quarta-feira, janeiro 24

Salvador dos que sofrem

Fonte : Revista Seleções
Data : Novembro de 1986
Autora : Deborah Cowley

Num país assolado pela seca, um missionário canadense consegue alimentar muita gente, e ainda toma conta de mais de 20 crianças abandonadas.

Num dia de junho de 1981, em Masvingo, uma cidade do Zimbabwe, uma notícia no jornal chamou a atenção do missionário canadense Danny Curle: um hospital local estava à procura de um lar para um recém-nascido que havia sido encontrado numa lixeira. Nem o hospital nem os orfanatos tinham possibilidades de ficar com a criança.
E muito menos Danny Curle, de 44 anos, pai de três filhos e viúvo de Sharon, que morrera há 14 meses num desastre de carro. Ele estava sobrecarregado de trabalho, cuidava da casa com a ajuda de uma governanta e dirigia um programa de auxílio aos famintos, que contava com 15 refeitórios espalhados pelo país assolado pela seca.
“Bebê descartável”. Duas semanas depois, idêntico pedido era publicado no jornal. Seria o mesmo bebê? Curle telefonou para perguntar. Sim, era. O hospital suplicou-lhe que ficasse com a criança – ele era a única pessoa que tinha telefonado. “Imagine!”, comenta ele. “Ninguém queria aquela pobre criaturinha!”
Curle não conseguia esquecer o bebê. Quando falou sobre o assunto com os filhos, cujas idades variavam entre os 6 e os 11 anos, “eles ficaram radiantes com a idéia de terem um novo irmão”. A reação dos garotos convenceu-o de vez.
Quando viu o bebê levou um susto. “Era uma menina! Eu não sabia como cuidar de meninas!” Mas, assim que a pegou no colo, sentiu-se cativado. Danny, David, Steven, Timothy e Jonathan levaram a criança para a sua pequena casa de três quartos e se revezaram para alimenta-la e mudar-lhe as fraldas, além de terem passado muitas noites em claro quando ela choramingava. Eles lhe deram o nome de Faith.
Ela era uma daquelas crianças que Danny chamava de os “bebês descartáveis”, do Zimbabwe, vítimas da onda de infanticídios que, nos últimos tempos, assolava aquela ex-colônia britânica, antes chamada Rodésia. A tragédia aumentara em 1980, quando fora proclamada a independência: a migração da população rural para as cidades quebrara a união característica da vida tribal, na qual todos os bebês, inclusive os filhos de mães solteiras, eram protegidos.
Mas a gravidez indesejada de uma mulher solteira reduz o seu lobola (preço da noiva) e pode acarretar um castigo por parte do pai ou mesmo a morte. Por isso, às vezes a mulher é levada a esconder a gravidez e a abandonar a criança às agruras da natureza e à fome ou a ser, talvez, salva por alguém que a encontre.
Faith tornou-se a primeira das muitas crianças que encontraram proteção junto de Danny Curle e de seus filhos. A sua atual e ampla casa de campo, de 26 cômodos, situada nos arredores de Harate, a capital, está repleta de crianças abandonadas: Danny tem hoje mais de 20 crianças sob o seu teto.
Todas foram vítimas do que veio a ser conhecido por “dumping de recém-nascidos”. Hoje, elas são saudáveis, tem a oportunidade de crescer em condições normais e na companhia de quatro irmãos mais velhos, e de um pai dedicado, a quem um dos amigos chama “um verdadeiro santo.”
Nada na vida de Danny o tinha preparado para vir a ser guardião de um exército de crianças. Filho de pai operário e mãe enfermeira, ele e o irmão cresceram em Windsor, no Ontário. Na adolescência, queria ser missionário.
Freqüentou o Seminário Pentecostal, em Peterborough, no Ontário, e, em 1962, logo após completar 21 anos, foi mandado para a Libéria. Viveu durante dois anos numa missão, bem no coração da selva, e “apaixonou-se pela África”. Depois tirou um curso de teologia em Nashville, no Tennessee, e ficou como pastor adjunto numa igreja pentecostal de Brampton, Ontário. Em 1967 casou-se com Sharon, uma professora de Burlington. Três anos mais tarde, já com dois filhos, foram morar em Fort Victoria ( atualmente Masvingo), cerca de 300km a sul de Harare. Ao longo dos anos, Danny e outros pastores protestantes fundaram 85 igrejas e formaram pastores locais para as dirigirem. Mas à medida que Danny percorria o país, armando e desarmando a sua tenda, realizando cerimônias religiosas, a seca ia-se tornando uma ameaça séria: em 1983, as chuvas rarearam, o nível das colheitas baixou e as reservas de comida começaram a desaparecer. “De repente”, recorda Danny, “começamos a ouvir com freqüência as palavras ‘fome’ e ‘inanição’.”
No fim desse ano, Danny foi de carro até uma paróquia situada na longínqua vila de Chibi, para avaliar a gravidade da seca. Quando se aproximou, viu que as pessoas se aglomeravam sob uma árvore. Era o enterro de Tirus, o filho do pastor, um bebê de quatro meses que morrera de fome nos braços da mãe, na noite anterior. Depois das orações, pediram a Danny que colocasse o corpo na pequena sepultura.
“Foi a coisa mais dolorosa que fiz em toda a minha vida”, diz. Ele só pensava que,se tivesse chegado com comida um dia antes, poderia ter salvo aquela criança.
A partir da morte do pequeno Tirus, Danny Curle passou a encarar o seu sacerdócio de maneira diferente.
“Agora, alimentar os famintos é tão importante quanto pregar o Evangelho.” Sharon e ele venderam alguns dos seus haveres para comprar comida e escreveram para o Canadá pedindo ajuda. Depois de terem passado férias lá, em 1975, voltaram ao Zimbabwe já com o apoio da Associação Evangélica Cristã. Pouco tempo depois, e juntamente com outras paróquias, Danny já tinha criado 15 refeitórios, onde, diariamente se distribuíam milho e refeições à base de cereais a 15 mil pessoas, a um custo de 10 centavos de dólar canadense per capita.
Mas, dois anos depois, a tragédia bateu-lhe à porta. Em abril de 1980, durante uma noite muito escura, Sharon, então com 34 anos, dirigia o carro por uma estrada estreita, a sul de Masvingo, para visitar uma amiga que estava doente. Ao tentar desviar-se de um caminhão que vinha na contramão, perdeu o controle do carro e chocou contra uma árvore. Teve morte instantânea.
Amargurado, Danny tentou consolar os filhos. Mas só a chegada da pequena Faith, meses depois, lhes trouxe de volta a alegria de viver.
O irmão. Um dia, passado pouco tempo da vinda de Faith, alguém bateu à porta. Do lado de fora estava um polícia, segurando nos braços um bebê que havia sido lançado num rio infestado de crocodilos, mas acabara por vir dar a um campo de juncos, onde tinha sido encontrado por um pescador. Danny tinha já ficado com uma criança; aceitaria ficar com outra?
“A minha primeira reação”, recorda Danny, “foi: nem pensar! É melhor não confiar demais na sorte. Mas depois refleti: talvez este seja o menino que faltava; vai ser bom para Faith ter um irmãozinho. Se já tinha de me levantar no meio da noite por causa de um bebê, dois não iam dar muito mais trabalho. Por isso respondi: Está bem!”
Família aumenta. À medida que a história se ia tornando conhecida, aumentava o número de crianças abandonadas que lhe eram entregues. No final de 1981 já tinha sete. Dois dos berços estavam ao lado da sua cama, outros na sala de jantar, na sala de estar e no corredor.
Donativos do reverendo Ron Hembre e da antiga paróquia de Danny em Brampton possibilitaram a conversão da garagem num berçário. Mas todos os meses chegavam mais crianças, e a família de Danny logo se tornou demasiado grande para a casa de Masvingo. Em 1983 mudaram-se para a casa de campo.
Todas as crianças tinham uma história triste. Uma havia sido abandonada num ponto de ônibus, e pregado na sua roupa estava um bilhete que dizia: “Criança à venda.” Outra fora abandonada numa vala: o seu choro foi ouvido por um homem que parara para trocar um pneu furado. Um menino havia sido salvo de ser enterrado vivo sob um monte de pedras. Chipo, agora com seis anos de idade, fora vendida pela mãe por 12 dólares a um homem que a queria para sua mulher. Era comum ele tranca-la em casa, sem água nem comida. Por isso os vizinhos haviam chamado a policia, que arrombou a porta e a entregou a Danny; seu corpo estava coberto de feridas e queimaduras de pontas de cigarros.
Nem todas as crianças a quem Danny deu abrigo estão ainda hoje com ele. Duas foram adotadas por uma família africana, outra vivem com uma família em Bulawayo e uma quarta está numa escola para cegos.
Danny também conseguiu um lar para cinco crianças, já mais velhas, que haviam ficado órfãs durante a guerra da independência. Um ministro de uma igreja batista levaou-as para sua casa, a fim de orienta-las na idade escolar. Danny ajuda a custear as despesas, entregando-lhe todos os meses 30 dólares por criança. Se este projeto piloto der resultado, Danny vai procurar outras famílias africanas para tomarem conta de crianças em idade escolar. “Desse modo, podem crescer no seio de uma família que fala a mesma língua e tem a mesma cultura que elas.”
A casa de campo, pintada de um alegre tom verde maçã, fica no alto de uma colina de onde se podem ver 35 hectares de um terreno levemente acidentado, coberto por arbustos e flores, e um grande gramado onde as crianças brincam. Quando as visitei, os quatros filhos de Curle brincavam com três das crianças mais velhas, rolando no chão, dando cambalhotas, levantando-as no ar e carregando-as nas costas; as sete menores comiam com apetite, sentadas em suas cadeirinhas altas; outras quatro estavam passando férias em casa de famílias africanas.
Quatro mulheres ajudavam a tomar conta das crianças, sob o olhar vigilante de Eileen Charema, de 32 anos, uma tímida e carinhos mãe de dois filhos, que Danny tinha convencido a cuidar da sua prole. Mulher de um dos pastores, Eileen se dedica de corpo e alma a essa atividade. Conhece todos os garotos, um por um, e é com orgulho maternal que acompanha o crescimento deles.
Heila van Tonder, a governanta, é uma simpática senhora que Danny contratou depois da morte da sua mulher; dirige a casa quando Danny não está, às vezes durante dois ou três dias seguidos. Ela também trabalha num programa de alimentação e prega numa das igrejas de Danny. Edith, a mãe de Danny, conhecida por todos como a vovó, foi já seis vezes ao Zimbabwe, e todos os anos passa grande parte do tempo com a sua enorme família – “ajudando no que posso e dando o meu carinho a estas crianças adoráveis”. Os cuidados com a família não diminuíram, em nada, o empenhamento de Danny em alimentar os que tem fome. No segundo trimestre de 1983, soube-se que estavam chegando ao Zimbabwe refugiados moçambicanos em busca de comida. Na fronteira, Danny encontrou 250 mil pessoas esfomeadas; muitas morriam ali mesmo.
De volta a Harare, ajudou a organizar um programa de alimentação, o Solidariedade dos Pastores Protestantes, que conta com o apoio de oito igrejas. Trabalhando em conjunto, os pastores distribuíram comida, cobertores, pratos e xícaras. Alguns dos refugiados voltaram já a suas casas, outros permanecem nos quatro campos construídos pelo governo. “Esse trabalho com os refugiados”, diz Danny, “me fez compreender que o meu sermão mais eloqüente não foi feito no púlpito, mas sim quando eu estava de joelhos, ajudando aquelas pessoas, alimentando-as pessoalmente.”
Com o fim da seca no Zimbabwe, Danny terá mais tempo para a família. Em maio de 1985, sua casa foi oficialmente registrada no conselho Municipal de Harare, com permissão para albergar, nas presentes instalações, até 30 crianças. A fim de fazer face ao aumento dos custos, Danny espera encontrar ajuda financeira para todas as crianças.
Recompensa. Seu sonho é que um dia o governo do Zimbabwe o autorize a colocar os órfãos junto de famílias canadenses. Numa recente viagem de recolha de fundos no Canadá, recebeu 500 pedidos de adoção. Mas as autoridades do Zimbabwe acham que a ida das crianças para outro país lhe seria prejudicial. Para Danny, qualquer família é melhor do que não ter família. “Foi determinação divina que todas as crianças tivessem um pai e uma mãe. Eu faço o melhor que posso, mas é difícil ser ambas as coisas para 23 crianças.”
Na sua modéstia, ele se recusa achar seu trabalho algo especial. “Ele não se vê como um santo”, diz Ron Hembre, “mas como uma pessoa comum, que ao se dar conta de um problema tenta fazer alguma coisa para resolve-lo.”
Danny Curle tem dado muito ao povo do Zimbabwe, mas acha que recebeu muito mais em troca. “Algumas pessoas dizem que terei uma grande recompensa no céu. Mas quando olho para os rostos daqueles a quem estamos dando comida e, quando chego em casa, vejo as minhas crianças saudáveis, limpas e felizes, eu me pergunto que melhor recompensa poderia querer?”

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