quarta-feira, janeiro 17

Que calamidade!

Fonte : Revista Seleções
Data : Fevereiro de 1982
Autor : Bernardo Teixeira

Com duas datas de nascimento e dois nomes, ele tinha de ser uma pessoa ao quadrado...

Quando minha mãe anunciou à mãe dela que estava disposta a casar com um senhor pouco considerado e que mais tarde viria a ser meu pai, apesar da renitente oposição da família de mamãe, vovó exclamou: “Que calamidade!”
Vovó tinha toda a razão. O casamento foi mesmo uma calamidade. Mas, como minha irmã e eu devemos nossa existência a essa calamidade, seria insensato da minha parte pretender ser demasiado orgulhoso a respeito disso.
Para começo de conversa, papai não conseguiu sequer acertar na data exata do meu nascimento. Hoje, não é só a rainha da Inglaterra que comemora duas vezes o aniversário; eu também. Nasci no dia 2 de abril – o que muita gente pode testemunhar. No entanto, nos meus documentos oficiais (certidão de nascimento, passaporte, carteira de motorista, etc) afirma-se inequivocamente que nasci a 10 de abril. Isso foi, naturalmente, uma maneira que papai escolheu para irritar a família Muradal (do lado de mamãe), na qual vim ao mundo e fui criado. Para mim e minha irmã, os da família do lado de mamãe eram sempre nós; os da família do lado de papai eram eles.
Papai estava a centenas – talvez milhares – de quilômetros de distância quando aos ouvidos lhe chegaram rumores de que eu havia nascido. Só veio para casa a 10 de maio. Foi então ao Registro Civil para preencher a respectiva papelada e participar ao mundo da burocracia que eu tinha chegado. A verdade, porém, foi que, antes mesmo que papai abrisse a boca, o conservador do Registro declarou-lhe que teria de pagar uma multa de 100 escudos, por não haver registrado meu nascimento antes de expirado o prazo legal de 30 dias. Afinal todo mundo sabia que eu tinha nascido no dia 2 de abril. Cem escudos não eram grande coisa, mas papai, teimoso como uma mula, não simpatizava nadinha com o conservador – menos ainda do que este gostava dele. Papai embirrou que não iria pagar a multa, e pronto!
“Não vai o que? Você é mais importante que as leis do país?”, rosnou o conservador.
“Isso não sou”, resmungou papai, “mas sou o pai da criança e, no que diz respeito ao nascimento do menino, palavra de pai é de rei. O menino nasceu a 10 de abril; por isso, só hoje é que expira o prazo de 30 dias prescrito pelas leis da República.”
“Você é um mentiroso!” trovejou o conservador.
“E o senhor é um malcriado!” berrou meu pai.
Os dois se engalfinharam. Papai tinha voz mais forte que o conservador...e murro também! Ganhou a contenda. Assim sendo, fui dado oficialmente como tendo nascido a 10 de abril – tremenda mentira, que papai, maliciosamente, impunha como a mais pura verdade.
Era inevitável que esta incoerência de datas de nascimento desse origem a sutil caso de esquizofrenia...mas isso foi tudo. Papai, além de sua exagerada teimosia, era também egoísta. Assim, resolveu dar-me o seu nome de batismo, Antonio. Claro que o clã dos Muradal ficou compreensivelmente furioso. “Nunca!” exclamou vovó – e uma delegação dos Muradal caiu em cima do conservador para que mudasse o meu nome de batismo. Por mais fiel que fosse à causa dos Muradal, o conservador, ainda com um olho negro, asseverou que, legalmente, não poderia eliminar o nome Antonio do meu registro de nascimento. Contudo, como havia um pequeno espaço em branco, poderia acrescentar outro nome antes de Antonio. Foi assim que apareceu Bernardo Antonio (São Bernardo era a raça do cachorrinho da minha irmã).
O clã dos Muradal sempre me chamava de Bernardo, ignorando completamente aquele ofensivo Antonio...inclusive nos meus bolos de aniversário. O clã dos Santa Marinha (a família de papai) referia-se a mim como Toninho, ignorando essa coisa de Bernardo. Da mesma forma, os Muradal, em casa de quem vivi quando criança, celebravam o meu aniversário a 2 de abril, enquanto os Santa Marinha me mandavam os parabéns a 10 de abril.
Essa dualidade iria deixar cicatrizes na minha alma; mas dotado de uma personalidade forte, embora inconstante, tentei combater o trauma psicológico. Aos 16 anos, fiz saber a ambos os clãs que, daí em diante, tal como os cavalos puro sangues, iria passar a comemorar o meu aniversário a 1º de janeiro. Pela primeira vez, ambas as partes ficaram de acordo; acharam que eu não devia estar bom da cabeça. “Com um pai daqueles, como é que o rapaz ia sair normal?”, comentavam os nós do clã dos Muradal. “Após tantos casamentos consanguíneos na família da mãe, como é que o menino ia poder ser normal?”, contrapunham os eles do clã dos Santa Marinha.
Vários anos antes de eu ter decidido comemorar o meu aniversário a 1º de janeiro, também tentei neutralizar o trauma dos meus dois nomes. Aos 11 anos, pouco antes de sair de casa para ingressar num colégio interno, comuniquei a ambas as partes que gostaria de ser conhecido simplesmente como Pierre. Tanto do lado de um como de outro clã, isso foi considerado uma brincadeira de criança. Os nós continuaram a chamar-me Bernardo, e os eles lá foram ficando com o seu Toninho. No colégio, porém, passei a assinar Pierre em todas as minhas provas. Os professores logo, logo ficaram intrigados com a coisa, mas durante certo tempo não ligaram. Finalmente, fui chamado ao diretor.
“Como é o seu nome?”, perguntou ele severamente.
“Pierre, senhor”, respondi.
“Quem foi que disse a você que o seu nome é Pierre?”
“Foi o pai do Pierre, senhor.”
“Mas quem é o pai do Pierre?”
“Sou e, senhor.”
Quando viram que não podiam dissuadir-me de ser Pierre, fui convidado a procurar outro colégio. Por fim, encontrou-se uma escola mais progressista, e eu prometi solenemente aos mais velhos que nunca mais voltaria a assinar Pierre. Mantive a promessa. No novo colégio, passei a assinar Vladimir. Felizmente o diretor era razoavelmente compreensivo e deixou passar essa minha fantasia infantil.
Acabei por me chatear do nome compridíssimo que inventara (Vladimir Anonovitch Muradaloff), e voltei a ser, a maior parte das vezes, Bernardo.
A confusão ainda hoje persiste. Metade dos meus amigos me chama Bernardo; a outra metade, Tony. Instintivamente, eu reajo de maneira diferente a cada um. Por exemplo, se a pessoa me chama Bernardo e pergunta que horas são, eu respondo com rigor: “Dez e vinte e sete.” Se me chamam Tony, a resposta é: “Umas dez e meia, mais ou menos.” Não sei por que é que reajo assim; talvez um bom psicólogo o saiba. O pior é que às vezes dou de cara com um antigo colega, que me saúda: “Olá Vladimir!” Há quanto tempo não o via!”

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