segunda-feira, janeiro 8

Inesquecível Joe Louis

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1983
Autor : Billy Conn

Golpes fulminantes desabavam daqueles punhos de aço de peso-pesado, mas seu coração só conhecia o humor discreto, a mais humilde dignidade e a honra.

No Cemitério Nacional de Arlington, ao ouvir o toque de silêncio do corneteiro diante do corpo de Joe Louis, meu pensamento recuou 40 anos, até a noite de 18 de junho de 1941. o estádio aberto do Pólo Grounds, em Nova York, era todo fumaça e barulho, suor e couro, e os olhos do “Demolidor Marrom” fulminavam-me por cima das luvas erguidas.
Era a minha grande oportunidade de arrancar o título de campeão mundial dos pesos-pesados de Joe Louis, e ao longo de 12 rounds eu conseguira esquivar-me dos seus punhos. Agora, no meu canto, antes do 13º round, meu treinador gritava: “Não junta! Continua se afastando dele!”
Mas eu estava cheio de confiança. Acertei um grande gancho de esquerda no queixo de Joe no 12º round. Vi-o cambalear. “Posso nocauteá-lo”, fiquei repetindo para mim mesmo. “Posso nocauteá-lo!”
Nessa altura eu estava á frente na contagem dos pontos. Só me bastava ganhar um dos três últimos rounds; mas eu só conseguia pensar em nocauter Joe Louis.
Luta pela pátria. Faltando menos de um minuto para terminar o 13º round, Joe, com 1,88m e 90kg, acertou-me dois terríveis jabs de esquerda e enfiou uma direita no meu plexo solar, mais dois jabs, uma direita, um uppercut de direita, um gancho de esquerda, e eu fui à lona. Com dois segundos para terminar o round, o juiz interrompeu a luta.
Joe Louis continuava campeão. Para mim ele sempre será o campeão, no ringue e fora dele, na vida.
Joe era um homem dotado de dignidade natural e espírito generoso. Um mês depois do ataque a Pearl Harbor, ele defendeu o título de campeão dos pesos-pesados e doou toda a sua bolsa de 65.200 dólares à Sociedade Beneficiente Naval. Passados dois meses, voltou a defender o título e doou a bolsa de 54.882 dólares à Sociedade Beneficiente do Exército.
“Como se sente lutando por nada?” perguntou um repórter.
“Não estou lutando por nada”, respondeu Joe. “Estou lutando pela minha pátria.”
Não se passou muito tempo, e Joe e eu estávamos no exército, exibindo-nos para os soldados. Embora em tournêes separadas, encontramo-nos em Londres. Na ocasião, falou-se de uma revanche entre nós para quando a Segunda Guerra Mundial terminasse, mas Joe conhecia meu temperamento irlandês. “Se algum oficial for insolente com você, Billy, agüente firme”, me disse ele. “Você e eu temos tanto dinheiro esperando por nós que não quero que estrague as coisas.”
Posso ser um tapado, mas nem tanto. Nossa revanche em 1946 seria o maior acontecimento do boxe. O público se lembrava da minha valentia na luta de 1941.
“E se Billy continuar correndo como da outra vez?” perguntaram a Joe.
“Ele pode correr”, respondeu Joe, “mas não pode se esconder.”
Joe me liquidou no oitavo round. Nas minhas 74 lutas, ele foi o único que me conseguiu nocautear (duas vezes) mas isso ele fazia com quase todo mundo. No seu recorde de 68 vitórias contra 3, ele obteve 54 nocautes.
Alguns lutadores preocupam-se com quem será o juiz. Joe nunca deu bola para isso. “Trago meu próprio juiz”, disse ele uma vez, levantando os punhos.
Já me perguntaram como se teria saído Joe contra campeões pesos-pesados como Muhammad Ali, Joe Frazier ou Larry Homes. Ele teria nocauteado todos eles.
Ali seria fácil para Joe porque mantém as mãos muito baixas. Joe fecharia sobre Ali, fintava-o, acertava-lhe aquele jab de surpresa e aquele coice de direita, e o juiz só teria de contar. Conheço a fama de Ali de absorver bem um murro, mas eu também tinha essa fama... até que Joe me pegou. Na minha opinião, ele foi o melhor.
Joseph Louis Barrow nasceu numa fazenda perto de Lafayette, Alabama, a 13 de maio de 1914; tinha mais seis irmãos. Nunca conheceu o pai, que sofreu um colapso nervoso devido ao excesso de trabalho e morreu numa instituição. Em 1926, Joe tinha 12 anos, quando sua mãe e o padrasto, também com oito filhos, levaram a família para Detroit, Michigan. Nem as aulas de violino que a mãe conseguira nem a escola interessaram a Joe; ele abandonou-a no fim do sexto ano primário. No dia em que entrou no ginásio de Brewster Center, onde treinavam os melhores amadores do boxe de Detroit, ficou sabendo que queria ser pugilista.
Na sua primeira luta como amador, com 18 anos, ele já era simplesmente Joe Louis, omitindo o Barrow porque não queria que a família soubesse. Nos dois primeiros rounds, Joe foi à lona sete vezes e perdeu a luta. Ao voltar para casa, estava tão machucado que foi obrigado a contar aos pais.
Em 1934 Joe era campeão dos pesos-pesados da Liga Atlética Amadora e também do título Luvas de Ouro. No dia 4 de julho desse ano ele se tornou profissional, com um nocaute logo no primeiro round. No começo de 1926 seu recorde já era de 26 a 0; entre seus 22 nocautes estavam vitórias sobre Mas Baer e Primo Carnera, ambos ex-campeões. A 19 de junho de 1936, lutou contra o alemão Max Schmeling, outro ex-campeão.
“Estou farejando uma coisa”, afirmou Schmeling antes da luta, querendo com isso dizer que via uma brecha através da qual poderia desfechar sua poderosa direita. “Vou ganhar”!. Poucos acreditavam nele, mas Schemeling de fato localizou o ponto fraco de Joe. Nocauteou-o no 12º round. Mais tarde, no vestiário, os segundos aplicaram gelo na face esquerda de Joe, com um inchaço três vezes maior do que o rosto no seu normal. Joe não conseguia lembrar-se com muito pormenor da luta. Perguntou ao seu treinador, John Roxborough, se tinha acertado Schemeling com um golpe baixo.
“Sim, duas vezes”, respondeu ele.
“Roxy, diga a ele que sinto muito. Não quero jogo sujo com ninguém. Diga que eu não sabia o que estava fazendo.”
Era assim Joe Louis. Perdera pela primeira vez na sua careira profissional e queria antes de mais nada pedir desculpas por um erro.
Vingança. Apesar da derrota, Joe era o melhor jovem peso-pesado conhecido,desafiante natural de Jim Bradkdock, que conservava o título. A 22 de junho de 1937, ele nocauteou Bradkdock no oitavo round; mas, antes que pudesse sentir-se um verdadeiro campeão, ele tinha de vingar sua única derrota.
Na noite do dia anterior à revanche de 22 de junho de 1938, no Yankee Stadium, um colunista esportivo disse a Joe que apostaria num nocaute em seis rounds. Joe meneou a cabeça e mostrou um só dedo. “Acaba no primeiro”, disse ele.
Quem poderia esquecer aquela luta? Venho assistindo a este filme repetidas vezes há mais de 40 anos, e a fúria de Joe ainda me assusta. Com um minuto de luta, Schemeling deu o primeiro soco – o último, Joel lhe encaixou um gancho de esquerda, que o jogou contra as cordas, e massacrou-o com uma saraivada de murros. Aturdido, Schmeling levou uma esquerda e uma direita que o atiraram na lona. Levantou-se, Joe voltou a derruba-lo. Tornou a levantar-se. Joe jogou-o na lona pela terceira vez; mas agora com a cara no chão. O juiz deu a luta por encerrada. Schemeling aguentara dois minutos e quatro segundos.
Joe não pulou em volta do ringue nem atirou os braços para cima, como fazem hoje alguns lutadores de boxe. Apenas caminhou para um canto neutro, com as luvas baixas ao lado do corpo. O negócio de Joe era boxe de verdade, não palhaçada.
Ele reinou como campeão até anunciar seu afastamento, no dia 1º de março de 1949, um lapso de quase 12 anos, o mais longo de qualquer campeão peso-pesado em um século. Não sofrera uma só derrota em 26 disputas pelo título, um outro recorde.
Como muitos outros lutadores, Joe Louis tentou um retorno. Em 1950, precisava de dinheiro para ajustar as contas com o Imposto de Renda, daí que desafiou Ezzard Charles, seu sucessor como campeão. Perdeu na decisão por pontos (em 15 rounds), mas continuou lutando. Em 1951, estava com 37 anos, quando Rocky Marciano o jogou para fora das cordas no Madison Square Garden, de Nova York. No vestiário de Joe, um médico da Comissão Atlética Estadual de Nova York lhe comunicou que não ia poder lutar durante três meses.
“Doutor”, disse ele, “o senhor se incomodaria se eu não lutasse nunca mais?”
Joe exibiu-se algumas vezes depois disso, mas nunca numa luta séria... a não ser com o Imposto de Renda. Quando ele estava no exército, seus problemas com o imposto (decorrentes de mau assessoramento contábil, de um divórcio e de más transações financeiras) tiveram início. Acabou devendo mais de um milhão de dólares, montante que o fisco finalmente deixou de cobrar porque não havia condições de Joe pagar.
Por causa do seu esbanjamento e da sua generosidade, ele estava sempre precisando de dinheiro, mas não tinha medo de trabalhar. Logo depois de ter parado de lutar, fez tournées como juiz de luta-livre, apesar de alguns amigos considerarem isso um rebaixamento para alguém da sua estatura. Como sempre, Joe via a situação sob a perspectiva justa. “É melhor do que roubar”, dizia.
Segundo sua própria maneira, ele foi um ativista dos direitos civis antes mesmo de isso se tornar moda. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele e Sugar Ray Bobinson fizeram uma tournée para exibições de boxe em bases do exército no sul dos Estados Unidos. Enquanto esperavam o ônibus em Camp Sibert, Alabama, foram abordados por um soldado da polícia militar.
“Vocês, soldados, tem de ficar lá no fundo da estação”, disse o P. M.
Joe e Sugar não se mexeram. Ele os prendeu e no quartel da Polícia Militar um oficial repreendeu Joe.
“Desculpe”, disse este, “mas estou na guerra como qualquer outro. Espero ser tratado como tal.”
Depois que o incidente chegou às primeiras páginas dos jornais, o exército proibiu a segregação nos ônibus das suas bases.
Joe defendia a dignidade e o orgulho dos negros, mas não confundia estes sentimentos com egocentrismo. Era a pessoa mais humilde que conheci. Certa vez, quando assinava autógrafos, uma mulher se aproximou dele. “Don Newcombe”, disse ela referindo-se ao lançador do time de beisebol Brooklyn Dodgers, “quer me dar o seu autógrafo?”
Joe voltou-se para um amigo e sussurrou: “Como é que se escreve Newcombe?”, e escreveu: “Felicidades, Don Newcombe.”
Joel conheceu dias tristes nos seus últimos anos – problemas com cocaína, má saúde, inclusive uma cirurgia cardíaca, permanente dificuldade financeira. Morreu no dia 12 de abril de 1981. cerca de 2.500 pessoas estiveram presentes ao seu funeral no Pavilhão de Esportes do Ceaser’s Palace, em Las Vegas, Nevada, onde muitas lutas recentes tem sido disputadas. Sua viúva escolheu o local. “Nada era secreto a respeito de Joe”, disse sua terceira mulher, Martha, com que ele casara em 1959. “Joe fazia amigos em toda parte, e eles tinham o direito de vê-lo quando queriam.”
Como veterano das Forças Armadas dos Estados Unidos, Louis tinha direito a um sepultamento em qualquer cemitério nacional, com exceção do de Arlington. O presidente Reagan, contudo, ordenou que ele descansasse lá. Ao me afastar da sepultura de Joe, seus problemas de saúde e dinheiro pareciam esquecidos, quando me lembrei do furor das multidões diante da luz branca daquele quadrado de lona sobre o qual ele era inigualável.
Quanto a mim, acho que se poderia dizer que sou parte da história do boxe. Joe Louis? Ele era a história.
Orgulho-me de ter lutado contra ele, mas ainda de haver sido seu amigo.

Nenhum comentário: