segunda-feira, janeiro 15

Três dias para a liberdade

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 1981
Autor : Eduard S. Kuznetsov

No dia 27 de abril de 1979, o governo soviético libertou cinco importantes dissidentes e mandou-os de avião para os Estados Unidos, trocando-os por dois espiões soviéticos condenados. Um dos cinco russos era o escritor Eduard S. Kuznetsov. (Os outros eram Aleksandr Ginzburg, Valentyn Moroz, Mark Dymshitz e o padre Georgi Vins.)
No momento de sua libertação, Kuznetsov, que tem 40 anos, passara 16 em campos de trabalho forçado e prisões soviéticas. Foi preso pela primeira vez em 1961, pelas suas atividades em favor dos direitos humanos. Em 1970, depois que ele, sua mulher e nove outros russo imaginaram um plano para fugir de avião para a Escandinávia ( plano que nunca se realizou), Kuznetsov foi condenado a pena de morte. Com o clamor internacional, sua sentença foi comutada para 15 anos num campo de trabalho longe de Moscou. O artigo a seguir é um relato dos três dias que precederam sua libertação.

Dia 25 de abril de 1979
“Nem um dia sem difamações!” Este é o lema tático da nossa cela na prisão. Cada palavra que escrevemos é avaliada em termos do temor do Partido Comunista pelos danos possíveis que possa causar na densa nuvem de mentiras que encobre a União Soviética. Censores cheios de zelo atiram-se como tigres sobre cada pedacinho de papel. Seu temor maior não são as fugas mas certas “informações difamatórias” que transpiram do campo – o que acontece apesar dos muros e cadeados.
Nesta manhã estamos dando os toques finais no texto definitivo de um apelo intitulado “Estatuto dos Crentes Religiosos em Campos e Prisões”. Meu companheiro de cela cobre a vigia com as costas, ouvindo com atenção o que se passa nos corredores cheios de barulhos, enquanto eu tapo os ouvidos com cera e escrevo às escondidas.
Ele toca meu ombro. “Vamos parar um pouco”, diz nervoso. “Não estou gostando do que estou ouvindo.” De repente, tudo silencia.
Temos tempo apenas para esconder os papéis, antes que a porta da cela se abra. Dois carcereiros entram, seguidos dos agentes da KGB Romanov e Turin. Romanov franze a testa olhando para mim. “Junte suas coisas, e depressa.”
“Por que?” É uma pergunta inútil, mas ainda assim não consigo evita-la. Claro, eles continuam calados. Há seis anos, quando meu primeiro livro, Diários de Prisão, foi publicado no Ocidente, pude escapar por pouco de uma sentença de prisão adicional; agora, com meu segundo livro pronto para sair, eu já estava mesmo preparado para um novo julgamento.
Não posso, porém, excluir uma possibilidade mais feliz, pois as últimas cartas que recebi de fora continham algumas insinuações penosamente otimistas: “Agüente só um pouco mais.”
Os agentes levam-me sem me darem tempo de abraçar meu companheiro e me despedir convenientemente. Para onde vou? Fico pensando. Novo julgamento? A liberdade?
Quando chego à porta aberta do camburão que me espera, faço outra tentativa sem esperança para descobrir o que está acontecendo.
“É melhor você ficar quieto”, sugere Turin num quase sussurro. “Conhece o ditado: quem for surdo, mudo e cego viverá um século. Lembre-se de que também no Ocidente se pode morrer inesperadamente...”
O Ocidente! Que significa isso?
Sentado na traseira do camburão, vejo dois colegas dissidentes, Aleksandr Ginzburg e Valentyn Moroz, sendo levados para outra caminhonete. Não compreendo. Por que eles? Ginzburg só está há pouco tempo no nosso campo de trabalho e não teve tempo para enfurecer os agentes; e Moroz tem-se comportado com discrição.
Na estação de trens somos tirados um a um das viaturas e levados para compartimentos separados do “Stolypin”, que é simplesmente um vagão especial usado para transportar presos.
Depois de o trem se pôr a caminho, caio num sono profundo, sonhando docemente que amanhã estarei livre.

Dia 26 de abril
Já é de manhã. O guarda baixa a janela gradeada e, através de uma fenda estreita, posso ver meus conhecidos subúrbios de Moscou. Meu coração começa a congelar. Na estação de trens, Ginzburg, Moroz e eu (cada um escoltado e mantido separado pela polícia de segurança) somos cercados por um círculo de guardas com espingardas automáticas e caminhonetes. Finalmente, vejo uma velha amiga: a prisão Lefortovo, da KGB.
Espero ser confinado sozinho mas, em vez disso, junta-se a mim na minha cela um indivíduo magro, de cerca de 30 anos. Fico sabendo que é um contrabandista. O mais provável é que seja um informante. Não tenho nenhum motivo especial para brigar com ele, mas ele é o tipo de sujeito que vai se aproveitar se não for posto imediatamente no seu lugar.
“Vê-se que você é um cara duro”, digo eu. “Problema seu. Há três dias que não durmo e estou morrendo de sono. De modo que, por mais forte que você seja, tente não fazer barulho nenhum. Posso não ser um preso comum, mas também posso ficar nervoso.” Olho-o com frieza. Ele compreende.
Assim que acabo de me despir, uma cabeça aparece no buraco da comida. “Durante o dia é proibido dormir.” Estou tão cansado que não ligo a mínima; entro debaixo das cobertas. Afinal, que é que eles podem fazer? Se me trouxeram aqui para cumprir um novo período de prisão, ou para me darem a pena de morte, então encontrarão sempre pretextos para punições. Se vão libertar-me, terão medo de me bater, para não deixar marcas.
Fisicamente este meu companheiro de cela me lembra Yura o Canibal: o mesmo tipo de gorila, embora sua personalidade seja mais branda.
O “Canibal” ganhou seu apelido jogando cartas por “carne e sangue”. Dificilmente alguém poderia encontrar uma parte lisa que fosse no seu corpo, coberto de cicatrizes de formatos estranhos. Nos campos de trabalho forçado, os presos que enlouquecem começam a jogar por “carne e sangue”, cortando pedaços de carne das costas, barriga, glúteos, coxas ou barriga das pernas uns dos outros. Para o sangue, há um vidro graduado, feito mesmo na prisão, em cada cela.
Certa vez, o destino maldosamente colocou Yura e eu juntos numa cela da prisão Vladimir. Yura adorava aterrorizar os presos políticos, pelo que recebia dos agentes do campo toda sorte de recompensas.
Pouco depois de ele e eu nos tornarmos companheiros de cela, ele transmitiu uma mensagem para a cela vizinha: “Arranjem um canivete.” Fingi continuar lendo, mas na verdade estava repetindo para mim mesmo: Ele tem mais medo do que eu. Ele tem mais medo do que eu.
“Bom”, grunhiu finalmente o Canibal, “você, sua serpente, comece a tremer!” E chutava as paredes para me apavorar. Cada vez que ele ficava de costas contra o postigo, deixava o canivete escorregar para fora da manga; segurava-o na palma da mão; atirava-o para o alto e escondia-o de novo.
Minha paciência começou a se esgotar. Levantei-me. “Já ouvi você falar demais. Agora é você quem vi me ouvir. Quando eu parar de falar, conte até 10 e, então, ou me apanha com seu canivete ou eu tiro isso da sua mão e sufoco você como um rato.”
Yura cuspiu. “Vai esperando. Vou é matar você! Venha!” Mas assim que parti para cima dele, Yura soltou um grito e caiu com um ataque histérico, batendo no chão com os pés. Nesse momento, um grupo de carcereiros apareceu na porta e sumiu com ele.
Será possível, pergunto a mim mesmo agora, que as coisas estejam chegando ao fim e que eu não vá ver mais esses palhaços, nem presos, nem a KGB?

Dia 27 de abril
De manhã cedo, um guarda me escolta da minha cela até um gabinete onde estão sentadas umas três pessoas, inclusive um capitão da KGB e dois velhos com as bocas cheias de dentes de ouro.
“Por decreto do Presidium do Soviete Supremo da U. R. S. S.”, diz um deles, “o culpado de crimes contra o Estado, Eduard Samuilovich Kuznetsov, é por este ato privado de sua cidadania soviética e deverá deixar a U. R. S. S. dentro de duas horas. Alguma pergunta?”
“Não posso partir mais depressa?”
Os três me lançam olhares penetrantes e eu, por meu lado, para não atiçar os ânimos de todos, encaro o que leu o decreto. “Vá”, diz ele finalmente entre dentes.
Agora estou fechado à chave, não numa cela, mas numa saleta. Em cerca de 15 minutos, o capitão da KGB me traz algumas roupas comuns. O terno é tcheco; os sapatos, poloneses; a camisa, búlgara. Só a gravata e o cinto são feitos na U. R. S. S. Serão eles para que eu me enforque?
“E os meus blocos manuscritos?” pergunto.
“Você sabe que nem uma só folha de papel pode sair daqui.”
“Mas eles foram investigados uma centena de vezes! Representam nove anos de trabalho – resumos, idéias sobre vários assuntos, observações, temas, folclore.” Então começo vagarosamente a me despir. O capitão faz uma careta. “Que é que você está fazendo?”
“Não vou sair daqui sem os meus manuscritos. Você terá de me arrastar para fora. Não são apenas algumas folhas, são cerca de quatro mil páginas!”
“O camarada que as inspecionou vai traze-las”, diz ele. Fico feliz. O carcereiro traz meus blocos de notas, empacota-os numa caixa e a amarra, diante da minha insistência. Dizem-me que ela estará na minha bagagem.
Só mais tarde, no avião, quando é inútil zangar-me, é que eles me dizem, sem sombra de constrangimento, que houve um pequeno erro e que realmente não podiam ter-me dado meus blocos de notas.
Nosso avião é um Ilyushin comum. Somos cinco (Ginzburg, Moroz, Mark Dymshitz, o padre Georgi Vins eu) e entramos antes dos outros. Mantêm-nos separados, proibidos de falar uns com os outros. Cada um de nós está acompanhado por dois agentes da KGB. No momento em que nos sentamos, dois representantes da embaixada americana aparecem e explicam que, consoante um acordo especial celebrado entre Moscou e Washington, vamos ser levados para Nova York.
Em algum ponto sobre a Escandinávia tento falar com meus guardas. “Vocês não tem vergonha de fazer parte da KG? É como juntarem-se a um grupo de canibais.”
Fazemos uma parada num aeroporto no Canadá. Ginzburg e eu trocamos olhares. Parece real. Como poderiam eles falsificar um aeroporto? Desde o princípio, eu não acreditava que houvesse nenhum truque, embora o instinto continue a dizer-me o contrário, opondo-se ao que parece óbvio.
No aeroporto de Nova York há uma espécie de agitação perto do nosso avião. Todos os outros passageiros já desembarcaram há muito, e nossos guardas estão evidentemente nervosos. Há uma sensação de perigo. Que é que está acontecendo? Se algo tivesse saído errado no seu acordo supersecreto, e o Ilyushin desse meia volta e retornasse, mais uma vez seria Moscou, as paredes de 2m de largura da prisão Lefortovo, o campo de trabalho.
Neste momento, alguns carros se dirigem para a frente do nosso avião e dois indivíduos de tipo eslavo, sérios, sobem a rampa e entram no aparelho. Tudo começa a se mover, como nos velhos filmes do cinema mudo. Afinal, acabamos no solo americano, e pessoas estão apertando nossas mãos e abraçando-nos.
No carro em que deixamos o aeroporto, alguém do Departamento de Estado norte-americano nos explica que fomos trocados por dois espiões soviéticos.
Em pouco tempo estamos no 37º andar de um hotel que é um arranha-céu. “Este é o seu quarto”, dizem-me. Entramos os cinco correndo. Não é apenas um quarto, mas um salão com duas imensas camas, cada uma da largura de uma enxerga na qual poderiam dormir 10 presos. “O anúncio oficial da libertação de vocês será feito amanhã”, dizem-nos. “Por ora, ninguém sabe; podem aproveitar para descansar.”
Sem nos despirmos, caímos todos nas camas. Nossos hospedeiros parecem perplexos. Num minuto estamos todos rolando de rir: acostumados aos padrões soviéticos, pensamos que aquele quarto era para nós cinco juntos. Quem poderia pensar que cada um de nós receberia um imenso quarto daqueles separado?
Estamos no meio da noite. Da minha janela, posso ver as luzes brilhantes de Nova York. Eu nunca rejeitara a idéia de que tal milagre acontecesse, mas ao mesmo tempo não me considerava suficientemente importante para ter direito às benções especiais do céu. Agora, porém, sinto-me tentado, se não a gritar, ao menos a murmurar aquela palavra pretensiosa e reconfortante: milagre.
Saindo da escuridão, fui atirado às luzes; do mau cheiro, para dentro de um jardim; da morte, para a vida.

Kuznetsov e sua mulher, que esteve quase cinco anos num campo de trabalho soviético, agora vivem em Israel.

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