sexta-feira, janeiro 12

A lição das Flores de Fogo

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1971
Autor : Jeanne Hill ( condensado de Christian Herald )

Dizem que nunca se deve olhar para trás. Mas era um dia para isso. Flocos de nuvens roçavam o céu. Codornas pintalgadas escondiam-se nas moitas e o canto das cigarras vibrava pelos montes de nogueiras e vales de carvalhos. Todo mundo conhece um dia assim... um dia para se retornar à infância, para ver se aquela vida passada era em verdade a que você pensava!
Longe da universidade onde meu marido ensina e do subúrbio onde moramos, procurei um lugar onde o verão é completo. No fim de estradas de terra, cercadas de arbustos floridos, encontrei o “desvio” para o vale da minha infância. Procurei aquele vulto apanhando framboesas – suas pernas esguias e bronzeadas dando largas passadas sob saias brancas e engomadas. Mas minha mãe não vinha ali havia muitos anos. E a esbelteza e as passadas igualmente eram coisas que não mais existiam.
Nem pensei nas rosas então, nem no estranho sentimento de respeito que elas sempre despertam em mim. Mas pensei, sim, no Sr. Riley, o homem que cultivava aquele determinado tipo de rosas, quando passei pela fazenda no morro, que fora dele. E apressei-me a seguir, pois o vale chamava alguém bem no âmago do meu ser – uma menina de 10 anos com olhos grandes demais para o rosto e os cabelos curtos e cacheados.
Foi ela, mais do que eu, que subiu o cimo do morro para ver uma chaminé que saía de entre as árvores e depois se surpreendeu diante das fundações nuas da casa. Sem se importar com quem fosse o dono, um matagal de carvalho preto se apossara da terra, como era quando acampamos pela primeira vez num barraco enquanto meu pai construía a casa.
Meu pai tinha sido um produto do interior, sem um bom mercado na cidade. Mas ele tardara a compreender isso e a possibilidade de voltar à fazenda tardara ainda mais. Quando, finalmente, um mês de abril nós nos mudamos das favelas da cidade, meu pai estava grisalho e velho. Acometido de uma doença crônica de pulmão, ele refugiou-se na natureza e no sonho de uma fazenda num vale.
Mas minha mãe já vira outros sonhos dele se desfazerem. Uns 20 anos mais moça do que papai, sua mocidade e vigor sempre contrastaram com a idade e fraqueza dele. Como olhos compassivos, ela o observava trabalhando e via os períodos de descanso tornarem-se cada vez mais numerosos. Viu como ele ficava pálido e magro junto dos carvalhos novos.
Quando meu pai afinal foi para o sanatório, ela começou a aprender a respeito da terra. Com um lenço branco engomado prendendo-lh os cabelos longos e negros, ela arou o campo, transformando-o num jardim e construiu um galinheiro e um celeiro. Eu a ajudava a ordenhar as vacas e a dar comida às galinhas, a capinar e plantar, enquanto Jô, minha irmã de 14 anos, tomava conta da casa e cozinhava.
Num crepúsculo no verão, dois vultos apareceram no topo do morro. “Devem ser o Sr. Riley e a filha dele!” disse Jô para mamãe, entusiasmada. Estávamos todas ansiosas para conhecer nosso único vizinho próximo, que tinha passado o inverno inteiro trabalhando em Fort Smith. A luz suave da lâmpada iluminava os seus cabelos vermelhos, olhos cinza e o rosto corado. Fiquei surpreendida quando vi que os mesmos traços angulosos davam beleza ao pai mas não à filha, Bell, de 16 anos. Mas foi o buquê que o Sr. Riley deu a mamãe que despertou minha curiosidade.
“Que flor é essa?” perguntei, olhando para as flores estranhas e lindas.
“É uma rosa que eu cruzei.” A voz do Sr. Riley era profunda e agradável. “Chamo esta espécie de Flores de Fogo.”
O nome era adequado para descrever frágeis pétalas aveludadas de fogo que se enroscavam em volta de centros amarelos. Enquanto mamãe arrumava o buquê cuidadosamente, o Sr. Riley olhava para o rosto dela, sorridente, os olhos escuros, os brinquinhos de ouro, e via uma semelhança com as rosas.
Quando acabamos de comer bolo saído do forno com coalhada fresca, mamãe já tinha aprendido como se tirava duas colheitas por ano. Também tinha sabido de uma coisa que a comoveu. A mulher do Sr. Riley morrera quando Bell tinha três anos, e ele achava que ela precisava de uma mãe agora, mais do que nunca. Parece que Bell sabia dirigir trator e arava o campo como homem, mas que como mulher era desajeitada, encabulada, e não tinha jeito para cozinhar nem costurar. Mamãe, que era mais que compreensiva, ofereceu-se para ajudar a pequena a ser mais feminina. Sugeriu que Bell assistisse às aulas de catecismo que ela nos dava aos domingos na cozinha.
Essas aulas eram pouco mais do que um disfarce para as lições de trabalhos caseiros que mamãe inventava. Todos os domingos Bell vinha saltando por cima do morro em alguma roupa antiquada, tirada do baú da mãe dela. E partia andando mais graciosamente e com o vestido sutilmente transformado por um alinhavo aqui e uma prega ali.
Depois da aula, mamãe punha uma galinha para fritar e ensinava Bell a cozinhar. Quando o Sr. Riley chegava, mamãe anunciava, e nós todas sorríamos: “Bell fritou a galinha sozinha.” E se o Sr. Riley estava feliz com os progressos de sua filha, estava hipnotizado pela mestra.
As habilidades de mamãe, especialmente sua falta de medo, também me magnetizavam. Ela afugentava as raposas e os gaviões com uma enxada e despedaçava as cobras venenosas que chegavam muito perto da cisterna. Eu achava mesmo que ela não tinha medo de nada até aquele dia em fins de agosto.
Um céu amarelo sujo tinha ameaçado chuva o dia inteiro e um silêncio vazio pairava sobre o vale. Mamãe foi para o campo e colheu os últimos pepinos e tomates. Ao aproximar-se da casa, ouviu um barulho assustador numa pilha de lenha no alpendre. Olhando para dentro da pilha, ela avistou uma criatura aterradora – um imenso monstro negro com cabeça verde e enormes presas também verdes.
As mãos de mamãe tremiam quando ela subiu os degraus, tirou o avental e pegou a enxada. “Jô”, disse ela tentando manter a voz firme, “vá chamar o Sr. Riley. Jeanne, fique dentro de casa. Vou lá fora vigiar a pilha de lenha até o Sr. Riley chegar.”
Pareceu uma eternidade até que o Sr. Riley chegasse, afastasse mamãe para um lado e apontasse a espingarda para a pilha de lenha. Então, de repente, ele baixou a arma e curvou-se para olhar melhor.
“É esse o seu monstro’ perguntou ele à mamãe com brandura, sorrindo e apontando para a lenha. “Venha cá”, disse ele, “e olhe bem para uma cobra, cujo apetite é maior do que a boca. Aquilo é um imenso sapo verde, metade dentro e metade fora da boca da cobra. As presas são as pernas do sapo.”
Foi aí que mamãe não agüentou mais. Lágrimas rolaram-lhe pelas faces e ela caiu para a frente. Mas o Sr. Riley foi rápido e amparou a figurinha que desmaiava. Naquele instante percebi que as coisas nunca mais seriam como antes.
Quando o trovão penetrou o silêncio vazio, olhei para mamãe e de repente adivinhei o seu segredo. Ela sentia um medo horrível e sempre sentira – de raposas, de gaviões e de cobras. Mas assim mesmo elas os enfrentava! Eu não me espantaria mais com a temeridade dela, mas continuaria sempre a maravilhar-me com a sua imensa coragem. Também percebi outra coisa...a ternura com que o Sr. Riley segurava mamãe naquele momento, como seus olhos ardiam ao olhar para ela. Nos braços fortes do Sr. Riley mamãe logo parou de chorar. Delicadamente ela se afastou e conseguiu acalmar-se fazendo uma limonada. Mas o Sr. Riley perdera a sua serenidade para sempre.
Ele não podia mais ficar na mesma sala com mamãe. Não podia mais olhar para ela à luz da lâmpada sem quere-la para si. Mas sabia que era uma mulher que pesaria escrupulosamente o desejo e a decência, e sabia qual ela escolheria. Por isso, manteve-se afastado.
Então, uma tarde o Sr. Riley “levou Bell para brincar lá fora” com Jô e comigo, enquanto ele entrava na casa para conversar com mamãe. Nós três ficamos sentadas junto da cisterna, fria debaixo de nossos pés descalços, mas eu estava com o pensamento no casal lá dentro de casa. Eles estavam oscilando à beira de alguma coisa, tal como as pedrinhas que eu tinha juntado na borda da cisterna. Empurrei uma pedrinha e todas caíram dentro da água. Olhei para a casa, assustada. Eu gostava muito de minha mãe e também do Sr. Riley. Mas, se eles caíssem, alguma coisa seria perdida em meu amor...alguma coisa! Que seria essa coisa?
Fiquei pensando naquilo quando o Sr. Riley veio para a porta com mamãe. Ele tinha um ar desapontado, como se estivesse discutindo um ponto que já tivesse perdido. “Mas quem viria a saber em Fort Smith?”, perguntou ele.
“Elas saberiam!”, disse mamãe, olhando em nossa direção. “E nós saberíamos! Oh, Riley! Você não sabe que se eu fosse o tipo de mulher que se divorciaria de um homem que está precisando tanto de mim, não seria a mulher com que você quereria casar-se?”
Ele olhou para ela e viu a verdade daquilo, pois o senso do direito de mamãe era parte do que ele amava. “Você tem razão”, disse ele com voz rouca, como se as palavras lhe queimassem a garganta. Depois ele chamou Bell, disse “adeus” e subiu o morro devagar para a sua casa.
Quando tornei a ver os Riley – e foi também a última vez – tinham vendido a fazenda e estavam de mudança para Fort Smith. O Sr. Riley carregava um grande embrulho de papel de jornal.
“Eu trouxe o pé de “flores de fogo”, disse ele com simplicidade. “Onde quer que o plante?”
“Aqui junto dos degraus”, respondeu mamãe.
Fui apanhar a pá e fiquei ali vendo-o plantar a roseira grande.
Agora, que pouco resta do meu vale a não ser o mato, fiquei olhando através do campo para as fundações da casa. E lá estavam aquelas rosas especiais! Não só crescendo junto dos degraus, mas cobrindo grande parte do quintal. Compreendi o sentimento de respeito que as rosas sempre despertam em mim. O respeito era aquilo que eu receava que fosse retirado do meu amor por mamãe e pelo Sr. Riley. Respeito; um legado esplêndido, florescia agora em meu coração, como floresciam também as Flores de Fogo no vale.

Nenhum comentário: