terça-feira, janeiro 2

...E Deus criou as grandes baleias

fonte : Revista Seleções
data : Julho de 1971
autor : Peter Mattheiessen

Breve não existirão mais. Uma derradeira e triste visão do maior animal que já existiu na Terra, hoje vítima de implacável ganância e de moderno arsenal de caça.

Acordo a bordo do beleeiro W029, saio do beliche e vou ao convés, onde o vento matinal me açoita o rosto. Uma primeira ave escura desliza como uma sombra sobre as ondas envoltas em penumbra. O vento sopra de sudoeste a uma velocidade de 10 nós, mas há rabos de galo no céu, indicando que o dia será fresco. A dura silhueta negra do canhão arpão montado na proa, subindo e descendo enquanto o barco vai cortando as altas vagas, destaca-se contra o Sol que nasce nas paragens longínquas do sul do Oceano Índico.
Pela escada de corda um marinheiro sobe à gávea. Estamos 30 milhas a lesta de Durban, Natal, na costa oriental da África, rumando a 14,5 nós para a plataforma de mil braças. O W-25 está a bombordo; e a estibordo, distribuídos a espaços de três milhas, estão o W-17, o W-16, o W-26 e o W-18. são esses os únicos baleeiros atualmente operando na frota da Union Whaling Company. São tão poucas agora as grandes baleias que só o Japão e a Rússia ainda se dedicam à pesca em grande escala*. A baleia azul está praticamente extinta, as baleias propriamente ditas e os jubartes estão indo pelo mesmo caminho. Baleias grandes que ainda existem em certo número são os rorquais e cachalotes; caçados em todos os oceanos, poderão desaparecer nos próximos 10 anos.
Usando pequenos aviões para localizar a presa, os baleeiros percorrem laboriosamente os oceanos, matando números cada vez maiores de baleias cada vez menores. A implacável destruição de vidas mal chega a ser compensadora, já que quase todos os produtos de baleia podem ser obtidos mais facilmente de outras fontes; a indústria baleeira está definhando. Ainda assim não há melhor emprego para essas frotas de navios – e nem há melhor emprego para as baleias, a julgar pela apatia com que a carnificina tem sido tolerada. “Custos Operacionais “ é a única justificativa encontrada para a persistência na destruição das baleias, e em nome desta pequena economia os mais possantes animais que já existiram na Terra desaparecerão para sempre
Pistas nas profundezas. O rádio chama: o avião localizou baleias, dois cardumes, separados várias milhas um do outro, rumando lentamente para o sul. A presa está a 10 milhas de distância, mas o Comandante Torbjorn Haakestad dirige-se à ponte de comando, abandonando a suculenta refeição de presunto com ovos, arenque defumado, feijão, molho de pimenta, pão preto e leite; ele é o chefe de pesca da flotilha, responsável pela sua localização. Às 8:15 oW-25 aparece de flanco no horizonte, um largo vulto preto destacando-se vagamente contra um sol de prata. Acabou de matar um cachalote. Uma segunda baleia esguicha perto da bandeira amarela e verde que assinala a primeira presa; ao vento matinal a bandeira drapeja na ponta de uma vara de bambu que se ergue três metros e meio acima do flutuador. Um pequeno transmissor está fixado à vara, para que se possa localizar a baleia à distância, mesmo depois de escurecer.
Antigamente os rádios eram desnecessários, pois os navios não precisavam ir longe para encontrar mais uma baleia. Ainda na temporada de 1967 foram apanhados ao largo de Durban 2.435 cachalotes; em 1970 o número de baleeiros em uso teve de ser reduzido de 13 para seis, e foram caçadas 1.824 baleias.
À aproximação do W-29 a baleia fez-se ouvir. Poucos minutos depois o piloto anuncia que a localizou pelo sonar. O comandante resmungou qualquer coisa para o timoneiro, que muda o curso e pede meia força à casa de máquinas. O artilheiro (os capitães preferem ser chamados artilheiros) percorre o longo passadiço inclinado até à plataforma da proa e senta-se pacientemente junto ao canhão, as grandes mãos pousadas nos joelhos. O barco diminui a velocidade até ouvir-se apenas um sussurro da máquina, e desliza em estranho silêncio, ouvindo-se o ruído da água batendo contra o casco.
A baleia permanece a uns 300 metros de profundidade, avançando na escuridão, perseguida pelo implacável zunido do sonar, que pode localiza-la a 750 metros abaixo da superfície. O barco de aço espera em cima, arfando pesadamente na monotonia das ondas. “Conosco elas não tem chance”, diz calmamente o piloto, sua voz traindo um pequeno cansaço, talvez remorso.
O canto da baleia. O cachalote pode ficar submerso uma hora inteira ou mais, mas o pânico do animal perseguido reduz esse tempo. Perscrutando o mar silencioso lá embaixo, fiquei pensando sobre o que se passaria na mente daqueles grandes vultos escondidos nas profundezas. O cachalote tem o maior cérebro já desenvolvido por um animal, e sem dúvida estava comunicando seu alarma por meio de clics, que podem ser transmitidos a enormes distâncias.
Que se saiba, esses clics constituem o único som produzido pelo cachalote, diferente do jubarte, que canta como as trombetas do paraíso. Sons cósmicos, sons eletrônicos, a música das esferas tremulam através do brando marulhar, com a ressonância de uma câmara de eco, e com eles as notas suaves de um sino e os doces guinchos dos morcegos, as notas baixas da rã, latidos, grunhidos, assobios, roncos e barridos elefantinos, como se o leito do oceano tivesse desmoronado. Não há palavras que dêem uma idéia exata de como é misterioso o canto da baleia, afinado através das idades até à definitiva pureza, um som que o homem deveria ouvir todas as manhãs, para lembra-lo do amanhecer do mundo.
O W-29 arfa e joga. O homem na gávea balança em arcos loucos. O piloto, tornando a aparecer, dá de ombros: a baleia sumiu no abismo. Descendo pelo menos a 900 metros, esta escapou ao sonar.
Morte em alto mar. O avião, voando em círculos, como uma vespa preta ao sol, deixou cair uma marca de tinta no ponto em que o cardume fora avistado pela primeira vez; uma mancha clara, de um verde plástico, sobe e desce sobre o azul. Uma milha adiante o navio encontra as baleias, que avançam aos saltos, como toninhas, no mar picado. Há mais de 20 no cardume e os grupos de família nadam ombro a ombro, bem unidos. Cada vez que se erguem, o mar escorre-lhes dos dorsos negros, reluzentes; depois a névoa de sua respiração desaparece numa explosão de água branca. O vento torna-se mais forte e quando as baleias esguicham aparece um arco-íris na tênue névoa carregada pelo vento.
Na proa, o canhão arpão gira de bombordo para estibordo, procurando o maior dos animais. A proa divide o cardume ao meio e os vultos das baleias deslizam como sombras de nuvens sob a superfície do mar. O artilheiro ergue uma das mãos, quase com displicência, para fazer pontaria; curva-se sobre o canhão quando o navio balança. Um forte estampido, contra o vento, abafado e atordoador.
Por estranho que pareça, o tiro errou o alvo; o artilheiro senta-se pesadamente, enquanto o imediato recarrega a arma. Um marinheiro arrasta da coberta da proa um arpão vermelho, entalhado, de 120 centímetros de comprimento e 75 quilos de peso, e com a ajuda do imediato, enfia-o pela boca do canhão. O imediato instala a granada que detona dentro do corpo da baleia três segundos após o impacto, e com poucas voltas de cordão fino prende o arpão, impedindo-o de resvalar pelo cano inclinado da arma. A seguir as silhuetas humanas retiram-se da proa, ficando só o vulto do artilheiro sentado, negro como o próprio canhão, contrastando com o mar faiscante.
Sulcando as ondas, as baleias em fuga deixam uma esteira branca na superfície azul, os dorsos brilhando como rochas lisas de lava, numa torrente veloz. Enquanto o navio aderna e retoma sua posição, o cardume se desfaz numa poderosa explosão de névoa e espuma. O barco cavalga os dorsos negros, o arpão sempre procurando uma baleia grande. De repente, uma série de explosões: o tiro, o estrondo abafado dentro do corpo da baleia, e o abalo de uma mola gigantesca abaixo do convés. A corda de nylon do arpão, com uma resistência de 19,5 toneladas, retesa-se violentamente, espirrando água; todo o navio estremece ao impacto da primeira convulsão da baleia agonizante. Vê-se o brilho branco dos dentes da mandíbula quando o animal rola, e o primeiro jorro de seu sangue espalha-se sobre a superfície. Com o guincho o barco é posto de costado e o imediato mete um arpão mortal – um porta granada sem cabo – naquela massa que se debate, enquanto os tripulantes tratam de esquivar-se das montanhas de espuma. A baleia fica imóvel; apenas as barbatanas peitorais se contraem quando lhe fogem os últimos restos de vida.
Procissão dos condenados. Por meio de uma longa vara foi introduzido um tubo de borracha na carcaça, e ar é bombeado para que ele flutue. Ao mesmo tempo os marinheiros dão uma forte laçada ao redor da base da cauda, prendendo a outra extremidade da corda ao grande flutuador da bóia demarcadora. Com uma faca presa à ponta de uma vara comprida, o piloto, curvando-se sobre a amurada, corta a linha do arpão e o navio se afasta da baleia flutuante. O canhão já foi recarregado e uma nova linha presa ao arpão. Onze minutos se passaram desde que o primeiro ferro destruiu uma vida.
A baleia inflada jaz estendida de lado, lavada por ondas vermelhas do seu próprio sangue. A mancha brilhante sobre a clara água do mar já é enorme e densa, como se nunca se desmanchasse. O sangue que jorra dos ferimentos é de um profundo vermelho escuro, mas na superfície do mar torna-se vermelho rubro, vivo como tinta, e a quantidade é assombrosa.
Pelo começo da tarde os seis barcos juntos só tinham arpoado seis baleias, e como o W-29 estava com falta de dois homens da tripulação, o Comandante Haakestad decidiu rebocar as seis baleias para o porto. Os outros barcos passariam a tarde caçando e, se o tempo permitisse, ficariam ao largo até à manhã seguinte.
Pelo fim da tarde o W-29 recolheu sua última baleia e rumou para oeste, iniciando a longa viagem para Durban. Sua velocidade era reduzida em talvez três nós pelas carcaças que arrastava, que se mexiam e retorciam na esteira do barco e nas ondas, como se tivessem recuperado a vida. Chocando-se umas contra as outras, as graciosas caudas cortadas, as maxilas frouxas, pareciam condenadas.
O tilintar das grosseiras correntes que lhes serravam o couro, o fragor da arremetida do mar contra as carcaças, a esteira repelente que escorria delas para a água azul turquesa cada vez mais escura, em nada contribuíam par atenuar a atmosfera infernal à hora do crepúsculo.
Pouco depois da meia-noite o W-29 estava ao lardo da rampa em que cada baleia é carregada num vagão plataforma e transportada por via férrea vários quilômetros até ao posto costeiro. Ali, numa confusão de correntes e máquinas, retira-se a camada de banha, de 15cm de espessura, em tiras do comprimento da baleia. A seguir é retirada a carne, depois as maxilas, que são levadas a serras mecânicas de corte cruzado, para serem cortados em pedaços que serão cozinhados em enormes cubas engastadas na plataforma de concreto. O extrato de carne é vendido a indústrias de sopas e alimentos enlatados como condimento concentrado. A farinha, uma a duas toneladas, obtida da carne e dos ossos dos cachalotes, tem 75% de proteína e é empregada na alimentação de gado e galinhas.
O óleo, depois de refinado, é usado na manufatura de aditivos para lubrificantes e os dentes são aproveitados na fabricação de objetos de adorno.
Nada se perde – só a baleia.

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