segunda-feira, abril 30

O que "seu doutor" nos legou


Fonte : Revista Seleções
Data : Março de 1943
Autora : Mary Medearis

     Foi a campanha para drenar Balck Hollow que levou meu pai ao termo dos seus dias. “Seu doutor”, como lhe chamavam os seus clientes do interior do Arkansas, sabia perfeitamente que seriam sempre vãos  os esforços que fazia para debelar a malária, enquanto os pântanos da região fossem autênticos viveiros dos mosquitos.
     O Black Hollow era o resultado do alastramento das águas de um novo projeto de irrigação. “Seu doutor” não ignorava que a idéia, por que tanto se batia, de fazer executar as obras de drenagem, encontraria tenaz oposição na sede do distrito, por parte de um poderoso grupo político. Mas estava em jogo a saúde da gente, mais ou menos desamparada, daqueles lugares rústicos, e “seu doutor” se esquecia de si mesmo, para entrar em cheio na luta.
     Durante o verão e o outono, que acabavam de passar, arrancara à sua clínica todos os minutos disponíveis, para emprega-los na ação, em que se revelava infatigável. Escrevera artigos, censurando severamente as autoridades sanitárias por fazerem manobras políticas em torno de um assunto como aquele. Fizera desenhos a um tempo cômicos e impressionantes, de Black Hollow, com seus perigosos mosquitos, e os fazia estampar nos jornais. Entrava pela noite em conferências e reuniões sobre o caso; delas saía, não raro, para ficar até o amanhecer numa choupana, no campo, a cabeceira de uma parturiente.
     Em novembro, precisamente na tarde em que o projeto em questão deveria ser posto a votos no senado estadual, Papai, ao chegar em casa para o jantar, não podia ocultar o seu cansaço, e tinha os olhos vermelhos pelas noites de vigília. Meses que passara a pelejar, a um tempo com a malária e com os políticos, tinham-no visivelmente extenuado, que o esforço fora demais na sua idade.
     Como, entretanto, Mamãe se mostrasse preocupada, ele começou a sorrir: - Ponha a comida, Myrtle. Você verá que eu serei outro com o estômago forrado.
     - Diga-me primeiro alguma coisa sobre o resultado da votação, - pediu-lhe Mamãe, ansiosa, é bem de ver, porque o marido alcançasse o merecido êxito.
     - Não posso lhe dizer por enquanto: mas logo que se saiba o resultado, me telefonarão.
     E dizendo isto, Papai puxou e pos sobre os joelhos, as pequeninas Ruth e Melie Kate.
     -
Venham; vamos agora ajudar sua irmã a por a mesa, cantando uma coisinha para ela.
     Bateu os pés no chão, como marcando compasso, e entraram os três alegremente a entoar uma inocente cantiga, enquanto eu ia fazendo o meu serviço.

     O papagaio estava calado no seu canto
     Ele bem sabe o que faz
     Eu peguei numa espingarda, e atirei nele
     Ele chegou, e disse: ó moço, me deixe em paz

     Já estávamos a jantar, quando chegou o meu irmão Roberto. Numa casa de médico da roça, o dinheiro é sempre escasso; de maneira que Roberto, findas as aulas na escola, trabalhava numa loja, a fim de ganhar o necessário para, em tempo, matricular-se no curso pré-médico, sua grande aspiração.
     Papai perguntou-lhe:
     - Você está livre hoje?
     - Sim – respondeu Roberto – Frank (assim se chamava o patrão dele) disse que eu hoje podia vir para casa, e festejar com você a vitória, caso o senado aprove o projeto.
     - Bem. Você e sua irmã fiquem atentos ao telefone. Eu vou ver se dou um jeito na febre do Sam Talbor. Quando voltar, nós veremos se é vinho ou fel que temos de beber.
     - Papai, fique em casa, ao menos esta noite. Você já está tão cansado!
     Ele teve um sorriso tranqüilizador, e, terminando o jantar, observou:
     - Como é que eu vou deixar de ir ver um homem que está com febre de 40 graus?
     - Mas a noite está fria,  - interveio Mamãe. – E você nem imagina como se está vendo no seu rosto a sua imensa fadiga.
     - Sim. Mas Talbor precisa de mim, - respondeu Papai firmemente. – Conservem o lume bem vivo. Lá pelas nove horas eu estou de volta, sentado diante da chaminé.
     Estendendo a mão, apanhou um pedaço de pão de milho. Notei que fechava os olhos involuntariamente, de cansaço. Mas procurava alegrar-nos.
     - Nunca comi bolo melhor que este pão! Ninguém faz isto como sua mãe, meninos!
     Depois que o vimos sair pela porta da frente, o capote desabotoado agitando-se ao sopro do vento, Roberto e eu ficamos na sala de visitas, a ver no jornal da terra, que estava sobre a mesa, um dos últimos desenhos de Papai: representava o Black Hollow, com os seus charcos, mosquitos enormes pousados em ervas mortas, e larvas nadando alegremente entre limos e lodo. Melie Kate e Ruth estavam na cozinha com Mamãe, lavando os pratos.
     Muitos minutos não eram passados, Roberto me perguntou:
     - Você ouviu o carro partir?
     - Não.
     - Pode ser que não tenha podido arrancar, - disse ele. – Esta muito frio lá fora. Frio de gelo.
     Chegou à janela, olhou para o pequeno terreno em frente da casa, banhado então de luar, e em seguida encaminhou-se para a porta, dizendo:
     - Eu volto já.
     Veio-me da cozinha um som alegre de bater de pratos, e o crepitar das chamas na lareira espalhava no ambiente uma nota de conforto. Entretanto, senti em torno a mim alguma coisa, um frio que me fazia tremer.
     Senão quando Roberto abriu a porta:
     - Venha depressa ajudar-me, foi-me dizendo aflito: - Papai teve um ataque do coração.
     À luz da lua, vi Papai curvado, sentado no estribo do auto, com as magras mãos sobre o peito.
     - Dr. White! – murmurou, ofegante.
     - Chamem o Dr. White...Coronária...
     Roberto respondeu-lhe, calmo:
     - Vamos primeiro levar você para dentro, e irei chamar imediatamente o doutor.
     Segurou Papai de um lado, e me pediu para que o segurasse do outro. Naquele breve trajeto, Papai, um dado momento, olhou para mim, e eu vi nos seus olhos a morte.
     Da cozinha, ouvia-se ainda o barulho dos pratos. Mamãe nada tinha visto.
     Melie Kate e Ruth estavam rindo e conversando.
     - Digam a Myrtle, pode ainda Papai articular – Não assustem as meninas.
     Súbito, sentimos que seus braços, com que se apoiava em nós, de um lado e de outro, num derradeiro abraço, se tornaram inanimados.
     Era um mundo que desabava. A campainha do telefone soou naquele mesmo instante: o senado acabava de aprovar o projeto sobre a drenagem de Black Hollow....
     Na manhã seguinte, bem cedinho, começaram a chegar carros do campo. Mal vinha o dia raiando, ouvi, em baixo da minha janela, vozes rudes e passos de animais. Desci a ver o que era.
     Encontrei à porta duas mulheres.
     - Eu sou a mulher de Hank Jarvis, disse à Mamãe uma delas. – Quem deu a notícia a Hank, foi o dr. White. Berta e eu imaginamos que a senhora devia precisar de alguém que ajudasse na cozinha...
     -É bondade da parte de vocês, agradeceu Mamãe.
     - Nós trouxemos pão, explicou Berta. – Ovos também.
     Todo aquele santo dia foram chegando carros e mais carros, alguns de 50 quilômetros e mais, o que significava, naqueles pobres veículos, umas quatro horas de viagem.
     Um velho entregou a Mamãe uma folha de papel. Elas nos leu, em voz alta, parte do que na mesma estava escrito:
   
     Estávamos devendo dinheiro a “seu doutor”, por serviços médicos, e pedimos para pagar por esta forma:

     Eskar Toler: Um alqueire de batata em cada mês, Dezembro, Março, Junho.
     John Whisler: Seis dólares devidos por pneumonia. Manteiga e queijo à ida para o mercado.
     Jake Granther: Cebolas, metade de um porco. Dinheiro quando o algodão principiar a dar.
   
     Mamãe olhou para nós, e eu percebi o que ela estava pensando. Aquelas provas de lealdade e afeição, que dava a gente do campo, eram profundamente consoladoras.
     Uma moça, com olhos de matrona, apresentou-me nos braços um bebê gorduchinho: “O nome dela é Mary Kate Ruth.”
     Mary, Kate e Ruth eram exatamente os nossos nomes, meu e de minhas irmãs – as três filhas de “seu doutor”. Ele havia acolhido em sua casa aquela jovem mãe, cujo estado já lhe não dava tempo de chegar ao hospital. Lembro-me ainda. Era noite. Eu ajudei a preparar a mesa na sala de visitas, onde ela devia deitar-se, e Mamãe lhe seriu de enfermeira. “Esta mulher não gritou uma só vez.” Papai me disse depois. “Olhava para sua mãe, e dizia: - Não se incomode, minha senhora. Eu não acordarei seus filhos! – Quando as dores eram fortes, os ossos das mãos quase lhe rompiam a pele, de tanto agarrar-se à mesa, mas não deu sequer um gemido.” A mesa ainda guarda os sinais das unhadas que a pobre lhe aplicou, na sua luta para suportar silenciosamente o sofrimento.
     Fui para a sala. Em torno da lareira estavam homens da roça. Quase todos fumando cachimbo. “Vê este dedo?” disse um deles. “Eu não tinha mais ele aí, se não fosse o “seu doutor”. E contou, na sua linguagem, o que lhe tinha acontecido com o dedo.
     Jake Granther tinha um dos pés guarnecido por um aparelho. “Seu doutor” ia tirando da minha perna o raio da bala, e me ensinado uma trova,” disse Jake, e prosseguiu pensativamente, depois de ter dado uma cusparada no fogo: “Homem bem educado, tinha de ser como aquele! A trova falava assim:

     O fumo é coisa ruim. E eu gosto dele. Ele faz a gente ficar magro, ele estraga a saúde da gente, uma boa desgraça é o que ele é. E eu gosto dele...”
     Enquanto escutava aqueles homens simples, subia do meu coração um canto alviçareiro, porque não era um canto de tristeza, senão um canto de amor. Amor por aquela boa criatura que tinha sido meu pai9. amor por aquelas terras de sertão, a que ele consagrara sua vida. Amor pelas unhadas que deixaram o seu traço na mesa: pelo pão e pelos ovos que vieram, a cavalo, de tão longe, e Mamãe guardara na cozinha.
     Que importava que meu pai não houvesse deixado dinheiro, para que eu estudasse música no Conservatório, ou Roberto viesse a fazer seu curso de medicina? Iríamos de qualquer modo, para a frente. O legado, que dele recebíamos, era a mais preciosa das heranças: a independência, a integridade, e a afeição e a confiança da gente sã e sincera do campo, que nele tivera um servidor dedicado.
       

  
  
  
  

6 comentários:

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