Fonte : Revista Seleções
Data : março de 1943
Autor : Capitão Lauro Reis
“Fomos
torpedeados!”
O capitão Lauro Moutinho dos
Reis, oficial de artilharia do Exército Brasileiro, fazia parte da Unidade que
viajava no Baependí para o Nerdeste, quando, na noite de 15 de agosto de 1942,
foi abruptamente torpedeado na altura da fronteira dentre Bahia e Sergipe, a 20 milhas da costa.
Testemunha presencial do
fato que, ao lado dos outros torpedeamentos da mesma ocasião, suscitou a onda
de revolta nacional que levou o Brasil à guerra contra as potências do Eixo, o
Capitão Lauro Reis dá-nos aqui um relato bem vivo do dramático episódio.
Deixamos o porto de Salvador, Bahia, às
sete horas da manhã, rumando para o Norte. Do Rio de Janeiro até ali o mar
tinha estado calmo. Agora se apresentava picado, espumoso, com fortes marolas,
e o velho Baependí arrastava-se, moroso, balançando desagradavelmente.
O vapor ia repleto – umas trezentas e
cinqüenta pessoas, incluindo a tripulação e uma unidade do Exército, cujos
componentes – oficiais e soldados - iam
acompanhados de suas famílias, algumas com muitas crianças.
Como esse dia – 15 de agosto – era o
aniversário natalício do comissário de bordo, um excelente homem, o jantar foi festivo,
a orquestra tocou animadamente e a alegria reinou a bordo até bastante tarde.
Enquanto no salão se dançava, lá fora na popa, os soldados – quase todos
cariocas – trepados em canhões e grandes caixas, reunidos em grupos, tocando
pandeiros e batendo em latas, cantavam seus sambas à moda do morro...
Noite fechada, as luzes todas apagadas,
navegávamos a umas 20
milhas da costa, quando súbito um tremendo estampido
sacode violentamente o velho barco. Quebram-se as vidraças; o madeiramento
range, estala, racha, e, arremessados por forças invisíveis, voam estilhaços de
vídeo e madeira para todos os lados. Caem as primeiras vítimas, e há diversas
pessoas com o rosto sangrando, devido a ferimentos provocados por fragmentos de
vidro.
As máquinas param, o vapor altera o rumo
abruptamente, e somos jogados pela inércia, com força, para a frente.
O primeiro instante deixa todas as pessoas
imóveis de espanto, a respiração suspensa, as fisionomias pálidas e
angustiadas... Não há gritos, nenhum pânico. Percebe-se em cada um o esforço
mental para entender o ocorrido, para buscar uma solução, pressentindo a
gravidade do terrível momento...
Estou no vestíbulo, de onde partem as
escadas para o deck superior e para os camarotes de baixo. Tomado de surpresa,
tenho imediata intuição do sucedido: fomos
torpedeados” Logo a seguir, ouço o apito surdo do navio, pedindo socorro...
O Baependí começa a adernar.
Corro ao meu camarote ali perto, empurro a
porta, que felizmente não ficou emperrada, apanho rápido o meu salva-vidas, e
saio.
Há muitas pessoas no vestíbulo; umas,
principalmente mulheres e crianças, paradas, como se esperassem que uma
providência alheia as salve; outras caminhando febrilmente, na direção em que
julgam poder encontrar salvamento. O navio aderna mais e mais; só podemos
andar, agora, agarrados à parede.
Alguns descem com dificuldade as escadas
para os camarotes inferiores, em busca de salva-vidas, ou para se reunir às
suas famílias; infelizmente, para não voltarem mais... Ficarão na companhia dos
que nem sequer conseguiram sair dali.
Vejo tudo isso de relance, e, ainda
enfiando o cinto salva-vidas, subo a escada para o deck de cima, em busca da
minha baleeira; agarrado ao corrimão, chocando-me com pessoas que descem,
aturdidas, estou quase no alto, quando um segundo torpedo explode, abalando
fragorosamente todo o navio. O corrimão, ao qual me agarrava, fica feito em
frangalhos, e rolo da escada, de costas, aos trambolhões, até a porta do
refeitório, de onde saíra. Entre o primeiro e o segundo torpedo, não decorreram
mais de trinta segundos.
As luzes se apagam; esbarramos uns nos
outros, desorientados, no meio de profunda escuridão. O navio aderna
brutalmente, já sendo impossível, agora, andar de pé.
O segundo torpedo foi o tiro de
misericórdia. O Baependí agoniza... Percebo que o afundamento vai ser rápido.
Esforço-me para sair do interior. Um cheiro sufocante e enjoativo, proveniente
da explosão, invade tudo.
Tateando, com grande esforço consigo
agarrar-me à escada, e, de rastos, segurando-me nas saliências, vou subindo
devagar.
Na escuridão, apenas distingo, numa
pequena claridade vinda de fora, o contorno de uma porta, ao fim da escada que
tento subir. É preciso atingi-la a todo custo, porque senão eu afundarei dentro
do navio. Mais um esforço, e consigo chegar.
O navio, nesse momento, está quase de
lado; o que era parede passou a ser chão. Atravesso aquela porta com os
movimentos de quem, pela abertura do teto, passa para o forro de uma casa.
Alcanço a baleeira em frente à porta.
Presa aos turcos, num emaranhado de cordas, alguns marinheiros tentam
solta-los, procurando desvencilhar cordas, febrilmente.
Mas é inútil; o Baependí continua a
afundar vertiginosamente” As ondas revoltas quase nos atingem, e ouço, bem
perto, os gritos pungentes dos que já lutam com elas.
Compreendo, então, que devo atirar-me
imediatamente ao mar, para não ser arrastado pelo turbilhão que faria a massa
do navio ao submergir. Mas já é tarde demais porque, estando ele quase
horizontal, se eu der um salto, cairei, conforme o lado, sobre o casco ou sobre
o convés. Ouço ainda o apito tenebroso do vapor, um apito surdo e contínuo,
agonizante, de estertor.
As águas me envolvem violentamente,
jogando-me de encontro a uma parede. Depois... sinto que mergulhamos,
arrastados pelo navio.
Penso, conformado, na morte: deste
mergulho não voltarei, certamente!
Não perco o raciocínio, nem me deixo
dominar pelo desespero. Antes me conservo calmo, resignado, enfrentado o
desfecho da vida. Continuo a mergulhar, a mergulhar... Quantos metros? Nem sei!
Sinto nos ouvidos o barulho forte e característico das bolhas de ar, numa
escala cromática extravagante, que vai num crescendo do grave para o agudo, à
proporção que me aprofundo nas águas... A falta de ar já me tortura; começo a
engolir água...
Súbito, porem, paro de mergulhar, e
percebo que vou voltando. Mas sou, então, violentamente imprensado entre dois
volumosos fardos, e tenho a sensação de que vou ficar esmagado.
Inexplicavelmente, não sinto nenhuma dor, por felicidade, fico de novo livre, e
continuo a voltar, aos trancos, à superfície, recebendo pancadas pelo corpo,
agora mais rápido – até que, de repente, dou um salto, saindo-me fora da água o
tronco todo, tal o empuxo.
O navio está completamente submerso.
Imagino que não dever ter levado a afundar-se mais de três ou quatro minutos,
tornando impossível qualquer providência de salvamento, ou a descida de
qualquer das baleeiras.
O mar, violentíssimo, encapelado, está
coberto de destroços, e, não sei como, ainda caem paus de todos os lados, como
estilhaços.
Ouço gritos terríveis, angustiosos, de
socorro, e vejo homens, mulheres e crianças se afogando em torno de mim.
Nado um pouco e me agarro a uns paus que
flutuam, e que as fortes ondas me arrancam logo das mãos; imediatamente me
seguro noutros, mas também não consigo suste-los, e fico nesse jogo, pulando de
uma tábua para outra, durante algum tempo.
Reparo que há sobre as águas duas luzes avermelhadas,
como archotes, a iluminar aquela cena macabra: são bóias de iluminação, que se
acendem automaticamente, ao contato com a água.
O mar limita-me a visão, e só quando me
elevo numa onda melhora o meu horizonte. Em dado momento, avisto com surpresa
um projetor lançando seu feixe luminoso sobre o local do sinistro: firmo o
olhar e diviso, iluminado pelas luzes quem dançam na água, o perfil do
submarino assassino, bem próximo de nós, contemplando os resultados da sua
bárbara missão! Em seguida, perco-o de vista...
Estou agora junto de uma grande tábua
branca, com aberturas que me parecem janelas: consigo com facilidade deitar-me
nela, de bruços, e me sinto mais bem acomodado. Pelos menos descanso um pouco.
Mas me agarro com todas as forças, para que as ondas não me arranquem dali.
Perto de mim, alguém grita em desespero,
já quase a perder o fôlego: - “Não posso mais, vou desistir...”
Animo o companheiro, chamando-o para junto
de mim, e isso me dá mais ânimo! Ele se aproxima, e com algum esforço se agarra
à minha tábua: vem ofegante, exausto. Trocamos algumas palavras. É um
tripulante do Baependí.
As ondas violentas e o forte vento começam
agora a espalhar náufragos e destroços, os gritos dispersos de socorro chegam
cada vez de mais longe. Somos também impelidos para longe do local do sinistro,
arrastados naquela tábua, em rumo desconhecido.
Conjugando nossos esforços, examinamos o
mar em todas as direções. Nada! Provavelmente nenhuma baleeira pode ser lançada
ao mar. Nossa salvação é provisória, sem dúvida.... E ficamos vogando ao sabor
de ondas por um tempo difícil de estimar; talvez meia hora, uma hora...
Ouvem-se agora menos gritos de socorro; a
maioria sucumbiu, desesperada!
Mas repentinamente divisamos uma silhueta
que não é de um destroço, passando defronte das bóias de iluminação, já bem
longe.... Parece-nos uma baleeira... Dentro, um vulto, de pé... Não resta
dúvida, é uma baleeira! Mas está muito distante. Para alcança-la, teríamos que
nadar contra o vento e as ondas, e, cansados como estamos, isso não nos parece
empresa fácil.
Começamos então a gritar, com todas as
forças dos nossos pulmões. Grito, grito! Lembro-me de gritar meu nome, e o faço
diversas vezes. Lembrança talvez salvadora: ouvimos pouco depois, uma resposta
que nos pareceu “espera”... Graças a Deus, tinham-nos ouvido, e remam em nossa
direção”
Foi o primeiro alento, a primeira sensação
de poder sair com vida daquela pavorosa catástrofe.
A baleeira se aproxima.... Abandonando a
benfazeja tábua, damos umas braçadas, lançam-nos uma bóia presa a uma corda, e
somos içados para bordo, onde encontro dois tenentes, dois sargentos e três
soldados, da minha unidade. Abraçamo-nos, comovidos, mas poucas palavras
trocamos. Pensamos na sorte dos outros camaradas, e não nos conformamos com a
idéia de que somos os únicos sobreviventes.
É talvez esta a única baleeira que escapou
ao desastre, arrancada dos turcos pela violência da explosão.
Recolhidos mais alguns náufragos, somos ao
todo vinte e oito. Entre eles, há uma moça que, mal explodiu o torpedo, se
lançou resolutamente ao mar, nadando, agarrada a um pequeno destroço, durante
mais de uma hora!
Mas em que direção ficará a costa? Não
podemos orientar-nos com segurança, pois mal se vêem as estrelas, e a escuridão
impede-nos de consultar a única bússola, que corria de mão em mão, inutilmente.
Mas entre os náufragos está, felizmente, o
piloto do Baependí. Recobrando as forças, ele resolve com simplicidade o
problema de navegação, mandando “remar na direção do vento, pois o mesmo
soprava para terra.”
Somente na baleeira noto que estou ferido.
O sangue jorra abundantemente do meu rosto, e, levando a mão à face direita,
percebo que sofri uma fratura. Mas não sinto nenhuma dor.
A pequena embarcação joga como uma casca
de noz naquele mar agitado, e de vez em quando uma onda mais forte invade-a; um
grande rombo da proa aumenta a nossa inquietação: é preciso baldear
continuamente, tal a quantidade de água que entra.
O vento é cortante, sentimos um frio
tremendo, uma sede desoladora, e o enjôo apodera-se da maioria.
Pouco depois avistamos, não muito longe,
um navio iluminado. Ficamos hesitantes; valerá a pena remar na sua direção?
Alcançá-lo-emos? Desistimos da idéia, o que foi providencial, pois cerca de uma
hora depois, ouvimos o eco de uma tremenda explosão, que nos pareceu um trovão
longínquo: o navio que passara por nós – o Araraquara,
soubemos depois – foram também torpedeado!
Navegamos assim, impelidos pelo vento e
pelos remos, durante toda a noite – que nos parece interminável. Os rapazes,
incansáveis, se revezam nos remos e os outros no balde de água.
Ao clarear o dia, ainda na penumbra, temos
uma explosão de contentamento: a uns dois quilômetros de nós, percebemos a
faixa branca de areia de uma praia!
A praia, desabitada, é formada por vastas
dunas de areia, onde os pés se enterram, agravando nosso cansaço. Caminhamos
algum tempo, seguindo uma pequena trilha, até avistarmos uma cabana onde apenas
encontramos água.
Felizmente, indicam-nos uma picada que vai
ter a uma povoação. Andamos até o meio-dia, ou antes, arrastamo-nos, pois há
diversas pessoas feridas, e outras esgotadas. Por sorte encontramos muito côco
da Bahia, cuja água saborosa bebemos sofregamente.
Ao chegarmos à povoação, todas as portas e
janelas se batem, violentamente” “Que teria havido?” Consultamo-nos
surpresos... Estamos tão embrutecidos, que nos custa a compreender: a nossa
nudez quase total ofendeu o pudor da gente da terra! Um parlamentar, que
enviamos em trajes mais decentes resolve a situação, e recebemos algumas roupas
usadas, que nos permitem improvisar tangas.
Depois de alimentados, seguimos de canos
para Estância, no estado do Sergipe, termo de nossas provações.
Ali soubemos, mais tarde, terem chegado à
praia, numa pequena balsa de madeira, mais oito náufragos do Baependí. Trinta e
seis sobreviventes – eis o que restava!
Quase todos os nossos camaradas tinham
sido tragados pelas ondas. E quando um médico, náufrago também, nos relatou o
episódio da morte do mais jovem dos nossos companheiro de armas, não pudemos
conter as lágrimas.
Ao atirar-se ao mar, sem salva-vidas,
certo do fim que o aguardava, o tenente Assunção lançara em voz vibrante este
grito derradeiro de patriotismo:
“Viva o Brasil!”
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