quarta-feira, janeiro 10

E tudo começou numa simples garagem

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1999
Autor : Erik Calonius

Entre pneus velhos e serras quebradas, esconde-se uma idéia que um dia pode mudar o mundo.

São 2 horas da manhã de 4 de junho de 1896, em Detroit, e o som de aço batendo no tijolo tira você da cama e o leva até a rua. O barulho e a poeira da argamassa triturada tem origem num depósito de carvão nos fundos do número 58 da Avenida Bagley. Os tijolos da parede externa do depósito vem abaixo e, através do buraco, aparece um veículo de aspecto frágil, com quatro pneus de bicicleta, uma campainha de porta fazendo as vezes de buzina e uma barra de leme servindo de volante.
O que você acaba de vislumbrar é o primeiro automóvel de Henry Ford. Você também acaba de testemunhar o nascimento de algo igualmente mágico: a garagem americana.
Antes disso, havia abrigos de carruagens, alpendres e celeiros, mas a garagem, exatamente como a conhecemos, surgiu com o automóvel. Nos Estados Unidos, porém, a garagem não é apenas um lugar para se guardar o carro. Ela se transformou em laboratório, palco, estúdio – lugares onde os sonhadores vem transformando o mundo.

A primeira garagem. No princípio, Henry Ford fazia seus experimentos em casa. Enquanto a mulher, Clara, regulava o fluxo de combustível, ele colocava para funcionar um motor primitivo, movido a gasolina. Os vizinhos reclamaram da barulheira de proporções industriais. Só quem não reclamou foi Felix Julien, que dividia com Ford um depósito de carvão nas vizinhanças. Ele abriu mão de seu espaço no galpão para permitir que o amigo trabalhasse num motor maior, de dois cilindros.
Quando Ford derrubou a parte da parede do depósito para poder sair com sua carruagem sem cavalos, o senhorio, William Wreford, ficou furioso. Até que viu o automóvel. Encantado, Wreford insistiu em bancar as despesas para abrir um buraco ainda maior. Surgia assim a primeira garagem.

O nascimento do Vale de Silício. A Califórnia tem muitos marcos históricos, mas só um deles é uma garagem – num despretensioso prédio de Palo alto, com trepadeiras na fachada. Do lado de fora uma placa anuncia o local como o berço do principal núcleo de alta tecnologia dos Estados Unidos.
Naquela garagem, em 1938, dois jovens colocaram uma série de peças recém pintadas dentro de um velho forno de cozinha, ligando-o . Quando a pintura estava seca e as peças coladas, David Packard e William R. Hewlett tinham acabado de produzir seu primeiro oscilador de áudio – espécie de diapasão eletrônico, usado para afinar instrumentos musicais ou qualquer aparelho que deva vibrar em freqüências precisas – em escala comercial.
Batizaram-no como Modelo 200A, para dar a impressão de que já estavam no mercado havia algum tempo, e estabeleceram o preço em US$ 54,40 – em referência ao slogan dos colonizadores americanos “Cinqüenta e quatro e quarenta ou guerra!” na expansão para o Oeste ( 54 e 40 eram, respectivamente, graus e minutos de latitude.)
O concorrente mais próximo vendia osciladores por 400 dólares. Para surpresa dos jovens empresários, os pedidos começaram a chegar – acompanhados dos cheques.
Os dois inventores tiraram “cara ou coroa” para saber que nome viria primeiro na parceria. Quando a moeda caiu, nasceu a Hewlett-Packard. Hoje, a HP fatura 43 bilhões de dólares anuais.

Fábrica de desenhos animados. Seu pequeno estúdio de desenho animado em Kansas City, Missouri, tinha fracassado, e ele pensou em tentar a Califórnia. Assim, em 1923, aos 22 anos, Walt Disney foi morar com seu tio Robert, que tinha uma casinha na Avenida Kindswell, em Hollywood.
Disney combinou pagar 5 dólares por semana por casa e comida, mas logo ficou sem dinheiro. Quando a paciência do tio estava quase acabando, o responsável por uma casa de espetáculos de vaudeville, concordou em patrocinar uma exibição de desenhos.
Depois de construir, com caixas de madeira, um suporte de câmera rudimentar, Walt produziu os rolos de desenho animado na garagem do tio. Os desenhos eram figuras simples, com piadas impressas dentro de balões, como nas histórias em quadrinhos. Mas esse foi o começo da Walt Disney Company, que hoje arrecada 22,5 bilhões de dólares por ano.

Estacionamento de aviões. Quando era pequeno, C. E. Woolman certa vez saiu pedindo cordas de varal por toda a vizinhança, para poder construir uma pipa gigante, que levasse “passageiros”. Na universidade, estudou insetos. Suas duas paixões se juntaram nos anos 20, quando, usando óculos de aviador, a bordo de um velho aeroplano, passou a dar vôos rasantes sobre as plantações de algodão da Louisiana, pulverizando-as com inseticida.
Em pouco tempo, tornou-se gerente numa empresa de pulverização de lavouras, cujo escritório funcionava junto à garagem de um posto de gasolina em Monroe, Louisiana. Dois anos depois, ele comprou o prédio.
Woolman fez melhorias na garagem, instalando um balcão para compra de passagens, um banco para os passageiros e toldos nas cores verde e branco. Deu à empresa o nome de Delta Air Service. Hoje a garagem está em ruínas, mas a Delta Air Lines transporta mais passageiros do que qualquer outra companhia de aviação do mundo.

A casa da Barbie. Esta é uma história de duas garagens. Ruth Handler era estenografa nos estúdios da Paramount, na Califórnia. O marido, Elliot, trabalhava para um fabricante de acessórios de iluminação e estudava desenho industrial. Um dia, em 1939 ou 1940, lembra Ruth, Elliot chegou em casa, no pequeno apartamento onde viviam, em Hollywood, e falou-lhe sobre um novo tipo de plástico, um material sensacional, chamado Lucite. “Fiquei tão empolgada”, conta ela, “que disse: Vamos comprar o equipamento e instalar na garagem.”
O casal comprou a prazo furadeira, lixadeira, serra e torno de polimento, começando a fabricar espelhos de mão e porta livros com o plástico Lucite. Mas quando um vizinho reclamou do barulho e da bagunça, o senhorio os despejou.
Enquanto isso, um amigo deles, Harold “Matt” Matson, estava fabricando na própria garagem, porta retratos desenhados por Elliot. Quando Ruth e Elliot foram visitá-lo, tiveram uma idéia. Fazendo uma combinação dos nomes Matt e El, abriram uma fábrica de porta retratos. Depois, começaram a produzir mobília para casas de boneca, e, mais tarde, brinquedos.
Em 1951, Ruth concebeu a boneca Barbie, a rainha da terra dos brinquedos. Hoje existem mais Barbies do que pessoas nos Estados Unidos, e a Mattel cresceu a ponto de se transformar numa corporação, com receita de 4,8 bilhões de dólares por ano.

Vamos ao ‘rock’! Nas noites claras de Lubbock, Texas, nos anos 50, era possível captar os sinais fracos do Rhythm and blues da rádio KWKH, de Shreveport, Louisiana. Buddy Holly e seu amigo Jerry Allison costumavam ir até a cidade com o rádio ligado, sonhando com o dia em que teriam a própria banda.
“Buddy e eu gostávamos de um grupo chamado Spiders (Aranhas)”, conta Allison. “E queríamos que nossa banda também tivesse nome de inseto.”
Os dois abriram uma enciclopédia, passaram direto por beetle (besouro) e acabaram chegando à palavra cricket (grilo).
Ensaiando na garagem de Holly, a banda misturou o blues dos Spiders com a música country de Hank Williams. Em fevereiro de 1957, Buddy Holly and the Crickets gravaram That’ll be the day, que em fins de setembro já era um dos maiores sucessos dos Estados Unidos. Outras canções se seguiram numa rápida sucessão – Peggy Sue e Oh boy! -, antes que Holly morresse num desastre de avião, aos 22 anos.

Muito para ler. A garagem mais elegante que já abrigou uma grande instituição americana talvez tenha sido exatamente aquela em que De Witt e Lila Wallace conceberam a revista Reader’s Digest. Wallace havia abandonado a escola, indo trabalhar nos campos de feno de Montana e lutar na 1ª Guerra Mundial, onde foi ferido. Mais tarde, testou sua capacidade como redator, mas acabou sendo demitido. Contudo, uma idéia fixa o atormentava: havia material de leitura em excesso. Por que não selecionar os melhores artigos e matérias, condensando-as numa única revista? Wallace levou a idéia para várias editoras de Nova York, mas ninguém se interessou.
Até que, em 1921, pediu dinheiro emprestado à família e, com Lila, começou a fazer a revista numa sala, instalada embaixo de um bar clandestino de Greenwich Village, em Nova York. Pouco depois, mudaram-se para um apartamento numa garagem em Pleasentville, no estado de Nova York.
Setenta e sete anos mais tarde, a Reader’s Digest vende perto de 25 milhões de exemplares por mês em todo o mundo (mais de meio milhão no Brasil).
Em algum lugar, em alguma garagem, outro jovem está compondo uma canção que um dia ganhará o disco de platina. Em algum lugar, entre o cortador de grama e a máquina de lavar, um adolescente está criando uma nova tecnologia. Em algum lugar, um jovem casal está começando mais uma industria bilionária.
Essa é a arma secreta americana: a garagem de casa.

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