sábado, janeiro 20

Champanha: Um estado de espírito, um mito, um milagre

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1971
Autor : Gordon Gaskill ( condensado de Signature )

Uma rolha espoca...e jorram as bolhas mais glamorosas, estrelinhas líquidas que transformam uma simples bebida em um “vinho de Deus”, “riso de mulher”, o próprio “barômetro da felicidade!”

De repente, havia tanta uva de champanha que não sabiam o que fazer com elas. Os apanhadores não tinham mais cestos. As prensas não davam conta. Para guardar a fantástica torrente de suco, os produtores de vinho apelaram para barcaças tanques, caixas de água abandonadas, até piscinas.
Foi essa cena fantástica que presenciei na região de Champanha da França durante a colheita de uvas em 1970 – o grande, incrível, fabuloso ano que bateu todos os recordes na longa história do vinho mais glamoroso do mundo. “Nunca desde Noé”, exultou um jovem francês, “houve dilúvio igual!”
Ao todo, a colheita fantástica produziu cerca de 35,5 milhões de galões de champanha – o suficiente para encher 64 piscinas olímpicas ou 170 milhões de garrafas, e para extrair dos bolsos em todo o mundo pelo menos um bilhão de dólares. Nada mau para um negócio que vive de bolhas.
Mas que bolhas! Elas transformaram o champanha de uma simples bebida em um estado de espírito, um mito, um milagre. Conferem o dom da alegria – “como o riso de uma mulher bonita”, dizem os franceses – e tornam o champanha a coisa mais apropriada para comemorar um casamento ou uma promoção, para batizar um navio ou um filho.
É totalmente francês esse líquido suave e borburante. Talleyrand chamou-o de “civilizante”. Voltaire disse que “reflete a alma brilhante da França.” O Conde Robert Jean de Vogue, o maior produtor de champanha da França, classificou-o como “o barômetro da felicidade do mundo”.
No fabuloso ano de 1970, aquele barômetro apontava realmente para bem alto. Foram vendidas mais de 100 milhões de garrafas – o dobro da cifra de há 10 anos atrás sendo que só os franceses compraram acima de 71 milhões. A Inglaterra, como sempre, foi a principal importadora, com a Itália e os Estados Unidos disputando o 2º lugar.
O que é estranho é que o grande surto nas bolhas desperta sentimentos contraditórios entre os fabricantes de champanha. “Há hoje algumas firmas que querem torna-lo um artigo de produção em massa”, explicou um especialista. “Outros querem conserva-lo como o Rolls Royce dos vinhos.” Ele franziu a testa, meio admirado e meio irritado. “Se a procura continuar a crescer, não poderemos produzir o suficiente para satisfaze-la.”
O champanha é um vinho estranho, especial, diferente de todos os outros. A maior parte dos vinhos só fermenta uma vez, o champanha tem de fermentar duas. A maior parte dos bons vinhos procede de um único vinhedo e do mesmo ano, enquanto a garrafa média de champanha pode conter uma mistura de vinhos até de 40 vinhedos...e de vários anos. A cor do champanha é um dourado muito claro, mas ele é feito principalmente de uvas pretas. “Sim”, sorriu o especialista. “O suco das uvas de todas as cores é branco; só fica vermelho se se deixar misturar com as cascas escuras por algum tempo. Para o champanha, fazemos o suco correr tão depressa que não fica manchado.”
As uvas que produzem o champanha vem de uma pequena região da antiga província de Champagne, a uns 150 quilômetros ao nordeste de Paris. Ali o tranqüilo Rio Marne serpenteia por vales suaves e a terra é ondulada, verdejante e branda. A fim de conservar as qualidades que tornam esse vinho tão especial, a lei francesa determina cuidadosamente onde as uvas de champanha podem e onde não podem ser cultivadas. A lei é tão severa que a gente pode literalmente ficar com o pé direito num vinhedo, cujas uvas podem fazer champanha, e o pé esquerdo num vinhedo onde não podem. Hoje, só perto de 20.000 hectares gozam desse privilégio, e essa terra favorecida é fantasticamente valiosa ( um hectare de excelente qualidade pode valer até 125.000 dólares).
Comecei a explorar os mistérios do champanha durante a vendange, ou vindima, e não tardei a descobrir que a mão de ferro da lei francesa vai além do uso da terra, até especificar exatamente quais uvas podem ser cultivadas – principalmente duas variedades pretas e uma branca – e exatamente como devem ser podadas as vinhas, para que dêem menos uvas, porém melhores. Logo depois de espremidas as uvas, começa a primeira fermentação. A maior parte das grandes firmas faz isso em grandes tonéis forrados de vidro, esmalte ou aço inoxidável, mas algumas casas menores ainda trabalham à moda antiga, usando tonéis de carvalho. Pode-se realmente ouvir o vinho novo “fervendo” dentro dos tonéis.
Passadas três semanas, o vinho toldado tem de ser clarificado, passando-se por ele uma substância que recolha os minúsculos fragmentos de detritos. Clara de ovo ou gelatina podem ser usados; mas a melhor e mais cara de todas é uma cola de peixe feita de certos esturjões russos. Curiosamente, nenhuma dessas substâncias dá qualquer gosto ao vinho.
Até então o produto de cada vinhedo foi conservado em separado. Agora vem o grande momento: resolver quais os vinhos a serem misturados e como. Cada casa guarda zelosamente a sua fórmula. Algumas usam provadores e misturadores profissionais, mas o chefe de uma grande casa me disse: “Nós empregamos cinco membros de nossa família, os que tem um paladar especialmente bom.” A portas fechadas, eles provam, saboreiam, discutem... e por fim decidem. Geralmente escolhem vinhos de 15 a 30 vinhedos e depois acrescentam vinhos guardados de anos anteriores. Se resolvem usar apenas o vinho daquele ano, o produto torna-se champanha de safra e custa bem mais.
O próximo passo só ocorre ao champanha – a segunda fermentação. Ao vinho já misturado, mas não efervescente, acrescentam-se fermentos e um pouquinho de açúcar (principalmente para criar o gás carbônico – as futuras bolhas) e a mistura é despejada em garrafas individuais que se tornam, na verdade, uma caldeira em miniatura. Agora as garrafas vão para as caves, grandes adegas em túneis (cerca de 200 quilômetros ao todo) cavadas no solo macio de greda. Segundo a lei francesa, tem de ficar debaixo do solo pelo menos um ano; o champanha bom é armazenado durante uns três anos e o champanha de safra durante cinco anos ou mais.
Um dia um jovem negociante de vinhos levou-me para visitar as caves da companhia dele. Dos lados dos túneis principais, nichos profundos, como salas, estavam apinhados com milhões de garrafas arrumadas em desenhos geométricos. O ar, agradavelmente fresco, estava pungente com as exalações do vinho. “Muitas garrafas explodem”, contou-me ele. “As pressões dentro delas alcançam mais de seis quilos por centímetro quadrado.”
‘Os trabalhadores usavam máscaras de ferro para proteger o rosto dos estilhaços de vidro. Mesmo hoje, com um controle severo, nossa firma perde cerca de 100.000 garrafas por ano nas explosões.”
Um pouco mais adiante chegamos aos astros – os artistas, chamados remueurs, que executam o complicado e dispendioso trabalho de clarificar as garrafas dos detritos da segunda fermentação. Cada garrafa é colocada num buraco numa estante de madeira e depois – todos os dias, durante cerca de três meses – ela é ligeiramente virada, agitada e inclinada sempre mais para cima até que por fim fica de fundo para cima tendo todos os detritos se juntado em torno da rolha. Aí vem uma etapa delicada: retirar a rolha velha e os detritos acumulados perto dela sem perder demais do gás borburante e do vinho. Isso é conseguido congelando-se rapidamente um pouquinho do vinho perto da rolha, para que esta e os detritos possam ser retirados facilmente.
Mesmo assim, uma parte do vinho, (em média uma colher de sopa por garrafa) sempre se perde e tem de ser substituída pelo que se chama de liqueur d’expédition. Ainda aqui, cada casa faz segredo absoluto daquilo que põe em sua colherada geralmente, uma mistura de vinhos novos e velhos, às vezes com um toque de conhaque, mais o açúcar. Exatamente quanto açúcar deve ser usado depende em grande parte de onde a garrafa irá ser vendida. Os gostos nacionais variam muito, desde o brut, o mais seco de todos, até o doux, “excepcionalmente doce”.
Nos mercados de hoje encontra-se o número quase inacreditável de 4.000 marcas francesas – ou pelo menos rótulos – de champanha. Mas dois terços de todo o champanha francês é feito por uma dúzia de grandes casas. A maioria são muito velhas, datando do século XVIII e muitas são dirigidas pelos descendentes, por sangue ou casamento, dos fundadores originais. A maior de todas é Moet & Chandon, que vende cerca de 17 milhões de garrafas por ano – comparadas com apenas cinco milhões de sua concorrente mais próxima.
Aprendi muita coisa com os especialistas sobre a maneira de servir champanha – muitas vezes contrariando frontalmente tudo o que é considerado correto em outros lugares. As taças, por exemplo: francês nenhum sonharia em usar aquelas altas, de haste fina, com o bojo largo e raso. Elas só contém uma pocinha de champanha, e deixam as bolhas e o buquê escaparem duas vezes mais depressa do que deveriam. Os conhecedores franceses usam um cálice muito menor, em forma de tulipa ou de cone. Outro conselho: não sirva o champanha gelado demais; o frio demasiado mata o sabor (o certo é entre 6 a 8ºC). Não sirva um champanha muito seco, um brut com doces; eles dão ao vinho um gosto ácido. E não deixe a rolha espocar como um tiro de espingarda: faz com que os gases, portanto as bolhas, escapem depressa demais. É melhor fazer deslizar a rolha suavemente. “Mas ninguém segue esse conselho”, sorriu um especialista, “porque todo mundo gosta daquele estouro.”
Acima de tudo, jamais cometa o engano de pedir a um especialista da região do champanha a opinião dele sobre champanhas feitos fora da França. Eu pedi, e a resposta que me deram foi tão gelada quanto uma garrafa pronta para servir: “Monsieur”, disse ele, “não existe champanha feito fora da França.”
E, posto de lado o chauvinismo, os conhecedores de todo o mundo concordam em que o champanha francês é realmente o melhor. Bismark, que derrotou os franceses nos campos de batalha em 1870, ao ser recebido pelo kaiser foi-lhe oferecida uma taça de vinhos espumante. Ele provou, viu que era uma marca alemã e recusou-se firmemente a beber mais. “O patriotismo”, disse ele ao Kaiser secamente, “pára no estômago.”

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