terça-feira, junho 5

Barco da vida

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 2002
Autor : John Dyson

Almas perdidas e desfiguradas encontram aqui sua última chance

O homem magro de cabelos curtos e óculos de aro de metal pára na ponte de comando do Anastasis. Olha por um momento o porto caótico e dilapidado de Cotonu, na República de Benim, onde o velho navio transformado em hospital reluz como uma ave aquática branca ao sol da África ocidental. O homem então respira fundo e se prepara para a difícil tarefa à sua frente.
O Dr. Gary Parker desembarca e se dirige a um estádio próximo. Do lado de fora, cerca de 3 mil pessoas, de expressão triste e aflita, encontram-se de pé, sentadas ou deitadas no fumegante calor equatorial esperando por ele. São almas perdidas da África – pessoas desfiguradas por doenças, acidentes ou deformidades congênitas. O cirurgião bucomaxilofacial pode ser sua última esperança.

Angelle Koffi fazia comida para vender na beira da estrada. Mas os fregueses eram poucos. As pessoas achavam que ela era amaldiçoada e se afastavam. Um tumor do tamanho de uma manga cresceu no rosto de Angelle, alargando-lhe o nariz e torcendo-lhe a boca. Também invadiu a garganta, dificultando sua respiração.
Até os parentes que dividiam com ela a casa evitavam a órfã de 24 anos, que dormia numa cabana isolada. Na rua, as pessoas fugiam dela. Assim, Angelle procurava sair só à noite, com um xale cobrindo-lhe a cabeça. Às vezes, rezava pela morte, que a livraria do sofrimento e da zombaria.
Apenas na igreja encontrou alguma esperança – e, num dia de setembro de 2000, um visitante trouxe a grande notícia: “O navio branco está chegando!” Era uma chance de cura.

No estádio, Parker começa a examinar a longa fila de pessoas aptas à cirurgia, pré-selecionadas entre os milhares do lado de fora. Ele tenta não deixar os olhos suplicantes interferirem em seu julgamento, mas a aflição daquelas pessoas pesa em seu coração. O cirurgião formado pela Universidade da Califórnia precisa recusar um em cada três candidatos, por apresentarem formas avançadas de tuberculose, Aids, anemia ou outras doenças. Estão fracos demais para sobreviver à cirurgia. Sua recusa provavelmente também significa uma sentença de morte.
Perto do fim do dia, uma mulher magra de cabeça baixa se aproxima dele com o rosto coberto por um xale. Parker, que já viu toda sorte de deformidades, retira o pano com cuidado. O rosto virado para ele é medonho, desfigurado por um tumor imenso. Mas é operável. E ele a escolhe para cirurgia.

Os navios de Misericórdia nasceram de um sonho que Don Stephens acalentou desde os 19 anos, ainda um menino do interior, no Colorado. Ele estava servindo como voluntário da organização Jovens com uma Missão, nas Bahamas, e viu doenças tirarem vidas que poderiam ser facilmente salvas pela medicina moderna.
Em 1978, já como diretor regional da organização na Suíça, Stephens levantou 1 milhão de dólares para comprar um navio italiano de 522 pés e nove pisos aposentado da rota ao Extremo Oriente.
Com uma equipe de voluntários recrutada em igrejas, ele e a mulher passaram três anos na Grécia cuidando da adaptação do navio, rebatizaram-no Anastasis (“ressurreição”, em grego) e rumaram para Los Angeles. Dali, começaram a fazer viagens pelo Pacífico com o intuito de aliviar o sofrimento de vítimas de desastres. Em pouco tempo. Stephens havia lançado uma frota de navios hospitais.
Gary Parker ficou sabendo da organização em 1984 e se apresentou como voluntário. Havia crescido em Los Angeles, filho de um engenheiro aeronáutico, e se especializara em cirurgia bucodental. Motivado pela fé cristã, Parker estava determinado a ajudar os pobres. Em 1986, um terremoto devastador no México lhe deu a oportunidade, e ele tomou um avião para auxiliar o trabalho dos Navios de Misericórdia na catástrofe.
Parker esperava encontrar uma equipe de colegas cirurgiões. Mas se viu trabalhando sozinho, com uma sala de espera cheia de desesperados com deformidades faciais, a maioria dos quais crianças. Pretendia passar três meses – 15 anos depois ainda está a bordo.
O navio era a resposta a seu sonho de ajudar os pobres: podia levar equipamentos médicos vitais a portos de países sem instalações adequadas. Suas habilidades jamais deixaram de ser necessárias. Mas houve sacrifícios pessoais.
Clinicando em Los Angeles, Parker poderia estar estabilizado financeiramente. Em vez disso, sobrevive levantando fundos com amigos e grupos de igreja, e pagando 630 dólares mensais para viver a bordo do Anastasis com a mulher, Susan, e dois filhos pequenos. E isso é mais do que gratificante. “Os amigos dizem que somos loucos, mas felicidade não é só um bom salário”, garante ele. “Aqui estou mudando vidas, e não há mais ninguém para fazer isso. Em casa, eu só estaria mudando aparências.”
A maioria das instituições de caridade já se daria por satisfeita se conseguisse gastar 40% ou menos das despesas totais em administração e levantamento de fundos. Em 2000, a Navios de Misericórdia gastou apenas 22% nesses itens. Operações heróicas de milhares de dólares são realizados por uma fração de seu custo. Embora a esquadra não receba financiamento governamental, ela funciona sem dinheiro porque seus membros não recebem pagamento. E mais: todos – capitão, cozinheiros, enfermeiros, professores e até o próprio Stephens – devem pagar comida e alojamento para trabalhar no navio.
Durante a estadia de sete meses do Anastasis em Cotonu, Parker e a equipe fizeram até oito cirurgias de catarata por dia, realizando 471 operações oculares e 929 outros procedimentos cirúrgicos. Mais 3 mil pessoas tiveram tratamento dentário e 5 mil foram atendidas em clínicas de aldeias visitadas por Land Rovers brancos transportando profissionais de saúde. Um grupo de operários ergueu um centro comunitário com armazéns e maternidade. Nos fins de semanas, mulheres e crianças passavam o tempo livre pintando o interior de uma cadeia e visitando órfãos.
Como principal médico do navio, Parker chega a operar 12 horas por dia, mantendo três salas de cirurgia em atividade com uma sucessão de anestesistas, cirurgiões e outros especialistas voluntários que ficam algumas semanas de cada vez. As operações mudam vidas: o bebê com uma fenda no palato por onde vaza a comida; o pastor mudo que durante 30 anos sobreviveu esfregando mingau líquido entre os dentes porque não conseguia abrir a boca; a senhora com apenas um buraco onde deveria estar o nariz – resultado de uma infecção semelhante à gangrena.
Como presidente, Parker também se envolve na busca de combustível, na interminável luta contra canos rompidos e baratas, na política de boa vizinhança com as autoridades de cada país e nos cuidados dispensados aos 363 membros da equipe vinda de 39 países, todos voluntários como ele.
A família fica alojada em duas cabines contíguas no piso superior. Na hora das refeições, Susan pega a comida no salão comunitário e serve à mesa deles. As crianças vão à escola no convés a ré, onde a área das brincadeiras é cercada por redes. “Para nós, as férias perfeitas seriam numa casa com um grande jardim e um gramado limpo”, brinca Susan.
Como ninguém é pago, o espírito do “eu posso” toma conta do navio. Todo mundo faz sua parte e um pouco mais. Enfermeiras se revezam na limpeza da casa de máquinas, e contadores servem a comida. Quando vem o chamado para ajudar no carregamento, Parker se encontra entre os voluntários. A tripulação é um banco de sangue ambulante, as pessoas se apresentam na hora.

Espreitando por trás do xale que lhe esconde o rosto deformado, Angelle passou pelos adolescentes do navio que jogavam basquete no convés. Havia chegado o dia de sua cirurgia. “Bem vinda ao navio branco”, disse uma enfermeira, pegando sua mão.
O médico seria o homem alto que a tinha escolhido entre a multidão. Ela confiava nele para a extenuante operação, que levaria dez horas.
Quando Angelle enfim acordou, estava com medo. O rosto parecia duro e pesado. Será que a cirurgia então havia fracassado? A enfermeira lhe entregou o espelho. Nervosa, ela o ergueu: havia curativos, pontos e inchaço, mas o tumor não estava mais ali.
O dia inteiro ela inspecionou o rosto, estremecendo ao abrir o novo sorriso. Quando Parker foi vê-la, ela tomou-lhe a mão. “Nada posso lhe dar além de minha gratidão”, falou com a ajuda de um intérprete, e o sorriso torto iluminou o navio.
Em março de 2001, uma jovem segura de si desceu graciosamente a ponte de comando. No bolso da túnica azul, um documento explicava por que a fotografia da carteira de identidade não correspondia mais a seu rosto. Quando ela chegou em casa, ninguém a reconheceu. O pastor a abraçou, fazendo-a girar. “Angelle, você está bonita agora!”, exclamou.
Antes que o Anastasis terminasse a estadia em Cotonu, já se arranjavam as paradas seguintes do navio: Serra Leoa e Gâmbia. De 1986 até agora, a Navios de Misericórdia já enviou embarcações a quase 70 portos, em 41 países, oferecendo ajuda médica a cerca de 4 milhões de pessoas. Atualmente, 14 nações, da Nigéria às Filipinas, anseiam pela visita de um Navio da Misericórdia.
Um dia, pouco antes da partida, Gary Parker estava costurando a fenda palatina de um bebê quando a enfermeira lhe contou das boas vindas de Angelle em casa. “É para isso que trabalhamos”, animou-se ele, abrindo um grande sorriso. “Angelle voltou a viver.”
Agora ela também pode sorrir.

Para mais informações sobre a organização Navios de Misericórdia, visite o site www.mercyships.org

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