sexta-feira, abril 27

O cão que soube esperar



Fonte : Revista Seleções
Data : Marco de 1943

     Se gentleman é aquele que ao mesmo tempo sabe ser gentil e muito homem -  então não resta dúvida que o meu mano Jim fazia jus ao epíteto. Não se pense, pois, que o Jim não sabia ser rijo quando fosse preciso: duro ele o era! Mas em se tratando de seres que merecessem gentileza ou bondade, especialmente mulheres, crianças e cachorros – Jim era a verdadeira encarnação da gentileza. É do Jim e do nosso cachorro que lhes quero falar agora.
     Há alguns anos o Jim veio viver na nossa companhia, e Mr. Bones, o cão, tornou-se logo o seu fiel companheiro. Foi o que se chama ver-te e amar-te! O Jim tinha qualquer coisa aos olhos dos cães. Toda vez que ele saía em viagem de negócios, Mr. Bones queria logo acompanhá-lo. E o Jim de dizer: “Tenha paciência, Mr Bones. Eu volto, e para a próxima vez hei de levar você comigo.”
     Às vezes Jim chegava a ficar ausente uma semana ou mais. E Mr. Bones esperava, cheio de paciência. Bem sabia o que “a próxima vez” significava, porque Jim nunca faltava a uma promessa. Assim que regressava, dizia logo: “E então, Mr Bones, que tal? Esperou com paciência? Então venha daí. Agora é a nossa vez.” E lá iam juntos para uma longa jornada. Quase se pode dizer que Mr. Bones vivia só para essas excursões na companhia do seu grande amigo.
     Quando Jim ficava por casa, depois do jantar, Mr. Bones ia ao primeiro andar todas as noites, trazia os pantufos de Jim para baixo, depunha-os no chão, em frente à cadeira do dono, e ali ficava até serem horas de ir para a cama, deitado, com o focinho em cima de um pé de Jim.
     Chegou a grande doença  final de Jim, e disse-me ele: “Este coração já não vai longe. É questão de dias... O pano vai cair breve. Bom, eu não tenho razão de queixa. A vida foi tão boa para mim, Bill...”
     No próprio dia em que havia de morrer, Jim me disse: “O cachorro vai sentir a minha falta. Deixe-o vir aqui ao pé de mim.”
     Mr. Bones entrou no quarto, e olhou para Jim com uma expressão de ansiedade no olhar. O dono disse: “Tenha paciência, Mr Bones. Eu volto, e para a próxima vez hei de levar você comigo...”
     Cá na família é hábito levar as coisas com calma. Jim tinha sido meu irmão durante cinqüenta anos. Perdê-lo agora, apesar de muito doloroso, ainda não era um preço excessivo a pagar pelo que a sua amizade me dera: assim eu me consolava. Os pequenos, de começo, é que não se resignavam, porque Jim tinha sido para eles um grande tio camarada. Mas as crianças esquecem depressa as suas mágoas...
     E Mr. Bones? Ora, Jim tinha dito: “Tenha paciência, Mr Bones” – e o cachorro pôs-se a esperar, cheio de coragem. É bem verdade que Jim se estava demorando muito, muito mais do que de costume: mas promessa que ele fizesse era sagrada para o cão. Alem disso, Mr Bones tinha levado para o caixote onde dormia, na cozinha, os pantufos de Jim.
     Correram cinco anos. Minha mulher e eu estávamos uma noite sentados a ler na sala. A casa estava calma e silenciosa. Súbito, deitado no chão ao lado da cadeira de Emília, Mr Bones acordou e começou a abanar a cauda vivamente. É sabido que os cães ouvem coisas que escapam ao nosso ouvido. Pusemo-nos à escuta, mas não ouvimos passos, ruído algum lá fora.
     E a cauda – pam, pam, pam – a bater outra vez contra a perna da cadeira... Então, um bocado enferrujado, porque os anos eram muitos, Mr Bones se levantou e deixou a sala. Um minuto depois voltava com os pantufos de Jim nos dentes, e depunha-os em frente da cadeira onde o dono costumava sentar-se: pousou neles o focinhos, e caiu de novo a dormir.
     Seria a rajada de recordações que me trouxe à memória a vista daqueles chinelos, ali no seu lugar de outrora? O certo é que pareceu que a sala se enchia de repente do velho calor de bondade de outros tempos. Emily disse com doçura:
     “Jim era bom... A gentileza em pessoa.” E acrescentou: “Acho que vou me deitar. E você também deve vir. Já leu demais esta noite. Mas acho melhor não acordarmos o cachorro, coitado. Vamos deixar ele dormir aqui esta noite.”
     Lá estava na manhã seguinte, exatamente como o tínhamos deixado: a cabeça entre as patas, o focinho em cima dos pantufos do dono. Mas alguma coisa parecia dizer-nos, logo ao vê-lo, que Mr Bones esperara quanto podia: adiante dele, infinda, calorosa de camaradagem, desenrolava-se a jornada alegre e derradeira do cachorro que soube esperar...
                       
  
  
  
  

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