segunda-feira, janeiro 22

Meu escirtório, meu mundo

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 1985
Autor : Alain Rémond

Uma história de mistério e romance, cujo herói poderia ser classificado de Homo Burocraticus.

Era um salão enorme, parecido com uma sala de aulas, só que mais assustador. Oitenta pessoas trabalhavam ali num silêncio opressivo. Eu era arquivista, e arquivava. Ao chegar pela manhã, às 8:00, encontrava sempre uma caixa grande de fichas à minha espera. Tudo aquilo tinha de estar arquivado até as 17:00.
Às vezes havia um erro numa ficha; aí eu tinha o privilégio de pegar numa caneta e fazer uma correção no lugar adequado. Uma COR., como a chamávamos. Daí a ficha com sua COR. Partia para longe, em direção ao misterioso e onipotente Computador.
A ficha corrigida reaparecia no dia seguinte. Era uma ocasião altamente excitante, porque eu tinha então de revisar a correção, fazer uma VER. Da COR. De repente tínhamos a sensação de que realmente existíamos! Por causa da nossa VER. e da COR., o pior havia sido evitado, sabe Deus como. Foi assim que comecei a conhecer, há 15 anos, o Mundo do Escritório.
Antigamente havia fazendeiros, operários, comerciantes – e funcionários, que constituíam uma minoria e eram desprezados. Hoje existem, só na França, mais de 2.000 profissões desempenhadas dentro de escritórios. E que escritórios! No princípio do século, eram uma espécie de armários entupidos de mobília pesadona, células onde se escondiam hipocondríacos de cara de fuinha. Tudo mudou na década de 50. As indústrias de serviços entraram de repente e em força, e trabalhar numa delas passou a ser considerado prestigiante.
Em 1958, na Alemanha Ocidental, os irmãos Schenelle inventaram o “escritório paisagístico”. O espaço de trabalho foi aberto, dividido em alvéolos e módulos, com vasos de plantas e mobiliário moderno. Essa tendência aumentou com o desenvolvimento da construção de arranha-céus nas décadas de 60 e 70. Cada andar tornou-se uma espécie de planície lisa, que se deveria tornar o mais agradável possível. As palavras de ordem passaram a ser, além de modernidade, sociabilidade e qualidade de vida. Até mesmo ecologia – por estranho que possa parecer num 35º andar.
Estudar Homo burocraticus é uma questão de etnologia básica. Um escritório é uma micro sociedade governada por códigos que dão origem a incontáveis fofocas, neuroses, paixões. Grande parte depende daquilo que os sociólogos chamam de capacidade de construir o ninho, de criar um espaço vital personalizado e deixar nele marca pessoal. Pode ser com um buquê de flores, um pôster ou alguns carões postais da Bretanha ou do Taiti; mas também é muito importante o clima, a atmosfera criada pelos ocupantes, com seus rituais de grupo.
“Num escritório de designers que conheço”, conta a socióloga Anne Dellé, “14 pessoas ocupam um espaço de 150m². Num canto colocaram uma velha geladeira e um bar num armário. Por qualquer pretexto, eles estendem uma toalha de mesa, arranjam umas garrafas, uns copos e dão uma festa.”
Esse Mundo é sustentado por dois pilares: o boato e a fofoca. A menor ação ou reação é causa de interpretações, comentários, deduções. Nada é inocente. Os locais de encontro prediletos são em volta da máquina de café, nos banheiros e, sobretudo, na cantina. Nesses lugares as manobras são planejadas, os complôs, combinados: Quem vai almoçar com quem? Por que?
Praticamente tudo gira em torno da idéia de poder. Se alguém tem nem que seja um bocadinho de poder, deve fazer o máximo de esforço para não perde-lo. É devido a isso que os escritórios são bastiões do conservantismo. A menor tentativa de modificar as coisas pode conduzir ao desastre.
Na maioria deles – escritórios das grandes empresas, repartições públicas, bancos, Segurança Social – o problema pior é que as pessoas na realidade não tem a menor idéia do que estão fazendo ali. Não produzem nada. Copiam, arquivam, verificam, cobram. A máquina anda automaticamente. A própria noção da responsabilidade está completamente dispersa, pelo menos ao nível dos subchefes – pois existem os grandes chefes, gente que sabe das coisas, que fica acima dos tumultos e que pode solucionar os problemas.
O chefão também tem seu escritório, reconhecível por um certo número de sinais: é grande, das paredes pendem pinturas ou gravuras (nunca cartões postais) e a escrivaninha vive vazia, limpa, impecável. O chefão também precisa criar o seu ninho, deixar sua marca pessoal.
Alguns, inteiramente identificados com suas firmas, exibem em seu espaço as últimas maquetes. Outros enchem as prateleiras apenas com exemplares dos poucos livros que escreveram.
Existe a síndrome da porta acolchoada. Você sabe quando se encontra no andar dos executivos; as portas são recobertas de acolchoado “presidencial”, “vice-presidencial” ou “diretorial”. Rebentam crises quando os executivos são despedidos ou transferidos; isso significa que vão perder sua porta acolchoada. Fazem a mudança durante o fim de semana, quando não há ninguém por perto.
As secretárias dos patrões, circuitos inevitáveis para o centro do poder, estão por dentro de todos os segredos. São elas que organizam os complexos relacionamentos do patrão com sua mulher e a amante – porque o patrão, naturalmente, tem de confiar na sua secretária para que ela o ajude a desenvencilhar-se das confusões em que ele se mete.
Na verdade, é uma perfeita loucura a maneira como a vida pessoal de todo mundo fica misturada com a vida no escritório. As pessoas falam da família, das crianças, dos cachorros, das doenças, da decoração de suas casas e da maneira como levam a vida. Um escritório é um segundo lar.
Mexer em papeis leva no máximo cinco horas por dia. As pessoas se aborrecem o resto do tempo, e então ficam fofocando, bebendo café, passeando de um lado para o outro. Mesmo assim vão ficando, súditos leais do Mundo do Escritório. E por que? Para evitar o risco, o desconhecido, as iniciativas. No escritório, elas sentem-se protegidas e mimadas.
Parece que em breve as coisas vão mudar. Com os computadores e as tecnologias de vídeo, chegou a era daquilo que Alvin Toffler chama de “a cabana eletrônica”. Hoje em dia as telas e as consoles, os gadgets e as novas técnicas tornaram possível arquivar, verificar e cobrar sem sair de casa. Não vamos mais poder dizer: “Vou ao escritório.” Já estaremos morando nele.
Podem imaginar um pesadelo maior?

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