segunda-feira, junho 11

Aula de direção

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 2004
Autor : Anthony Head

A viagem de carro com minha filha tomou um rumo inesperado

Eu e minha filha, Sidney, viajávamos de Los Angeles para o Grand Canyon num minúsculo carro alugado quando tudo aconteceu.
Estávamos na estrada havia quase oito horas sem incidentes. A noite estava nublada, tranqüila e coberta de névoa – linda. Exatamente como eu imaginara que seriam as noites no Arizona quando comecei a planejar a viagem. Estávamos a apenas 20 minutos do hotel quando atropelei o cervo.
Como um fantasma à luz do luar, ele surgiu de relance, saindo do abrigo de um bosque na encosta e vindo na direção dos faróis.
Depois de frear derrapando por uns 30 metros – e depois de começar a respirar novamente -, ouvi Sidney perguntar do banco traseiro: “O que aconteceu?” Aquelas foram as primeiras palavras que eu a ouvia pronunciar em quatro horas.

Nossa viagem aconteceu nas férias de fim de ano de Sidney, que marcam a metade da 6ª série. Não viajávamos assim de carro fazia mais de dois anos e aquelas provavelmente seriam nossas últimas férias juntos – só pai e filha – antes de eu me casar de novo.
Na última vez em que pegamos a estrada, Sidney tinha 9 anos e tagarelara durante toda a viagem, sobre a escola, filmes e livros. Agora ela estava com quase 12 anos e hesitava em revelar seus pensamentos. Ainda falava durante horas, mas não comigo. Com os amigos e, sobretudo, pela Internet.
Portanto, depois de carregarmos o carro com as bagagens, ela pulou no banco traseiro, colocou os fones de ouvido e enterrou a cabeça num livro. Eu havia imaginado as longas conversas que teríamos sobre seu futuro.
“Aqui vamos nós”, eu disse, mas Sidney não ouviu uma única palavra em seu ninho no banco traseiro. O estoque de CDs prendia sua atenção.
Mesmo quando paramos para almoçar no Lago Havasu e ver a Ponte de Londres, ela permaneceu quieta. Expliquei como a magnífica ponte de pedra que costumava atravessar o Rio Tamisa em Londres tinha ido parar no oeste do Arizona, mas seus olhos estavam colados num grupo de adolescentes que dançava e gritava. Ela seria capaz de sair da própria pele para se juntar a eles.
De volta à estrada, de quando em quando eu a olhava pelo retrovisor e a via cantando discretamente ou refletindo sobre o livro. Quando surpreendia meu olhar, perguntava: “O que foi?”
A distância que separava os bancos dianteiro e traseiro do carro parecia tão grande quanto um abismo.
Peguei a Arizona 64, um trecho tranqüilo de auto estrada que levava direto ao hotel. Os pinheiros da floresta de Kaibab se enfileiravam ao longo da estrada como mudas sentinelas. De vez em quando a lua e um punhado de estrelas brilhavam através das nuvens. Meus sentidos se elevaram com a beleza ao redor. Diminuí a velocidade.
Foi então que, daquele bosque escuro, o cervo de repente saltou diante do carro. O impacto acordou Sidney.

O carro rodava lentamente enquanto procurávamos algum sinal do cervo na estrada e na floresta, mas nada se movia na escuridão.
Devo ter ficado murmurando sobre o que fazer, pois Sidney perguntou: “Você está mais preocupado com o cervo ou com o carro?”
Olhei pelo retrovisor e vi o rosto dela. Era uma pergunta sincera.
“Com o cervo”, respondi, lembrando-me de que havia recusado o seguro da locadora.
Se o carro ainda estava funcionando, e incrivelmente estava, e não estávamos machucados, minha preocupação se voltava para o cervo.
Sidney deve ter percebido que eu me perdia em meus pensamentos na tentativa de elaborar o que estava acontecendo. No entanto, fui trazido de volta à realidade ao sentir sua mão se estendendo na escuridão, atravessando o abismo de nosso pequeno carro e apertando meu ombro. Levei uma hora inteira para vencer os vários quilômetros que faltavam, mas sua mão permaneceu ali até chegarmos ao hotel.
Depois de nos registrarmos, fomos verificar os prejuízos do carro. O espelho do motorista havia sido arrancado do suporte, o pára-brisa tinha uma aparência gótica com sua teia de vidro rachado e um farol dianteiro havia sido estilhaçado. Praticamente todo o lado esquerdo do carro estava amassado. Retirei do batente da porta um chumaço de pêlos que tremulava na brisa fria.
Estaria mentindo se dissesse que o restante do tempo que passamos juntos foi o que eu havia imaginado para nossas férias. As ligações para seguradora, locadora de carros e administradoras de cartão de crédito acabaram com qualquer diversão a que eu teria direito. Sidney, porém, passou grande parte da viagem de volta empertigada no bando da frente, procurando cervos pela área e curvando-se para buzinar em intervalos de 20 segundos. Conversamos mais sobre banalidades antes que ela retornasse de mansinho para o banco traseiro. Mas eu sabia que ela estava lá comigo dessa vez. É incrível como a graça pode ser alcançada nos lugares mais estranhos; basta você abrir os olhos e ver.
Sei que o medo e a culpa, além da imagem daquele cervo rompendo a névoa e surgindo à luz dos faróis, ficarão para sempre impressos em minha memória. Mas também guardarei comigo a sensação reconfortante da mão de Sidney em meu ombro. Cheguei a pensar que ela estava fugindo de mim e que eu a havia perdido. No entanto, ela estava lá o tempo todo, tão real quanto seu reflexo no retrovisor.

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