oeste, de Sul a Norte sem qualquer justificativa.
Roguei contra a bússola uma praga muito imprópria para o espírito de Natal, mas até que o problema não era muito grave: havia uma outra bússola de reserva, a bússola de álcool; mas, assim que a observei de relance, vi que havia também algo de errado com ela – a agulha dançava como uma doida. Por certo, alguma coisa tinha batido contra a caixa, o que não é raro acontecer. Em qualquer caso, eu podia chamar o controle de Lakenheath dentro de minutos, e dali me dariam um PCT (Pouso Controlado de Terra), ou seja, as instruções de segundo a segundo que um aeroporto bem equipado pode dar a um piloto para faze-lo pousar, mesmo nas piores condições de tempo.
Antes de tentar Lakenheath, o procedimento correto seria informar o canal D (com o qual eu estava sintonizado) de meu pequeno problema, a fim de que ele pudesse avisar Lakenheath que eu estava voando sem bússola. Apertei o botão de transmissão e chamei:
“Charlie Delta. Charlie Delta, chamando Controle de Beveland do Note...”
Parei. Não adiantava continuar. Em vez do intenso crepitar da estática e do som agudo de minha própria voz de volta nos ouvidos, havia apenas um murmúrio abafado no interior de minha máscara de oxigênio. Era a minha própria voz falando... sem passar dali, tentei de novo. O mesmo resultado. Muito atrás, através das vastidões negras e implacáveis do mar do Norte, nos aquecidos e confortáveis edifícios de concreto do Controle de Beveland do Norte, o pessoal devia estar um pouco afastado de seus painéis de controle, conversando e bebericando seu café ou chocolate bem quente. Não poderiam ouvir-me. O rádio não funcionava.

Em último caso
Lutando contra uma crescente sensação de pânico que pode matar um piloto mais rapidamente que qualquer outra coisa, engoli em seco e contei devagar até dez. sintonizei depois o canal F, mas o silvo contínuo do meu próprio motor a jato por trás de mim era a única resposta que eu obtinha.
Enquanto eu tentava em vão fazer contato com vários canais de rádio, meus olhos sondavam o painel de instrumentos à minha frente. Eles tinham uma mensagem para me transmitir: em algum ponto, sob meus pés, entre os quilômetros de fios de várias cores que formavam os circuitos, havia um fusível queimado.
A primeira coisa a fazer em tais casos (relembrei o velho sargento Norris nos ensinado isso) era baixar os manetes, passando de uma velocidade de cruzeiro para outra mais lenta. O objetivo era conseguir o máximo de permanência em vôo.
“Não queremos gastar combustível precioso, não é verdade, meus senhores?” Provavelmente vamos precisar dele mais tarde. Devemos, então, reduzir a potência.” Fechei a manete e observei o conta-giros. Como ele funciona com gerador próprio, pelo menos com ele eu podia contar. Esperei até que o motor estivesse a 7.200 rpm, e senti que a velocidade do avião diminuíra.
Os instrumentos principais à frente dos olhos de um piloto são seis, incluindo a bússola. Os outros cinco são o anemômetro (indicador da velocidade do vento), o altímetro, o indicador de velocidade vertical, o indicador de inclinação e o indicador de glissagem ( que informa se o avião está glissando de viés, como um caranguejo, pelo céu afora). Dois deles são de funcionamento elétrico, e, com eles, tinha sucedido o mesmo que à minha bússola. Isso me deixava com os três instrumentos de funcionamento sob pressão: o anemômetro, o altímetro e o indicador de velocidade vertical. Em outras palavras: eu sabia a que velocidade ia, a que altitude me encontrava e se estava descendo ou subindo.
É perfeitamente possível pousar um avião apenas com estes três instrumentos, avaliando o resto por esses velhos auxiliares de navegação que são os olhos do homem. Possível, sim, mas em ótimas condições meteorológicas, à luz do dia e com céu sem nuvens. À noite, não.
As únicas coisas que se vêem de noite, mesmo numa noite clara de luar, são as luzes. A 8km, a norte de Norwich, sabia eu, ficava o aeroporto militar de Merriam St. George, cujo farol de luz vermelha estaria transmitindo em Morse seu sinal de identificação durante a noite. Ali, se ao menos eles tivessem o bom senso de acender as luzes do campo quando me ouvissem a pouca altitude, de um lado para o outro sobre o aeroporto, eu podia aterrar com segurança. Comecei a fazer descer o Vampire lentamente em direção à costa, que se aproximava.
A uns 4.500m, e ainda descendo, comecei a notar que um novo inimigo entrara em cena. Bm lá longe à direita e à esquerda, à minha frente e sem dúvida atrás de mim, o luar refletia-se num mar de brancura, plano e sem fim. Tinha chegado o nevoeiro de East Anglia.
Enquanto eu estivera voando para oeste, a partir da Alemanha, uma ligeira brisa, que não chamara a atenção dos homens da meteorologia, começara a soprar, deslocando uma faixa de ar ligeiramente mais quente do mar do Norte para as planícies de East Anglia.
Ali, em contato com a terra gelada, os trilhões de minúsculas partículas de umidade, no ar do mar, tinham-se condensado, formando a espécie de nevoeiro que pode cobrir uma grande extensão em cerca de meia hora. Eu não podia dizer até que ponto ele se estendera para oeste – talvez até as West Midlands, batendo contras as encostas orientais dos Apeninos! Seria inútil a tentativa de sobrevoar o nevoeiro em direção a ocidente. Sem instrumentos de navegação nem rádio, eu iria perder-me em terreno estranho, desconhecido para mim. Estava também fora de cogitação tentar voltar à Holanda, a fim de pousar numa das bases da Força Aérea Holandesa ao longo da costa; não havia combustível para isso. Confiando apenas em meus olhos para orientação, poderia aterrar na base de Merriam St. George... ou morrer entre os destroços do Vampire em algum ponto nos pântanos de Norfolk cobertos pelo nevoeiro.
A 3.000m de altitude, saí do mergulho e aumentei ligeiramente a força do motor para me manter no ar, consumindo mais do meu precioso combustível. Ainda imbuído do que aprendera na escola, lembrei-me de novo das instruções do sargento Norris:
“Quando estamos inteiramente perdidos acima de nuvens contínuas, meus senhores, temos que pensar na necessidade de abandonar o avião, certo?”
Claro, sargento! Infelizmente, sabe-se muito bem que é quase impossível saltar de pára-quedas do Vampire. Só se conhecem dois pilotos que tiveram êxito, mas perderam as pernas no salto. Enfim, pode ainda haver alguém que seja bem sucedido. Que mais, sargento?
“O que temos a fazer em primeiro lugar é, portanto, voltar o avião para o mar alto, longe de quaisquer zonas de intensa habitação humana.” As regras foram todas executadas, mas elas não mencionavam que as probabilidades de um piloto viver mais de meia hora, ao atirar-se numa noite de inverno nas águas frias do mar do Norte, eram uma em cada cem.
“Uma última providência, meus senhores, a que se deve lançar mão em último caso.”
Assim está bem melhor, sargento Norris. É num caso assim que eu me encontro agora.
“Todos os aviões que se aproximem das costas da Inglaterra são visíveis nas telas de radar do nosso sistema de alerta. Portanto, se nosso rádio não funcionar, e não pudermos transmitir nossa situação de emergência, devemos adotar um comportamento muito especial. Faremos isso tomando o caminho do mar, e voando depois em pequenos triângulos, percorrendo cada lado desse triângulos em dois minutos de vôo. Desta maneira, podemos esperar atrair a atenção. Quando tivermos sido localizados, o controlador de tráfego aéreo é informado disso e manda outro avião para socorrer-nos...”
Sim, era a última tentativa para salvar a vida. Lembrava-me agora melhor dos detalhes. O avião de socorro que nos guiaria a uma aterragem segura, voando asa contra asa, era chamado Shepherd *(literalmente, o Pastor).

Sombra negra
Olhei para o relógio. Já estava no ar há 51 minutos, e só me restavam uns 30 minutos de combustível. Virei o Vampire para a esquerda e comecei o primeiro lado de um triângulo. Dois minutos depois, virei de novo para a esquerda. Abaixo de mim, o nevoeiro estendia-se para trás a perder de vista, e para frente também, em direção a Norfolk.
Passaram se dez minutos, e eu tinha feito quase dois triângulos completos. Havia muitos anos que eu não rezava de verdade, e as palavras chegaram-me com dificuldade.
“Senhor, salva-me por favor desta encrenca miserável...” Não, não se deve falar assim com Ele. “Pai nosso, que estás no céu...”
Quando completei 72 minutos no ar, compreendi que não ia aparecer ninguém. O indicador de combustível marcava entre zero e um quarto – digamos, mais dez minutos de vôo. Senti uma onde de desespero crescer dentro de mim.
Cinco minutos depois, fiquei sabendo sem sombra de dúvidas que ia morrer naquela noite. Nem medo eu tinha; só uma tristeza imensa. Tristeza por todas as coisas que nunca haveria de fazer, pelos lugares que nunca veria, pelas pessoas que nunca mais voltaria a encontrar. Era cruel, era triste, morrer aos 20 anos de idade, com uma vida inteira ainda por viver; e o pior não era a morte; mas o pesar por tudo o que deixara de fazer.
Inclinei a asa esquerda do Vampira para o lado da Lua, a fim de completar o último lado do último triângulo.
Por baixo da extremidade da asa, lá no fundo, contra o reflexo da camada de nevoeiro, uma sombra negra cruzou a brancura. Durante um segundo, pensei que fosse minha própria sombra, mas era outro avião, sobre a massa do nevoeiro, acompanhando minha curva uns 1.000m abaixo pelo céu afora em direção ao fog.
Tentando ao máximo não acreditar que se tratasse de um avião qualquer que estivesse seguindo sua rota, prestes a desaparecer para sempre na camada de nevoeiro, empurrei o manete e comecei a descer em sua direção. Ele continuava a voar em curva e passei a fazer o mesmo. A 1.500m, compreendi que ainda estava indo muito depressa para ele. Não podia reduzir mais a marcha, com receio de o Vampire ficar abaixo da velocidade crítica e cair por falta de controle. Para diminuir ainda mais a velocidade, apliquei os freios aerodinâmicos. O Vampire estremeceu quando os freios oscilaram na corrente de ar, passando então para os 520km.
Foi nesse momento que ele se aproximou de mim, em direção à ponta de minha asa esquerda. Passamos a voar os dois em linha reta, oscilando enquanto tentávamos manter a formação. A Lua estava à minha direita, e a sombra de meu avião encobria a configuração do outro. Mesmo assim, porém, pude distinguir o brilho de duas hélices girando no céu à frente dele. Era evidente que não podia voar à minha velocidade: eu pilotava um caça a jato, e o outro era apenas um avião a motor de pistões, de modelo obsoleto.
Ele manteve-se ao meu lado durante alguns segundos; depois, inclinou-se suavemente para a esquerda. Pela posição da Lua, prestes a desaparecer, eu sabia que seguíamos com rumo à costa de Norfolk, e, pela primeira vez, pude ver bem o avião. Para surpresa minha, o meu “pastor” era um De Havilland Mosquito, um modelo de caça-bombardeiro muito usado na Segunda Guerra Mundial.
Lembrei-me então de que a Esquadrilha Meteorológica em Glouceste usava Mosquitos ( os últimos que ainda voavam) como auxílio para previsões do tempo.
Dentro da carlinga do Mosquito pude distinguir, contra a luz da Lua, o piloto, com a mão direita na janela, os dedos esticados, a palma para baixo. Apontou para frente e para baixo, querendo dizer com isso: “Vamos descer.”
Fiz que sim com a cabeça e, rapidamente levantei a mão esquerda para que ele pudesse vê-la, apontando em frente, para o meu painel de comando, com um dedo indicador, e depois erguendo a mão com os cinco dedos bem abertos. Por fim, passei a mão pela garganta. Por convenção, estes sinais significam: tenho apenas combustível para cinco minutos; depois, o meu motor pára. Vi a cabeça, protegida dentro da máscara de oxigênio, e de óculos, acenar que tinha compreendido; então, começamos a descer em direção ao nevoeiro. A velocidade dele aumentou, e eu recolhi os freios de ar.
A 100m, ele interrompeu a descida. O nevoeiro ainda estava por baixo de nós. A camada de neblina estendia-se provavelmente apenas do solo até 30m de altura, mas isso era mais do que suficiente para impedir que um avião pudesse pousar sem controle de terra. Eu bem podia imaginar a torrente de instruções que chegavam do posto de radar aos fones do homem que voava a meu lado. Eu não tirava os olhos dele, com receio de perde-lo de vista por um instante que fosse, observando todos os sinais que fazia com as mãos.

“Vá em frente e pouse!”
Dois minutos mais tarde, levantou o punho esquerdo, fechado, contra a janela, e a seguir abriu-o, encostando os cinco dedos estendidos no vidro. “Baixe seu trem de aterragem.”
O piloto do avião-guia apontava de novo para baixo, para outra descida. Pude ver então o nariz do Mosquito, onde estavam pintadas, grandes e pretas, as letras JK. Deviam ser o código de chamada da rádio Jig King.
Ele voltou a pôr-se na horizontal logo por cima da camada de nevoeiro tão baixo que seus contornos superficiais, como algodão-doce, batiam em nossas fuselagens. Fizemos uma curva circular firme. Consegui dar uma olhada em meu indicador de combustível: estava no zero, pulsando fracamente. Pelo amor de Deus, mais rápido, balbuciei numa prece.
Voltei a vê-lo um segundo mais tarde, e vi-o fazer com a mão esquerda o sinal de “descida”. Ele baixou então para dentro do nevoeiro e eu o segui. Ali íamos nós, numa descida pouco acentuada, suave, mas uma descida apesar de tudo, e de poucas dezenas de metros, para o nada.
Passar de um céu, mesmo escassamente iluminado, para dentro das nuvens ou do nevoeiro é como entrar num banho de algodão cinzento. De repente, nada mais há além daquela massa acinzentada em turbilhão, milhões de gotículas que avançam para nos cortar caminho e nos estrangular – só que agora, a apenas uns dez metros à minha frente, estava o vulto de um Mosquito que voava com absoluta segurança em direção a alguma coisa que eu não podia ver.
Mantendo a formação com o Mosquito, percebi que ele diminuía a marcha, pois eu também estava desacelerando, descendo e reduzindo a velocidade. Numa fração de segundo, corri os olhos pelos dois instrumentos de que necessitava: o altímetro marcava zero, e o indicador de combustível também; nenhum dos ponteiros mexia sequer. Num relance, vi que o indicador de velocidade marcava 220km – e aquele maldito caixão em que eu me achava despencaria do céu aos 170km.
Sem aviso, o piloto do Mosquito apontou o indicador para mim, e, depois, para além do pára-brisas. Queria dizer: “Pronto. Vá em frente e pouse!” Olhei para frente, através do meu pára-brisas, agora todo enevoado. Nada! Depois, sim, qualquer coisa. Uma sombra à esquerda, outra à direita; depois duas, uma de cada lado. Cercadas de bruma, havia luzes de um lado e de outro, aos pares, passando como relâmpagos. Concentrei o olhar para ver se distinguia o que se encontrava no meio delas. Nada, a não ser escuridão. Depois, uma risca pintada correndo sob meus pés: a linha central da pista. Freneticamente, desliguei a propulsão e mantive o aparelho estabilizado, rezando para que o Vampire pousasse bem.
As luzes vinham agora subindo, e chegaram quase ao nível dos olhos, mas o avião ainda não estava em terra. Pam! Tocamos o solo. Pam-pam! Outro choque. Pam-pam-papam.rrr! Agora estávamos em terra. As rodas principais tinham tocado o solo... e agüentado.
Acionei os freios, e o nariz também abaixou em relação à pista de aterragem. Uma pequena pressão dos freios para manter o avião em linha reta evitando a derrapagem; mais pressão nesses freios para não sair da pista. As luzes iam passando mais devagar, mais devagar, cada vez mais devagar...
O Vampire parou. Notei que as minhas mãos estavam crispadas na alavanca de comando, apertando o comando de freio. Não sei quantos segundos as segurei ali, até acreditar que tínhamos mesmo parado. Por fim, convenci-me. Acionei o freio de estacionamento e soltei o central. Não era necessário desligar o motor; ele tinha ficado sem combustível enquanto o Vampire corria pela pista. Desliguei todos os outros sistemas e, lentamente, comecei a libertar-me da poltrona. Foi quando um movimento atraiu meu olhar. À minha esquerda, no nevoeiro, a cerca de 15m acima de mim, num vôo rasante com as rodas recolhidas, o Mosquito passou roncando. Vi de relance a mão do piloto na janela lateral; depois, desapareceu de novo no nevoeiro, antes que ele pudesse ver meu gesto de agradecimento. Eu, porém, já tinha decidido telefonar para a RAF, em Gloucester, e agradecer-lhe pessoalmente.

Sorte danada!
Esperava que o carro da torre de controle aparecesse daí a segundos porque, numa aterragem de emergência, mesmo na véspera de Natal, deviam estar sempre de prontidão o carro de bombeiros, a ambulância e meia dúzia de outros veículos. Ninguém chegou... pelo menos durante os primeiros dez minutos.
Quando os dois faróis de um carro emergiram do nevoeiro, eu já me sentia enregelar. As luzes pararam a poucos metros do Vampire ali imobilizado, e o carro parecia insignificante diante do vulto do avião de caça. Nisto, ouviu-se uma voz: “Alo!”
Desci da carlinga, saltei da asa para o campo corri na direção dos faróis. Não havia nele qualquer distintivo de identificação da Força Aérea. Perto do carro, vi um rosto gordo, de quem gostava de cerveja, com um bigode caído. Pelo menos, usava um boné de oficial da RAF. Olhou espantado para mim, enquanto eu surgia envolto no nevoeiro.
“Isso aí é seu?” perguntou ele, acenando com a cabeça para o vulto escuro do Vampire.
“É, acabei de pousar.”
“Incrível!”, disse ele. “Absolutamente incrível!”
Fiquei muito contente por me sentir no calor do carro... e muito mais ainda por estar vivo.
“Você teve uma sorte danada!”, disse ele – ou, antes gritou, porque o motor estava engrenado numa barulhenta primeira.
“Tive mesmo”, concordei. Meu combustível acabou precisamente quando eu estava pousando. O rádio e todo o sistema elétrico pifaram há quase 50 minutos, sobre o mar do Norte.
“Sem rádio?”
“Sem rádio”, confirmei. “Todos os canais mudos.”
“Então, como foi que você encontrou este lugar?”
“Fui guiado até aqui”, expliquei pacientemente.
Ele encolheu os ombros, como para dizer: “Bem, se insiste.” Ao fim de algum tempo, disse: “Em todo caso, foi uma sorte danada. Não entendo é como o outro conseguiu encontrar isso aqui.”
“Não havia problema nenhum”, respondi-lhe. “O avião dele era um dos aparelhos de meteorologia da RAF em Gloucester. Evidentemente ele tinha rádio; por isso, viemos até aqui em formação, por meio de PCT. Depois, quando eu vi as luzes à beira da pista, pousei sozinho.”
O homem tinha mesmo a cabeça dura – e, além do mais, estava bêbado.
“Incrível!”, disse ele, chupando uma gota perdida de umidade do seu bigodão. “Não temos PCT. Aqui não há nenhum equipamento de navegação, nem mesmo um farol.”
Era agora a minha vez de colher informações.
“Mas aqui não é a base da RAF de Merriam St. George?”, perguntei com voz apagada.
“Não”, respondeu ele. “Aqui é a base de Minton da RAF.”
“Nunca ouvi falar dela”, disse eu por fim.
“Não é de admirar. Estamos fora de funcionamento há anos. Minton agora é um depósito de abastecimentos. Com licença... um instante.”
Parou o carro e saltou.
“Fui só apagar as luzes da pista”, informou ele, e arrotou.
Senti a cabeça tonta. Tudo aquilo era absurdo, doido, ilógico – mas tinha que haver uma explicação razoável.
“Por que foi, então, que você as acendeu?”, perguntei eu.
“Porque ouvi o barulho do seu motor”, respondeu-me. “Eu estava no cassino dos oficiais bebendo um trago quando o velho Joe me pediu que chegasse um instante à janela e escutasse. Foi então que vi você dando voltas bem por cima de nós. Que tremendo nevoeiro hoje.”
“Onde é que fica exatamente então a base Minton?” perguntei-lhe.
“A 8km da costa, em linha reta para dentro de Cromer. É onde nós estamos.”
“E onde é a base da RAF mais próxima com todo o equipamento de rádio?”
Ele pensou um instante e respondeu: “Deve ser a base de Merriam St. George. Não pode deixar de haver tudo isso lá. Escute aqui, eu sou só um almoxarife.”
Era essa a explicação. O amigo desconhecido do avião de meteorologia me levara direto da costa para Merriam St. George. Por sorte, Minton ficava precisamente a caminho da pista de Merriam. O controlador desta base deve ter pedido que andássemos em círculo enquanto ele acendia as luzes da pista, e este velhote tinha acendido suas luzes também. Resultado: Chegando ali por um último esforço, eu fora pousar o meu Vampire no aeroporto errado. Meu combustível tinha acabado precisamente quando eu me encontrava bem no meio da pista. Eu nunca poderia chegar a Merriam, a 16km de distância. Teria ido arrebentar meu avião nos campos por falta de pontos de referência.

Sem querer acreditar
No momento em que acabei de elaborar essa explicação racional da minha presença naquele aeroporto quase abandonado, chegamos ao cassino dos oficiais. Meu anfitrião, que se apresentou como tenente Marks, despiu seu sobretudo de pele de carneiro e jogou-o em cima de uma cadeira. Vestia as calças do uniforme, mas com um espesso pulôver azul em vez da jaqueta. Dever ser horrível passar o Natal sem serviço num buraco daqueles.
Levou-me para um escritório, onde havia uma cadeira, uma mesa sem nada em cima e um telefone. Chamei a telefonista local e, enquanto esperava, Marks voltou com um copo de uísque. Habitualmente, é raro eu tocar em álcool, mas a bebida me aqueceria, de modo que lhe agradeci quando ele saía para entender-se com o encarregado. Meu relógio marcava quase meia-noite. Droga de maneira de passar o Natal!, pensei eu. Lembrei então de que, 30 minutos antes, eu estivera suplicando a Deus qualquer auxílio – e senti-me envergonhado.
“Base Merriam St. George da RAF”, disse uma voz de homem ao telefone. Devia ser o sargento de serviço falando da sala da guarda, pensei eu.
“Controle de Tráfego Aéreo, por favor”, solicitei-lhe. Houve então uma pausa.
“Desculpe”, disse a voz, “mas posso saber quem está falando?”
Dei meu nome e minha patente. “Estou falando da Base Minton da RAF”, expliquei-lhe.
“Compreendo, mas lamento dizer-lhe que não há vôos esta noite. Ninguém de serviço no Controle de Tráfego Aéreo. Há apenas alguns no cassino.”
Quando consegui falar com o oficial de serviço da base, percebia-se que ele estava no cassino, porque me chegava o som de conversa animada atrás dele.
Respirei fundo e comecei pelo princípio.
“Portanto, como o senhor vê, fui interceptado pelo avião dos serviços meteorológicos de Gluceste e foi ele quem me encaminhou. Neste nevoeiro, porém, deve ter havido um PCT; não há outra maneira de aterrar. Mas, quando vi as luzes de Minton, pousei pensando que era Merriam St. George.”
“Mas nós estamos fechados”, disse ele. “Encerramos todo o expediente às 17:00. Não tivemos qualquer chamada para ficarmos de vigilância.”
“Mas a base Merriam St. George tem PCT”, insisti.
“Eu sei que temos”, gritou ele, “mas não foi usado esta noite. Está fechado desde as 17:00.”
Fiz a pergunta seguinte pausadamente e com todo o cuidado.
“Sabe qual é a base mais próxima da RAF que trabalhe na faixa de 121,5 megaciclos durante a noite, e qual a mais próxima daqui que mantenha um serviço de escuta de chamadas de emergência 24 horas por dia?”
“Sei”, disse ele, também lentamente. “A oeste, a base de Marham da RAF; ao sul, a base de Lakenheath da RAF. Boa noite, Feliz Natal.”
Pus o fone no gancho. Marham ficava a 65 km, do outro lado de Norfolk, e Lakenheath, a 65km ao sul, em Suffolk. Com o combustível que me restava, eu não poderia chegar a Merriam St. George, que não estava nem aberta. Como poderia então ter alcançado Marham ou Lakengeath? Eu havia dito ao piloto daquele Mosquito que só tinha combustível para cinco minutos. Ele fizera sinal de haver compreendido. De qualquer modo, ele estava voando afastado, muito baixo, depois de termos mergulhado no nevoeiro, e não poderia cobrir 56km assim. O homem devia estar doido.
Comecei então a tomar consciência de que, na realidade, eu não devia a vida ao piloto da meteorologia de Gloucester, mas ao tenente Marks, apreciador de cerveja, ao tenente Marks, resmungão e há muito ultrapassado, que não sabia distinguir a frente de um avião de outra, mas que tinha feito 400m através do nevoeiro para acender as luzes de uma velha pista porque ouvira um jato dando voltas no ar perto demais da terra. Ainda assim, o piloto do Mosquito já devia estar agora de volta a Gloucester, e ele merecia saber que, apesar de tudo, eu estava vivo.
“Gouceste?”, perguntou a telefonista. “A esta hora da noite?”
Uma coisa que se pode dizer sobre as esquadrilhas da meteorologia é que elas está sempre em serviço. O meteorologista de plantão recebeu a chamada. Expliquei-lhe o que se passava.
“Desculpe, mas deve haver algum engano, tenente”, disse ele. “Não podia ser um dos nossos. Os Mosquitos foram retirados se serviço há três meses. Agora usamos Camberras.”
Sentei-me com o telefone na mão, olhando para ele sem querer acreditar. Veio-me então uma idéia.
“Que foi feito deles?” perguntei eu. Meu interlocutor deve ter sido combatente, homem já de certa idade – e de grande gentileza e paciência para suportar perguntas tão idiotas àquela hora.
“Foram par a sucata, creio eu, ou é mais provável que tenham ido para museus.”
“Um deles não poderia ter sido vendido a algum particular?”
“É possível”, disse ele por fim.

E Feliz Natal
Desliguei o telefone e sacudi a cabeça, perplexo. Que noite! Que noite incrível! Primeiro, meu rádio e todos os meus instrumentos deixam de funcionar; depois quem se perde sou eu e fico sem combustível. Em seguida, sou levado a reboque por um lunático insensato, apaixonado por aviões obsoletos (pilotando o seu próprio Mosquito, noite adentro), que, por acaso, me avista, chega tão perto de mim que quase me faz cair, e, por fim, um oficial de serviço em terra, meio bêbado, tem a idéia de acender as luzes da pista a tempo de me salvar. Difícil ter mais sorte! Uma coisa, porém, era certa; aquele amador, verdadeiro ás, não tinha a mais leve idéia do que estava fazendo. Por outro lado, onde estaria eu agora se não fosse ele? Boiando morto no mar do Norte, a esta hora.
Tomei o resto do uísque num brinde a ele e à sua estranha paixão de pilotar aviões velhos em vôos particulares. Nesse momento, o tenente Marks pôs a cabeça à porta.
“Seu quarto está pronto”, disse-me. “Número 17, mesmo ao fundo do corredor. Joe foi acender o fogo para você. A água do banho está esquentando. Se não se incomodar, acho que vou dormir.”
Peguei meu capacete e dirigi-me para o fundo do corredor ladeado de números de quartos de oficiais solteiros há muito destacados para outros postos. Da porta do 17, saía uma réstia de luz. Quando entrei no quarto, um homem já idoso, que estava ajoelhado em frente à lareira, levantou-se. Levei um susto. Os encarregados dos cassinos são em geral homens a serviço da RAF. Aquele, no entanto, devia ter quase 70 anos e era, sem dúvida, um civil, recrutado no local.
“Boa noite, tenente”, disse ele. “Sou Joe... o encarregado do cassino.”
“Eu sei, Joe, o tenente Marks me falou a seu respeito. Sinto muito dar-lhe tanto trabalho a esta hora da noite. Acabo de aparecer aqui, por assim dizer.”
“O tenente Marks me disse.”
‘Já está aqui há muito tempo, Joe?”, perguntei eu, mais por cortesia do que propriamente por curiosidade.
“Há quase 20 anos. Desde pouco antes da guerra, quando a base foi instalada.”
“Então viu muitas coisas mudarem, não é? Nem sempre as coisas devem ter sido como são hoje.”
“Não eram não.” Então, contou-me sobre o tempo em que os quartos viviam repletos de jovens pilotos, cheios de vida, quando a sala de jantar ressoava com vivo ruído do bater de pratos e talheres, e o bar se animava com as canções alegres; falou dos meses e anos durante os quais o céu acima da base crepitava com o ronco dos motores a hélice, levando aviões para a guerra e trazendo-os de volta.
Enquanto ele falava, esvaziei o que restava de meia garrafa de vinho tinto que ele tinha trazido da cantina. Joe era um bom empregado. Depois de engolir um prato de bacon com ovos que ele tinha preparado, levantei-me da mesa, tirei um cigarro do bolso de meu macacão de vôo, acendi-o e dei uma volta pelo quarto. Ele começou a tirar a mesa. Parei em frente de uma velha fotografia emoldurada, sozinha no consolo da lareira por cima do fogo. Parei com o cigarro a meio dos lábios, sentindo que o quarto de repente ficava frio.
A fotografia era já velha e amarelecida, mas ainda estava suficientemente nítida. Mostrava um jovem mais ou menos de minha idade, vestido com equipamento de vôo. Fixava a câmara com implacável intensidade.
Atrás dele, bem visível, estava seu avião. Não podia haver engano: era a silhueta esguia, brilhante, do caça-bombardeiro Mosquito.
“Quem é o piloto, Joe?”
“Que piloto?”
Fiz sinal com a cabeça para a fotografia isolada, por cima da lareira.
“Ah, sim. É a fotografia de John Kavanagh. Esteve aqui durante a guerra.”
Pôs o copo do vinho em cima dos pratos.
“Kavanagh?” Aproximei-me de novo da fotografia e examinei-a de perto.
“Sim, era irlandês. Excelente homem, se posso falar assim. Este era justamente o seu quarto.”
“De que esquadrilha era ele, Joe?” perguntei-lhe, ainda observando o avião em segundo plano.
“Dos Pioneiros, tenente. Eles voavam Mosquitos. Excelentes pilotos, todos eles, senhor. Mas eu arriscaria dizer que Johnny era o melhor de todos. Talvez eu seja suspeito para falar. Era ordenança dele, entende?”
Não havia dúvida. As letras um tanto esmaecidas no nariz do Mosquito, por detrás do piloto na fotografia, eram JK. Não Jig King, mas Johnny Kavahagh.
Tudo era agora claro como água. Kavanagh tinha sido um excelente piloto, voando numa das esquadrilhas de elite durante a guerra. Depois, havia saído da Força Aérea, dedicando-se provavelmente à venda de carros de segunda mão, como vários fizeram. Assim, ganhara muito dinheiro na próspera década de 1950, comprara provavelmente uma bela casa de campo, e assim ficara com dinheiro suficiente para se entregar à sua verdadeira paixão, que era voar –ou, melhor, reviver o passado, seus dias de glória. Tinha comprado um velho Mosquito num dos leilões periódicos que a RAF faz de seu material obsoleto. Depois de bota-lo no ponto, voava particularmente nele sempre que lhe dava na veneta. Não é má idéia para passar as horas livres, uma vez que se tenha dinheiro.
Ele devia estar, portanto, de regresso de qualquer viagem à Europa, e, vendo-me voar em triângulos por cima da camada de nuvens, compreendeu que eu estava em dificuldade e serviu-me de guia. Determinando com precisão sua posição, graças aos sinais cruzados dos radiofaróis, e conhecendo de cor aquela resga de costa, tinha tomado o risco de procurar sua antiga base aérea de Minton, apesar do denso nevoeiro. Era um risco dos diabos, mas, de qualquer maneira, eu não tinha mais combustível, de modo que seria aquilo ou a tragédia.
Não tinha dúvida de que podia encontrar esse homem, provavelmente até por intermédio do Real Aeroclube.
“Era com certeza um bom piloto”, disse eu com ar de reflexão, pensando em sua atuação naquela noite.
“O melhor de todos”, respondeu o velho Joe por atrás de mim. “Diziam que ele tinha olhos de gato. Eu me lembro de que muitas vezes, quando a esquadrilha regressava, depois de lançar foguetes de reconhecimento sobre os alvos a serem bombardeados na Alemanha, o resto dos jovens ia ao bar tomar uma bebida, provavelmente várias até.”
“E ele não bebia?” perguntei.
“Bebia, sim, mas a maior parte das vezes ia encher de novo o tanque e decolava sozinho, voltando para o canal da Mancha ou para o mar do Norte em busca de algum bombardeiro em dificuldades à procura da costa, para guia-lo de volta à base.”
Tirei os olhos da fotografia e apaguei o cigarro no cinzeiro ao lado da cama. Joe estava à porta.
“Um verdadeiro homem”, disse eu com toda a sinceridade. Ainda hoje, já de meia-idade, não deixava de ser um soberbo voador.
“Ah, sim, um verdadeiro homem, o Kavahagh. Lembro-me de uma vez me dizer aí, precisamente onde o senhor está, diante do fogo: “Joe, seja onde for que se encontre um deles por aí, na noite, tentando regressar, eu vou lá busca-lo e traze-lo para a base.”
Fiz um sinal comovido de assentimento. Era evidente que o velho Joe adorava o seu oficial do tempo de guerra.
“Bem”, disse eu, “ao que parece, ele ainda continua fazendo a mesma coisa.”
O velho Joe sorriu.
“Seria muito difícil acreditar, tenente. Ele saiu em seu último vôo de patrulhamento na véspera do Natal de 1943, há precisamente 14 anos, e nunca mais voltou. Caiu com o avião em algum ponto do mar do Norte... E agora, tenente, boa noite e Feliz Natal.”

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