sexta-feira, janeiro 19

Sua Alteza, a nossa coelhinha

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereiro de 1973
Autor : R. M. Lockley

Uma bolinha de pêlo castanho acinzentado acaba rainha indiscutível de um lar e de corações

Mr. X. era um gato malhado, com uma mancha no pescoço que lembrava uma gravata borboleta branca. Senhorial e preguiçoso, era um neutro muito comodista, que tinha o seu cesto particular diante da lareira e uma portinhola só para ele dando para a varanda dos fundos da nossa casa de campo. De vez em quando ele trazia para dentro um ratinho do mato, como para justificar a sua tigela de leite.
Numa manhã de janeiro, meu filho Martin entrou correndo no escritório, gritando que Mr. X. tinha apanhado um coelhinho e estava a pique de mata-lo.
A vítima era uma bolinha de pêlo castanho acinzentado, aterrorizada demais para fazer outras coisas além de ficar toda encolhida enquanto o gato a esbofeteava com a pata. Sua orelha esquerda sangrava de dois buraquinhos abertos pelas presas aguçadas de Mr. X.
“Vamos salva-lo, papai!” Martin chorava de desespero enquanto batia o pé com força, a fim de afastar o gato o bastante para eu poder pegar o coelhinho, que caiu esparramado nos meus braços, aparentemente morto de susto.
A Coelha, como foi batizada, sobreviveu apenas graças à determinação de Martin de que ela não deveria morrer. Mal respirava, mas Martin acariciou-a durante mais de uma hora. Quando finalmente saiu do estado de coma, continuou com os olhinhos fechados, recusando qualquer alimento. À noite, Martin e eu a forçamos a engolir leite com glicose e conhaque, por meio do tubo de borracha da minha caneta-tinteiro. Martin passou a noite acordado, observando a respiração irregular da bichinha, embrulhada num cobertorzinho de boneca, na cesta de Mr. X. Claro que o gato ficou furioso com a humilhação, mas Martin, com muito bom senso, obrigou-o a ficar na sala, disposto a ensinar-lhe a nunca mais magoar a Coelha.
Pela manhã, Martin bocejou alto e satisfeito. “A Coelha vai viver. Ela chegou a lamber os bigodes depois do último leite com conhaque.” Mais tarde, arranjei no jardim um punhado de dentes de leão e folhas de trevo. Justamente quando Martin comentava com tristeza que “a Coelha é muito novinha para alimentos sólidos”, ela deu um passo à frente e, lenta e pensativamente, mastigou uma folhinha. Depois de comer o maço todo, ela de repente pulou para fora da cesta, deu um salto no ar, uma piruetazinha, e voltou para a cesta, onde ficou encolhida... aparentemente com uma boa indigestão.
No nosso terreno, eu construíra alguns grandes cercados de tela, nos quais estudava, em ambiente quase natural, a estrutura social da comunidade dos coelhos selvagens. Martin, porém, recusava-se a deixar-me resolver o problema de tomar conta da Coelha, enquanto ele estava na escola, colocando-a na segurança dos meus cercados de observação. Com toda a razão, argumentava que os coelhos grandes iriam incomoda-la, mas a verdadeira razão é que ele queria conserva-la em casa como o seu animalzinho de estimação.
Foi assim que a Coelha se tornou membro efetivo da nossa estrutura doméstica, e, para espanto meu – de vez que é sabidamente difícil domesticar e treinar coelhos selvagens – exibia uma extraordinária inteligência e confiança desde o começo. É claro que havia uma predisposição nossa, mas suas reações rápidas e seu comportamento carinhos conquistaram nosso amor e estima.
A Coelha tornou-se brincalhona demais. Depois do chá, que ela tomava fraco, com açúcar, inventava sempre uma brincadeira. Uma das favoritas era brincar de pegar, que logo evoluiu para esconde-esconde. Ela desaparecia sob um móvel, mas se a gente tardava muito em descobrir, batia com a patinha revelando o esconderijo, e logo apareciam os bigodes triunfantes de trás de uma perna de sofá ou de poltrona.
Ela desfrutava de liberdade na casa toda, e freqüentemente disparava escada acima, sempre espiando dos cantos a fim de verificar se estava sendo seguida. Não fazia absolutamente nada dentro de casa, tendo rapidamente aprendido a sair para o jardim através da portinha do gato – outra humilhação para ele.
Seu sistema de comunicação conosco gradualmente desenvolveu-se numa série de sinais claramente reconhecíveis. Um “uh-huh” gutural era uma afirmativa feliz; uma batida de pata era uma negativa polida; duas ou mais batidas, um “não” definitivo, ou sinal de raiva ou medo; se girava a cabeça de lado, olhando para cima com um olho só, estava chamando a atenção; um assobio sibilante era a sua imitação dos meus freqüentes “por favor!” Este som de apelo precedia sempre suas tentativas de fazer-me brincar com ela.
Suas relações com o gato permaneceram tensas. Avisado por nós para jamais magoa-la, Mr. X saía da cesta quando ela se aproximava, o rabo chicoteando de raiva, ainda mais furioso com as tentativas da Coelha de brincar com aquele nobre apêndice. De repente, uma noite, ficamos espantados de ver Coelha e gatos juntos, deitados lado a lado no tapete. Mr. X ronronava carinhosamente, lambendo e cheirando a Coelha. Lembrei-me então de ter visto a Coelha, naquela tarde, cavando um buraco debaixo da moita de erva dos gatos. Ela ainda tinha o cheiro da planta – irresistível para quase qualquer gato. Depois disso, tornaram-se amigos, embora a Coelha dominasse a cesta.
Brincar no jardim era a alegria da Coelha, mas gastei boas horas ensinando-lhe a não comer nem amassar os canteiros de flor e a horta. Usando a sua própria linguagem de bater os pés e os “nãos” sonoros, consegui se obedecido pelo medo; mas era indispensável fazer “uh-huh” e elogia-la quando se comportava bem.
Quando não havia ninguém disponível para diverti-la, eu a confinava num cercado móvel de arame, onde ela podia exercitar-se e comer. Isso funcionou durante alguns dias; mas, certa tarde, teve de ser metida ali à força, dando no chão patadas cheias de ressentimento.
Seu ódio súbito ao cercado, descobrimos, era puro terror: naquele dia, sem que soubéssemos a doninha que vinha tentando entrar no cercado conseguira o seu intento. Paralisada de medo, a Coelha encolhera-se imóvel, conseguindo finalmente emitir um “grito” longo e apavorado. Eu estava perto, felizmente, e pude salva-la antes de a doninha se lançar sobre ela.
Horas depois, quando se recuperou do susto que a deixou de olhos vidrados, prometi à Coelha que jamais a trancaria: “Se alguma vez uma doninha correr atrás de você, corra direto para a portinhola do gato e esconda-se no escritório. A porta está sempre aberta.”
Ela compreendeu tudo perfeitamente, e passou a seguir-me por toda a parte. Nos dias de chuva, quando não tinha nada que fazer lá fora, ela deixava-se ficar ao pé da minha mesa, enquanto eu tentava tocar o trabalho.
Às vezes, depois de ficar me chamando a atenção puxando os laços dos meus sapatos, ela ignorava as minhas batidas de pé e os sonoros pedidos para que sumisse dali, e de repente pulava para o meu colo e daí para a mesa. Acabava sentada no livro que eu estivesse lendo ou na carta que estivesse escrevendo. Depois disso, que me restava além de toma-la na mão e beijar solenemente a sua macia carinha bigoduda, admirar os seus olhos lindos e corajosos e dizer-lhe que ela era de uma chatice intolerável?
Os coelhos possuem sob o queixo uma glândula que segrega gotas de um perfume com o qual assinalam seus territórios e possessões. Quando eu a acariciava, a Coelha passava o queixo em mim, marcando-me com o seu perfume; e, com esse beijo de coelho, ela afirmava e reafirmava que eu era sua propriedade particular.
Sua sociabilidade era tal que, nos nossos passeios, ela nunca se afastava demais de mim. Ao primeiro sinal de perigo, um gato, por exemplo, um cachorro ou gavião, ela vinha correndo e pulava-me nos braços, já prontos para recebe-la.
Pelo outono, a Coelha crescera e transformara-se numa criatura elegante, madura, menos brincalhona e mais independente. Já sem medo de cachorros visitantes, ela ficava firme, batia a pata dizendo o seu “não” e atacava com suas garras afiadas. Numa noite de novembro, ela demorou tanto a voltar do seu giro de alimentação que eu saí para chamá-la da varanda. Lea veio correndo para a cesta de Mr. X, onde espalhou um bocado de terra que lhe caía do pêlo. “Ela está cavando uma toca”, anunciou o meu filho, cheio de conhecimento. “Eu a vi hoje à tarde, lá na mata. E olha só a barriguinha dela.”
Não sei como, e nunca vi, mas a Coelha encontrara um companheiro. Sua primeira ninhada nasceu pouco antes do Natal: quatro filhotes emergiram da toca na mata, inteligentemente fechada com terra nos primeiros dias, enquanto eram cegos e nus. Nos meses seguintes, a Coelha e seu misterioso marido produziram mais quatro ninhadas – e a cada parto ela se tornava menos apegada a nós. Finalmente deixou de entrar em casa, mas sempre me permitia visitá-la.
Ajudada pelo companheiro, ela repovoou as matas e os campos vazios. As fêmeas da primeira ninhada estava reproduzindo naquele mesmo verão, tornando a Coelha avó, rainha e matriarca indiscutível da nova e florescente dinastia – como fora da nossa casa.

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