quinta-feira, janeiro 25

Minha Moby Dick

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 1985
Autor : William Humphrey

O inverno havia sido longo. Passei grande parte dele lendo o livro de Herman Melville sobre a grande baleia branca chamada Moby Dick e seu perseguidor, o louco capitão Ahab; talvez eu tivesse amado demais esse livro, porque era inacreditável aquilo que estava vendo naquele tranqüilo rio da Nova Inglaterra.

Chamo-me Bill. Há alguns anos (não sei exatamente há quantos) resolvi ir pescar, para me animar um pouco, depois do inverno passado nas montanhas; eu estava bastante deprimido. Sempre que, entre outras coisas, fico rabugento com as crianças, saio para pescar o mais rapidamente possível.
Isso não significa que eu tenha a obsessão das regiões remotas, que sinta atração pelos mares distantes e pelos misteriosos monstros das profundezas. Pescar agulhão-vela no golfo do México ou peixe-espada na Patagônia custa caro e nunca tive muito dinheiro.
Pescar é para mim um ato tão pessoal quanto rezar. Sou exigente em relação a pescarias: tem de ser pouco dispendiosas, não me obrigar a caminhar grandes distâncias, e ser num local pouco freqüentado, um rio de montanha ou um regato no campo. Uma vez que pescando eu procuro algo mais do que fisgar peixe, quero que ele seja astuto, irrequieto, valente quando capturado. Quero um peixe que não seja apenas comestível, mas delicioso e que não precise de ser escamado. “Você não é nada exigente!” dirão os leitores. “O peixe que quer deve ser tão raro como a baleia-branca.” Sou difícil de contentar, mas há, ente todas as espécies de peixes, uma, precisamente uma, que preenche todos os meus requisitos.
Não sou o único que aprecia trutas. Existem muitos pescadores como eu (demasiados, até), e estou certo de que todos pensam como eu.
Isto são só divagações, mas, como disse, passei aquele inverno nas montanhas. Não muito longe da minha casa há um regato, um afluente do rio Housatonic, que tem interesse histórico e literário apenas. Durante todo aquele rigoroso inverno, fui várias vezes à biblioteca em Lenox, onde ia buscar os livros de Nathaniel Hawthorne e de Herman Merville, que me fizeram companhia até a primavera. A família de Hawthorne vivera num pequeno chalé vermelho perto do rio, ao qual deram o nome de riacho das sombras.
Montado na sela do seu cavalo, escrevendo durante o inverno de 1850 o seu Moby Dick, Herman Melville ia lá de visita e contava, segundo as palavras do jovem Julian Hawthorne, “histórias tremendas sobre os mares do Sul e sobre a pesca da baleia.” Parecia-se, quando estava inspirado, com as coisas que descrevia – capitães do mar, selvagens e até mesmo com a terrível Moby Dick.
Um dia em junho, quando eu voltava para casa vindo da biblioteca, tive um pneu furado; uns meninos estavam pescando no riacho, num pequeno lago por trás da ponte. Observei-os da estrada, enquanto mudava o pneu. Estavam apanhando peixinhos, mas nem os devolviam à água. Sempre que um deles pegava um peixe, pisava-o para não se ferir enquanto tirava o anzol; depois jogava-o para o lado. Estavam muito entretidos; nenhum deles se dava ao trabalho de arruma-los num cesto. No entanto, eles deviam era matar os peixes rápido, e não deixar que rabeassem até morrerem.
Desviei os olhos daquela cena, e notei algo que boiava na água rasa perto da margem, a jusante do local onde estavam os meninos; parecia um tronco cortado, ou uma pedra comprida e estreita. A mais ninguém, não ser a um fanático da pescaria como eu, teria ocorrido outra hipótese.
Fui buscar um binóculo no carro. O que vi então foi uma truta de 1m de comprimento. Não cabia no campo de visão das lentes, tinha de ser observada em partes separadas. Suas manchas eram enormes e faziam que parecesse um submarino com o casco camuflado.
O peixe que eu observava devia medir de 90cm a 120cm. Respirei fundo. Eu estava olhando um prodígio da natureza.
Vendo-me de binóculo apontado para eles, os meninos pararam de pescar, abandonaram os peixes e fugiram de bicicleta, como se tivessem sido apanhados pescando ilicitamente.
Desci até a beira da água, caminhando cautelosamente para que o peixe não notasse a minha presença. Alguns dos peixinhos largados na margem ainda davam pequenas sacudidelas; outros estavam mortos e secos. Nenhum deles tinha olhos. Uma barbaridade incrível. Perto, encontrei um emaranhado de linhas e um anzol, cuja isca era um olho de peixe. Além de atroz, parecia não fazer sentido, pescar um peixe e tirar-lhe os olhos para com eles pescar outro peixe, e depois jogar tudo fora? Quando os meninos fugiram, sabiam que estavam cometendo um ato condenável.
A grande truta boiava, quase tocando a margem. Arrastei-me cautelosamente até ela. Não precisava de faze-lo: o olho direito do peixe era cego – opaco, branco, sem pupilas, como a vista de um peixe assado. Isso também me entristeceu; é horrível ver um ser maravilhoso com um defeito físico.
Ocorreu-me então uma explicação para o comportamento dos meninos: eles só estavam pescando para conseguirem os olhos dos peixes que usavam como isca para pescar a truta. Deduzi que pensavam que a truta gostasse de comer olhos de peixes, devido a ter perdido seu próprio olho.
Resolvi pegar aquela truta; os meninos tinham perdido todos os direitos sobre ela devido á sua atitude cruel. E resolvi também passar a pescar só com isca artificial, apesar de ser mais difícil. Só o mais desportivo de todos os métodos era digno daquele peixe único.

Medindo o gigante.

Como não tinha grande esperança de conseguir apanhar a enorme truta, comecei por medi-la. Era possível faze-lo, porque estava sempre boiando no local onde se alimentava, com o lado cego quase tocando a margem. Fui para o lago ao romper do dia, na manhã seguinte à da descoberta; levei comigo uma régua de carpinteiro, desdobrável, e a minha mulher, para ser testemunha. Estendemo-nos na margem e medimos o peixe: tinha pouco mais de 1m de comprimento!
Não tentei medir a sua grossura com a fita métrica, mas comparei-a com a da minha própria coxa. Quando se conhecem o comprimento e a largura de um peixe, é possível calcular o peso aproximado. Calculei que a velha truta zarolha teria cerca de 15kg.
Nunca poderia ter atingido este tamanho prodigioso naquele charco. Devia ter descido, e não há muito tempo, de um lago das proximidades. Também não podia atingir aquele tamanho sendo cega de um olho; a perda desse olho devia ser bastante recente.
Ora, um peixe tão grande não pode ser apanhado. O fato de não ter sido ainda pescado era a prova de que era impossível faze-lo. Era também muito prudente. O tempo máximo de vida de uma truta (que só uma pequena parte delas atinge) é de sete anos e, com essa idade, o seu comprimento é de 55cm. Aquele peixe gigantesco media quase o dobro; teria também o dobro do tempo médio de vida? Por outro lado, um peixe daquele tamanho é demasiado grande para não ser pescado, pois atrai as atenções.
Eu sabia que a pesca da truta com isca artificial é perigosa. Destrói casamentos e carreiras; aqueles que nela se iniciam muito cedo nunca casam nem trabalham: tornam-se celibatários, ficam velhos e sem amigos. O perigo de me deixar absorver por esse tipo de vício me aterrava. Desprezo quem transforma um passatempo numa paixão. Acredito firmemente na moderação.
Eu penso assim, mas na prática sou excessivo em tudo que faço; há muito que suspeitava de que a minha pouca vontade de pescar com isca artificial era uma benção. Agora, a providência colocava no meu caminho um peixe capaz de perturbar um homem equilibrado como eu, e modificava meu método de pescar, pondo ali aqueles meninos, que cometiam um crime contra a natureza que nada podia justificar. Mas eu queria aquele peixe e desejava nunca lhe ter posto os olhos em cima.
Resolvi procurar informações sobre o assunto nos livros; há muitíssimos escritos sobre a pesca desse gênero.
Para resolver o problema básico (qual a isca artificial a utilizar), consultei o Perito Eficiente, que aconselha a aproximação com uma rede, uma garrafa de formaldeído e um microscópio, o mais potente possível. Coloca-se a rede no rio, como uma rede de arrasto esticada, de uma margem à outra; então, a gente se vira no sentido oposto ao da corrente, atira algumas pedras no rio, volta para junto da rede, arranca as pequenas libélulas que aí ficam presas e as identifica com a ajuda do microscópio; depois, com um engenhoso equipamento de iscas artificiais, anzóis de 20 tamanhos diferentes, pedaços de linha de todas as cores, penas de todas as aves e pêlo macio faz umas iscas artificiais parecidas com as libélulas. Muito simples, como se vê.
Acabei resolvendo o problema sozinho. Encontrei a solução brilhante: descobri que deveria aprender com o peixe. Quem podia conhecer melhor os hábitos das trutas senão a maior truta do mundo? Estava ali, numa concavidade do lago, cega de uma vista; sem que ela me visse, podia estudar todos os seus movimentos e hábitos.

Estudando a vítima

Fui para o lago. Quando lá cheguei, encontrei de novo aqueles meninos perversos, fazendo a mesma coisa. Havia me esquecido completamente deles. É evidente que fugiram logo que me viram.
Estudei todas as idas e vindas da truta zarolha, tal como um assassino estuda a rotina da vida de sua vítima. Depois de ter descoberto a que hora saía da toca por baixo da ponte, ia sempre me colocar, deitado de borco, perto do local onde ela ia boiar. Era infalivelmente pontual e não me ligava a menor importância.
Era um ser nervoso, sempre alerta, como se compreendesse que vivia num meio hostil. A sombra de uma nuvem lá em cima era o bastante para que ele corresse para debaixo da ponte, buscando proteção.
Seria de esperar que um monstro daqueles, um verdadeiro fenômeno, fosse desajeitado, com hipertrofia muscular, mole, com pouco fôlego, mas a sua corpulência não impedia que fosse gracioso e forte.
Dominava completamente o seu corpo. Sem mover um único músculo, podia manter-se imóvel como uma pedra; enchendo ou esvaziando de ar as guelras, podia emergir ou mergulhar como um submarino. Observava suas vítimas logo que entrava no lago. Então, vinha ligeiro, com a barbatana dorsal cortando a água como um periscópio, o focinho aerodinâmico fazendo ondular silenciosamente a superfície, e um gafanhoto ou uma lagarta eram engolidos. Missão cumprida, mergulhava silenciosamente.

Contratempos e problemas.

Não me limitei a estudar o animal. Era igualmente importante familiarizar-me com o seu ambiente, aquela pequena área onde ele se ia alimentar e onde poderia ser apanhado de surpresa.
O fato de que o pequeno caudal que a alimentava tinha menos de 1m de largura e águas poucos agitadas permitia que a minha isca artificial flutuasse livremente á superfície, o que poderia levar à conclusão de que a minha tarefa estava facilitada. Mas não era assim. A própria pequenez do leito do riacho exigia um lançamento exato, e a tranqüilidade da superfície implicava em que a minha isca devia cair na água de modo extremamente suave.
Ainda havia outro contratempo: existia (e existe sempre, mesmo no menor curso de água) mais do que uma corrente. Isso acaba sempre causando problemas. A isca artificial deve deslizar na corrente, arrastando insetos e levando-os até junto do peixe, que está escondido. Entretanto, a isca bóia na corrente ou correntes adjacentes. Duas correntes de um rio, embora paralelas, não fluem com a mesma velocidade. Uma delas levará a linha mais rapidamente do que a outra. Passados alguns segundos, a linha curva-se e ondula cada vez mais depressa para a corrente onde está a isca artificial. Isso é totalmente diferente do modo com o um inseto natural flutua; todas as trutas sabem disso. O tempo de que o pescador dispõe para enganar o peixe é o intervalo entre o momento em que a isca cai na água e o começo do seu arrastamento.
Havia ainda outro problema. O campo de visão de uma truta normal é exatamente 97,6 graus. A isca artificial deve cair dentro dessa estreita área; para que o peixe a morda, precisa de vê-la primeiro. Eu só dispunha de metade dessa área para atrair e enganar a velha truta zarolha. Lançar a isca de uma distância de cerca de 12m, naquele pequeno alvo, é como pedir que um oficial de artilharia atinja uma ponte estreita de uma distância de 8km. Resolvi pescar a truta gigante no fim de agosto. A estação da pesca estava chegando ao fim. Era agora ou nunca.
Foi aí que descobri que não estava sozinho com a truta. Eu vinha sendo observado.
“Vai tentar pegar a truta velha?”
Eu estava recuando, de rastos; olhei por cima do ombro e vi um menino louro e sardento, que veio ter comigo; via-se que ele sabia onde a truta estava.
“Não se aproxime tanto”, disse-lhe. “Vai assusta-la.”
“Assusta-la? De que é que ela pode ter medo se é maior que eu? O senhor está perdendo seu tempo, tentando apanhar a velha truta zarolha.”
O menino ficou olhando, enquanto eu preparava a minha vara de pesca. De um bolso, tirei uma das muitas caixas de iscas artificiais e escolhi uma.
“Que é isso?”, perguntou ele.
“Uma isca artificial. Um anzol com penas amarradas para parecer um inseto vivo.”
“O senhor acha que vai apanhar um peixe com essa coisa?” Para ele, eu estava completamente louco.
“Olhe”, acrescentou, “só há um engodo que pode levar aquele peixe a morder. Sabe qual é?”
“Penso que sei a que você se refere”, disse eu.
“É....”
“Deixe para lá! Você faz as coisas á sua maneira, eu à minha.”
Encolhendo os ombros e abanando a cabeça, o menino foi embora.
Entrei na água, logo atrás do peixe. Só me atrevi a aproximar-me até cerca de 11m; atirei a linha para trás e para diante, em falsos lançamentos, para aumentar o seu comprimento. Quando achei que estava no comprimento indicado, deixei-a cair. Tocou a água exatamente no local onde eu desejava e, segundo me pareceu, fê-lo suavemente. Contudo o peixe voltou para a ponte – para gáudio do menino, que me observava da margem. Eu havia ignorado a regra principal da pesca com isca artificial.
Nesse tipo de pesca, como a isca é muito leve, o pescador só lança o peso da linha, senão ela fica demasiado óbvia. O pescador é obrigado a colocar entre o fio da linha e a isca um pequeno peso. É a sedela, um pedaço de nylon acrescentado à linha, ao qual está presa a isca.
O diâmetro da sedela é medido com um micrômetro, em décimos de milímetro. A sua espessura varia entre a de um fio de tapete e a de uma teia de aranha. Na pesca á truta, uma sedela com 3m de comprimento é a menor que geralmente se usa; só ela poderá levar a linha para perto do peixe. Não há comprimento máximo. Varia de peixe para peixe. No fim da estação, com a água límpida movendo-se lentamente, e o peixe estando grande, astuto e cauteloso, a linha deve ser mais comprida, mais fina, suficientemente delgada para enganar o peixe, mas com força suficiente para o trazer para terra.
Atualmente, uma truta com 1kg é uma grande truta. O meu gigante tinha 15 vezes aquele tamanho e era seguramente 15 vezes mais prudente. Assim, paradoxalmente, para aquele peixe enorme, eu era obrigado a usar uma linha muito fina.
Comecei com uma de 0,3mm de diâmetro, podendo suportar 4kg. O peixe nem ligou, e até pareceu ofendido.
As semanas passavam e eu ia aumentando contrafeito o comprimento da sedela, enquanto diminuía a sua robustez; mas aprendi a lançar aquela coisa desajeitada (é complicado), e tive a alegria de notar uma mudança no comportamento do meu adversário.
Consciente de que me restava pouco tempo, e sob a orientação da truta, fui-me aperfeiçoando. Um lançamento descuidado falhando ligeiramente a pontaria ou pousando com o mínimo ruído... e lá se ia o peixe! Como eu me havia enganado ao pensar que apanharia aquela maravilha da natureza! Esse sentimento era certamente compartilhado pelo menino sardento.
Meu estilo ia melhorando regularmente, mas continuava muito distanciado da perícia necessária para atrair um peixe à minha isca. Continuava sempre cedendo na batalha do aumento da sedela, que atingia já 5m, estando fina como teia de aranha. Reparei que a truta começava a mostrar sinais de interesse. Era tão grande que, mesmo de longe, eu podia ver machas ondulantes que provavam que ela estava tensa, preparando-se para se precipitar sobre a presa que se aproximava.
No último instante, porém, ela mudava de idéia e mergulhava, deixando a isca passar. Tão depressa eu a amaldiçoava pela sua invulnerabilidade como me sentia feliz por ter tido o privilégio de conhecer um ser tão notável e raro. Ia me dando uma grande ajuda na técnica de pesca à truta (trutas menores do que ela) e eu deveria ter-me contentado com isso. Mas não. Ela era o peixe que eu queria apanhar, e, esquecendo-me de que lhe devia todos os meus progressos, acreditava cada vez mais em que o conseguiria. Continuei convencido disso até o dia em que findou a estação da pesca.
“Hoje é o último dia”, anunciou o menino sardento, quando nos encontramos perto do lago. “Vejo que continua utilizando a isca artificial. Ela mordeu alguma?”
“Não mordeu coisa nenhuma.”
“Então, por que é que o senhor pensa que vai conseguir agora?”
“Não estou pensando que ela vai morder a isca, estou só querendo que o faça.”
Mas a verdade é que o rapaz destruíra as minhas últimas esperanças. À meia-noite, o Departamento de Pesca e Vida Natural estenderia sua proteção sobre as trutas; ela ficaria ali no pequeno lago. Entrei na água pela última vez, desejando que a truta levasse a melhor.
Como às vezes acontece, depois que desisti passei a lançar o anzol muito melhor. Consegui por quatro vezes jogar a isca por cima do peixe, sem que ele desse por isso. O quinto lançamento deveria cair no mesmo lugar, 1m à frente do peixe, tal como os outros, mas isso não aconteceu. Saltando fora da água, o peixe apanhou a isca no ar, 30cm acima da superfície. Por que reagiu assim com aquela e não com as outras é coisa que nunca saberei. Então ela foi fisgada pelo anzol.
Pulou, caiu e pulou de novo. Parecia mais uma ave que um peixe; como que pairava acima da água. Sua umidade emprestava-lhe uma espécie de iridescência; quando batia o sol, suas manchas brilhavam como jóias. Então ela vergou toda, deu um salto enorme e mergulhou, cortando a água com violência.
Meu anzol levou um puxão fortíssimo, como eu nunca experimentara na vida.
A truta pulou novamente da água mais alto que anteriormente. Havia exuberância nos seus saltos, alegria de lutar, uma total autoconfiança e uma singular grandeza. Acreditei que ela agarrara minha isca atraída pelo perigo. Quase me convenci de que aquele superpeixe, sabendo que era o último dia da época da pesca e que estava no fim da vida, quis mostrar ao mundo que aquilo de que era capaz, apesar da idade e da deficiência visual.
Deu outra corrida e mergulhou novamente; os dois saltos anteriores haviam sido só de treino. Então ela subiu e ficou esplendorosa ao sol, desafiando a lei da gravidade; como se o tempo parasse, ficou suspensa. Depois deixou-se cair a todo o comprimento. A água que espalhou tornou-se um autêntico arco-íris em miniatura. Enquadrada na auréola de suas próprias cores, ela deu uma última sacudidela com a cabeça, partindo a linha com um à vontade insolente, deu um pulo e caiu na água, com uma violência tal que as ondas, apesar da distância, vieram bater nas minhas pernas trementes e enfraquecidas.
“Bolas!”, gritou o menino. “Você a pegou e deixou que fugisse!”
Desgostoso e decepcionado por ter perdido aquele peixe único. Hoje, contudo, pergunto-me se, na realidade, eu preferiria que aquele peixe estivesse pendurado na minha parede, ou recorda-lo exibindo seu poder e grandeza, projetado no seu próprio arco-íris. Muitas vezes, quando estou deprimido, lembro com nitidez os pormenores; fico contente por ter essa imagem dele. Foi o único peixe da minha vida que não ficou maior ao ser lembrado.
As histórias de pesca terminam sempre com o peixe fugindo, mas esta não. Esta, amigo leitor, é uma história na qual foi o pescador quem foi embora, pois a velha truta zarolha me transformou num homem diferente. A partir daquele dia, apanhei e perdi peixes grandes, mas fui sempre capaz de lhes dizer: “Segue o teu caminho. Conheci um melhor que tu; nunca haverá outro como ele. Tu, por maior que sejas, comparado com a minha Moby Dick, não passas de um mero pigmeu.”

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