terça-feira, janeiro 9

Olhos castanhos, olhos azuis

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1971
Autor : William Peters

Uma professora primária faz uma experiência inesquecível com seus alunos

Em qualquer dia de semana normal, Jane Elliott, mulher de 35 anos e mãe de quatro filhos, ansiava por chegar à escola onde adorava lecionar. Mas aquela sexta-feira de abril de 1968 não era um dia normal.
Na véspera o líder negro Martin Luther King havia sido assassinado. E à noite, horrorizada ante o que vira na televisão, Jane Elliott tomara uma decisão. Como professora, ela sabia que teria de debater o assassinato em sua classe do terceiro ano, mas queria fazer mais do que isso. A irracionalidade do ódio racial precisava ser explicada, compreendida e gravada indelevelmente na memória, numa lição destinada a fazer parte da vida de cada criança da turma.
Mas Jane hesitava. Desde setembro ela trabalhara muito para estabelecer um relacionamento amistoso e leal com seus 28 alunos. O que ela queria agora poderia comprometer aqueles laços criados com tanto sacrifício, talvez até ferir a sensibilidade dos alunos. Mas Jane não via outra maneira de transmitir uma lição eficaz.
Dando o passo. A lição começou mesmo antes de tocar a sineta. Um menino entrou na sala de Jane alvoroçado com a notícia.
“Mataram aquele King ontem”, gritou ele. “Por que mataram o King?”
“Falaremos disso depois”, disse Jane.
Depois dos exercícios ela puxou o assunto. Quando os alunos contaram o que tinham ouvido, Jane perguntou o que eles sabiam sobre negros. No pequenino povoado (Riceville, no Iowa, de 898 habitantes) e na zona rural escassamente povoada onde ele está situado, não há negros. Os livros escolares não falam em negros nem tem ilustrações de negros. O que as crianças dissessem seria reflexo das opiniões dos pais, parentes e amigos.
As respostas dos alunos foram logo caindo em um esquema: negros não são inteligentes como os brancos; negros não são limpos como os brancos; eles brigam muito. Isso não era dito de maneira insultuosa, era dito mais em tom de tranqüilo desdém.
Jane pediu às crianças que definissem “preconceito”, “discriminação”, “inferior”. Não era difícil, pois eles já tinham debatido esses conceitos antes. Depois ela falou de coisas que são proibidas aos negros em diversas partes do país. As crianças foram ficando penalizadas, achavam que não era justo os negros serem tratados de maneira diferente dos brancos, depois foram se cansando do assunto.
Quando notou o aparecimento dessa atitude de simpática indiferença, Jane lembrou-se da oração dos índios Sioux que tencionara ensinar às crianças naquele dia. “Oh, Grande Espírito, não me deixe julgar um homem enquanto eu não andar uma milha com seus mocassins.” Eles vão ter que andar essa milha, pensou Jane.
“Como vocês se sentiriam se fossem negros?”, perguntou ela. “Sem sofrer discriminação, é difícil, não é? Que tal se experimentassem?”
As crianças fiaram intrigadas, até que ela explicou.
“Vamos dividir a classe entre olhos azuis e olhos castanhos. Vamos fazer de conta que os olhos azuis são inferiores. E na segunda-feira os olhos castanhos é que serão inferiores. Querem experimentar?”
A proposta foi aprovada, com entusiasmo. Para alguns, era uma maneira de sair da rotina; para outros era uma brincadeira que parecia ser interessante.
Classe dividida. A classe ra composta de 17 crianças de olhos azuis, três de olhos verdes e oito de olhos castanhos. Para equilibrar os grupos, as de olhos verdes foram juntadas às de olhos castanhos.
“Hoje os olhos castanhos são superiores aos olhos azuis”, disse Jane. “São mais limpos. São mais inteligentes.”
As crianças de olhos castanhos começaram a olhar umas para as outras, maravilhadas. As de olhos azuis mostravam certo encabulamento.
“Os de olhos azuis se lembram do que aprenderam?”, perguntou Jane.
“Não!”, responderam em coro os de olhos castanhos quando começaram a perceber em que consistiria a brincadeira.
Um menino de olhos castanhos sentado perto de um colega de olhos azuis – seu amigo íntimo – lançou-lhe um olhar desdenhoso. Estavam aprendendo depressa.
O regulamento foi explicado. Os olhos castanhos podiam continuar usando o bebedouro da classe, como sempre. Os olhos azuis teriam de usar copos de papel.
“Por que?”, perguntou uma menina, com os olhos azuis arregalados de espanto.
“Porque podemos apanhar alguma doença”, explicou um menino de olhos castanhos.
Jane continuou explicando o regulamento. Os alunos de olhos castanhos teriam mais cinco minutos de recreio. Eles almoçariam primeiro, poderiam escolher seus companheiros de fila e poderiam repetir o prato. Os olhos azuis não teriam nenhuma dessas vantagens.
“Quem deve sentar-se nas primeiras filas da classe?”, perguntou Jane.
“Os olhos castanhos!”, gritaram estes.
Houve uma barulheira enquanto as crianças arrumavam suas carteiras nos novos lugares.
“Os olhos azuis só podem brincar juntos com os olhos castanhos se forem convidados”, continuou a professora. E aconselhou os olhos castanhos a refletirem muito antes de convidarem olhos azuis para brincar. “Vocês podem querer brincar com eles, mas o que os seus amigos olhos castanhos não vão pensar?”
Explicando o regulamento, Jane passou ao trabalho escolar do dia. Quando um aluno de olhos castanhos se atrapalhou na leitura em voz alta, ela o ajudou. Quando um olhos azuis se atrapalhou, ela balançou a cabeça e mandou um olhos castanhos ler o trecho. Quando ela notou que um menino de olhos azuis, nervoso, estava enrolando o canto de uma página enquanto esperava a sua vez de ler, Jane mostrou o livro dele à classe e perguntou:
“Gente de olhos azuis cuida bem das coisas que lhe são confiadas?”
“Não!”, gritaram deliciados os olhos castanhos.
As conclusões. Assim correu o dia. Os olhos castanhos se divertiam provocando os olhos azuis, zombando dos seus erros, chamando-os de “olhos azuis” como se tal fosse um insulto. Nenhum convidou seus antigos amigos para brincar no recreio.
“Pelo meio-dia eu não agüentava mais”, diz Jane. “Sentia-me arrependida da brincadeira. Não havia mais necessidade de pensar para identificar uma criança como sendo olhos azuis ou olhos castanhos. As crianças olhos azuis estavam abatidas. Sua maneira de sentar, suas expressões, tudo nelas revelava derrota. O trabalho escolar delas caiu em qualidade. Tinham o ar e os gestos de crianças realmente inferiores. As crianças de olhos castanhos mostravam-se felizes, atentas e satisfeitas da vida. Mas o tratamento que elas estavam dispensando a seus amigos de antes me assustava. Não havia dúvida de que elas se consideravam de fato superiores.”
Antes de terminar a aula Jane lembrou às crianças a combinação do início do dia:
“Eu disse que na segunda-feira os olhos azuis estarão por cima. E é assim que vai ser.”
Na segunda-feira ela falou:
“Menti-lhes na sexta-feira quando disse que gente de olhos castanhos é superior à de olhos azuis. Não é verdade. Os olhos azuis é que são superiores aos olhos castanhos. E mais inteligentes.”
Ela imaginava que essa segunda afirmativa iria encontrar mais resistência. Tendo sido enganadas uma vez, era bem possível que as crianças não quisessem mais saber da brincadeira. Mas observando-lhes as reações, viu que suas palavras estavam surtindo efeito. As feições que se tinham mostrado tão alegres na sexta-feira iam tomando um ar deprimido; os que haviam estado por baixo sorriam satisfeitos.
Jane recapitulou as restrições que seriam impostas aos olhos castanhos, e logo começou a implicar com elas. “As crianças de olhos castanhos reagiram com a mesma intensidade das outras”, diz ela, “com a diferença de que as crianças de olhos azuis, agora na situação de superiores, não se mostravam tão mesquinhas no tratamento dos colegas de olhos castanhos. Seria por que, tendo sofrido a discriminação, conseguiam identificar-se com o grupo ‘inferior’ e se compadecer dele? Seria bom que fosse, mas eu não tinha certeza.”
A grande mentira. Antes de liberar as crianças, Jane encerrou a brincadeira e disse que tudo não passara de uma mentira.
“A cor dos olhos de uma pessoa tem algo a ver com a índole dessa pessoa?”, perguntou ela.
“Não!”, gritaram as crianças.
As tensões dos dois dias de brincadeira cederam como uma represa que se abre, a professora riu com as crianças, acariciou as que choraram de alívio e quase chorou também ao ver meninos que se haviam separado, devido à cor dos olhos, novamente lutando de brincadeira, felizes, e meninas com os olhos cheios de lágrimas abraçando amigas que pouco antes pareciam perdidas para sempre.
Nos dias seguintes Jane levou as crianças a debaterem amplamente a lição aprendida, e no fim pediu a cada criança que escrevesse uma composição sobre o assunto.
“Eu não estava preparada para a indignação e revolta que elas mostraram por terem sido classificadas como inferiores”, diz ela.
“Nas composições as crianças falaram com sinceridade do que sentiram como ‘inferiores”. “Eu me sentia suja”, escreveu uma menina. “Eu me sentia incapaz”, escreveu um menino. “Tive vontade de chutar uma pessoa de olhos castanhos”, escreveu outro.
Jane leu as composições em voz alta para a classe e lembrou o que as crianças tinham dito a respeito de negros antes da brincadeira. “Se vocês fossem chamados de estúpidos, descuidados e sujos todos os dias de manhã à noite, não acham que acabariam ficando com raiva, que não teriam vontade de ser cuidadosos e limpos, ou de mostrar aplicação na escola?”, ela perguntou. “E será mais certo julgar uma pessoa pela cor da pele do que pela cor dos olhos?” “Antes de terminar”, diz Jane, “eu estava convencida de que as crianças haviam aprendido muito com a brincadeira, e que não iam esquecer a lição, isso foi confirmado por declaração dos pais.”
Ponto de partida. Desde então Jane Elliott repetiu a sua brincadeira, a que chamou de “Dia da Discriminação”, em duas outras turmas de terceiro ano, com resultados mais ou menos idênticos. Enquanto isso a notícia da experiência transpunha os limites de Riceville. No ano passado, o “Dia da Discriminação” foi assunto de um documentário de TV nos Estados Unidos. Avisadas apenas de que a classe seria televisada, as crianças se comportaram com a mesma espontaneidade das outras turmas.
Após o programa, intitulado “O Olho da Tempestade” e apresentado em maio, recebi centenas de cartas. Mais de 95% eram de aplausos. “Li a maioria das cartas aos alunos, exceto as de racistas radicais”, diz Jane. “Achei que as crianças deviam saber que nem todo mundo estava de acordo com a nossa experiência. Algumas pessoas pensam que as crianças estavam representando, que elas não podiam ter-se sentido superiores ou inferiores com tanta rapidez. Não censuro essas pessoas. Para mim também foi difícil acreditar da primeira vez. Mas isso repetiu-se várias vezes, sempre da mesma maneira. Talvez seja uma prova da suscetibilidade dos seres humanos – principalmente crianças – a uma voz de autoridade. E – o que é ainda mais pernicioso – mostra que os resultados da discriminação contribuem para criar e confirmar preconceitos.”
“Eu queria que alguém me ensinasse um método menos doloroso de mostrar às crianças que a discriminação é um erro”, diz Jane Elliott. “E não sou ingênua para supor que um único exercício possa mudar o mundo, nem mesmo Riceville. Mas se quiserem viver em uma sociedade livre da irracionalidade do racismo, precisamos começar por algum lugar. Sou professora. Trabalho com criança. Por isso comecei com elas.”

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