segunda-feira, janeiro 29

Moço sobre rodas

Fonte : Revista Seleções
Data : Abril de 1981
Autor : Fred McGuiness

Numa pequena cidade canadense, na década de 1930, um mensageiro descobriu que sua profissão era uma fantástica escola de vida.

Passados 45 anos, as recordações para mim ainda estão frescas e claras como o ar da pradaria. Durante a recessão e a depressão da década de 1930, eu era entregador do jornal Sun, de Brandon, Manitoba, além de mensageiro uniformizado do serviço telegráfico da Canadian Pacific; era um MOÇO SOBRE RODAS, como dizia o anúncio na vitrina da velha loja. Por um período de cinco anos, minhas inúmeras entregas de embrulhos ou mensagens me proporcionaram um curso intensivo de relações humanas – o mesmo é dizer: trabalhar num emprego que me deu uma visão dos bastidores do comércio de uma pequena cidade e uma inesquecível introdução ao mundo dos adultos.
O percurso para a distribuição do meu jornal cobria o bairro comercial. Se eu me apressasse, podia fazer minhas 80 entregas em meia hora. Não era esse, porém, meu objetivo, porque minhas entregas me levavam a muitos lugares onde não teriam entrada nem amigos nem familiares.
Minha primeira incumbência, por exemplo, era um velho restaurante situado no andar térreo de um decrépito edifício de dois andares, em frente da estrada de ferro. O segundo andar era uma casa de cômodos, que os alugava a homens sós, ao mês, à semana, ao dia ou até, segundo boatos locais, por horas.
Eixo social. A poucos passos dali, minha segunda entrega era no característico edifício onde se situava a A . E. McKenzie Seed Co. Ltd., conhecida em Brandon há muitas gerações como a “maior empresa de sementes do império britânico”. Seu gênio fundador, ainda lá residente, “A . E.”, era um homem de aparência severa, com um nariz de falcão e um pince-nez sem hastes. Vez por outra ele me acenava par que eu entrasse no seu gabinete envidraçado e me perguntava: “Você é o filho de Will, não é mesmo?” Então me dizia que eu me deveria tornar um homem de bem como meu pai. Isso sempre me emocionava e ainda hoje me emociona, quase meio século depois: papai tinha falecido na primavera anterior.
A seguir, vinham um comerciante de ferramentas, uma sala de aposta de corridas de cavalos e um hotel. O comerciante de ferramenta fora amigo de meu pai e nós dois conversávamos, enquanto ele supervisionava alguém que colocava um implemento dentado num arado ou calços nas velhas rodas de aço de um trator. A sala de apostas era uma terrível delícia, porque, como meus deveres me obrigavam a entrar, eu o fazia com o absoluto conhecimento, que me fora transmitido pela minha mãe, de que um dos mais ardentes cantos do inferno estava reservado para os rapazes que costumavam freqüentar esses locais.
Minha entrega mais vultosa era a seguir: cinco exemplares do jornal no balcão de venda de charutos no hotel Prince Edward, o eixo social da cidade.
Relógio antigo. Depois eu corria de volta pela rua 9 para levar um jornal ao gabinete do funcionário municipal, no velho e decrépito edifício do município, e esperava um minuto para que ele pudesse fazer sua habitual leitura, baseado no direito público à informação. Uma vez por mês, o delegado de saúde do distrito procedia a um ajuste de contas com os micróbios nas leitarias locais, e publicava os resultados das inspeções no boletim municipal. Eu sempre verificava os resultados obtidos na leitaria onde minha mãe comprava o leite, e me regozijava quando estes eram baixos, sentindo-me nauseado quando o não eram.
A seguir, na minha rota, ficava a ACM, onde alguns veneráveis cidadãos se tinham instalado quando o edifício fora construído e no qual ainda residiam, passados 30 anos. Um deles, o capitão Jabcz Butler, oficial do exército britânico, na reserva, ofereceu-me seu relógio de bolso pouco tempo antes de morrer – um relógio antigo, a que se dava corda com uma pequena chave. Eu dava corda nele todas as manhãs, antes de começar a escrever, e colocava-o na minha escrivaninha – recordação de um homem solitário que se tornara amigo do seu visitante cotidiano.
Os doces. Deliberadamente, eu apressava o andamento perto do final do meu percurso, porque esse era o único pedaço do caminho que não me divertia. Havia aí um clube masculino, onde, sentados em torno de mesas cobertas de feltro, homens, que fumavam e diziam palavrões, jogavam infindáveis partidas de copas e gin-rummy. Depois vinham diversos apartamentos em segundos andares, sobre as lojas e os galpões de atacadistas: pela minha observação diária, eu sabia que os residentes tinham de se “arrumar”, como dizia minha mãe, com um banheiro por andar e poucas comodidades. Até hoje não consigo apagar a recordação de uma criança que mal andava ainda, que eu encontrava diariamente quando levava o jornal para o apartamento de seus pais. Certo dia morreu escaldada por um balde de água fervente em que tropeçou e que sua mãe esquentara para os banhos. Por várias semanas não apareci por lá; não conseguir enfrentar seus parentes.
Minha última entrega era no mais antigo edifício de apartamentos da cidade, onde uma viúva franzina como um passarinho, mas de coração caloroso, que conhecia minha mãe, sempre me acolheu com amizade, desde o primeiro dia em que trabalhei como mensageiro. Se estivesse fazendo doces, sempre me dava algum.
Recordo o dia em que segurei na porta para que os homens da agência funerária carregassem o seu caixão para o carro fúnebre e, quando cheguei no segundo andar, deparei com um grupo de vizinhos entristecidos que se aglomerava diante da porta aberta do seu apartamento vazio. Chorei amargas lágrimas porque, no meu bolso, estava ainda o festivo cartão de Páscoa que lhe trazia. Dez anos depois, quando cheguei em casa, vindo da batalha do Atlântico, encontrei esse cartão na gaveta de uma escrivaninha.
Depois de ter sido por dois anos distribuidor de jornais, eu estava apto para coisas mais importantes, como por exemplo ser mensageiro dos serviços telegráficos. Nesse tempo, em que não havia ainda chamadas telefônicas para longas distâncias, os telegramas eram o principal elo de ligação da cidade com o mundo exterior. Mesmo numa pequena povoação como Brandon, os telegramas chegavam às dezenas: encomendas de utensílios, anúncios de mortes e de nascimentos, avisos de cobranças de dívidas, resmas de disparates em telegramas de felicitações por ocasião de casamentos e açucarados votos no Dia das Mães, todos eles arrumados num “pacote”, como chamavam a essas mensagens os rapazes que as distribuíam, quando reunidas no bolso da sua farda.
Segredos e sustos. Quando eu saía do escritório e segurava o guidom da minha bicicleta, sentia-me semelhante a um missionário incumbido de uma missão profundamente simbólica. Conhecia a tristeza de alguns dos cidadãos mais idosos, vivendo abaixo dos níveis de subsistência nos apartamentos da parte baixa da cidade, sem água quente; conhecia o orgulho de passar tranqüilo pelo recolhedor de entradas nos cinemas, entrar em exposições ou até mesmo em bailes, porque meu uniforme era a garantia da minha admissão. Houve ocasiões em que homens ficaram pálidos quando eu apareci e mulheres desmaiaram. Se as mensagens eram abertas apressadamente e lidas a correr, eu enfrentava risadas, maldições, lamentos ou gratificações, o que, dependia, obviamente, do seu conteúdo.
Antes de entregar uma mensagem, somente duas pessoas em toda a cidade conheciam o seu teor: o telegrafista e eu. Depois da entrega, os que as recebiam parecia que me tratavam de modo diferente, porque sabiam que eu estava ao corrente dos segredos das suas vidas.
Certa ocasião, uma senhora abriu um telegrama que lhe comunicava a morte de uma pessoa da família e desmaiou nos meus braços – carga algo pesada para mim, frágil rapaz de 14 anos. Deitei-a o mais suavemente que pude no chão pintado de cinzento da entrada da sua casa, e depois corri para a porta próxima, buscando auxilio. Quando voltei com ajuda, ela já havia recobrado os sentidos e estava sentada nos degraus. Pois, em vez de me agradecer minha boa ação, ralhou comigo por ter contado ao seu vizinho, com quem estava brigada, o que se passara.
Também houve certas manhãs em que comecei meu trabalho com o coração pesado, porque no meu bolso havia muitos telegramas de uma agência de cobranças ameaçando mover processos por dívidas. No idealismo dos meus verdes anos, eu não dava importância às necessidades do comércio: achava que o telegrama era uma arma poderosa demais para ser usada contra gente amedrontada. Eu lhes sugeria que exercessem uma opção possível: que lessem o telegrama mas o devolvessem, recusando-se a pagar as suas dívidas – o que, habitualmente, faziam.
Em menos tempo do que o de uma vida humana, e explosão tecnológica trouxe às nossas casas uma imediata comunicação com o resto do mundo através dos satélites, rádio-amadores, telex,, rádio, televisão e o telefone, sendo agora possível comunicar-se a longas distâncias. É estranho pensar que, há apenas 40 anos, grande parte da comunicação de uma cidade era prosaicamente feita por um moço sobre rodas.

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