quinta-feira, junho 7

Mente tirana

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 2002
Autor : Mark Bowden

O mundo distorcido de Saddam Hussein, o presidente com 100% de aprovação.

O tirano precisa se esconder para dormir. Passa de um esconderijo a outro, variando locais e horários. É muito perigoso ser previsível e, sempre que cerra os olhos, seu punho de ferro cede. Conspirações se solidificam nas sombras. Durante essas horas, precisa confiar em alguém e, para o tirano, não existe nada mais perigoso do que confiar.
Saddam Hussein, presidente do Iraque, marechal de campo de seus exércitos e “Grande Tio” de todos os seus povos, desperta por volta das três da manhã, depois de apenas cinco ou seis horas de sono. Desperta e vai nadar. Todos os seus numerosos palácios tem piscinas. A água é símbolo de riqueza e poder em um país do deserto, e Saddam a espalha por toda parte – em chafarizes, piscinas e regatos internos.
Nadar o mantém em boa forma física. Isso satisfaz sua vaidade, que é desmedida. A boa forma, porém, é vital por outras razões. Ele está hoje com 65 anos, mas, como o medo é o sustentáculo de seu poder, não pode se permitir ficar alquebrado, frágil e grisalho. Fraqueza atrai desafio, golpes de Estado. Pode-se imaginar Saddam esforçando-se para manter o ritmo das braçadas a cada manhã. Ele tinge de preto os cabelos grisalhos e não usa óculos de leitura em público. Como um problema nas costas o faz mancar, evita ser visto caminhando mais do que alguns passos.
Alimentos frescos lhe são trazidos de avião duas vezes por semana – lagostas, camarões, carne magra e laticínios. Os carregamentos são enviados a seus cientistas nucleares, que os passam por raios X e os testam em busca de radiação e veneno. Sob a supervisão da guarda pessoal de Saddam, a refeição é preparada por chefs treinados na Europa.
Ele aprecia vinho nas refeições, mas cuida para que ninguém – além de seu confiável círculo de parentes e assessores – o veja bebendo. O álcool é proibido pelo Islã e, em público, Saddam é fiel seguidor da fé.
O presidente vitalício lê vorazmente e nutre especial paixão por livros sobre história militar e grandes homens, em especial Winston Churchill. Todos os dias passa longas horas em um de seus gabinetes, escolhido por ele e sua segurança. Solitário por natureza, o poder o isolou ainda mais. Fechado nos palácios e cercado de ministros que quase nunca ousam lhe dizer o que não quer ouvir, tornou-se desinformado sobre sua terra e seu povo. Existe apenas para preservar a riqueza e o poder. A sobrevivência é sua suprema paixão.

Tomada do poder.
Saddam cresceu em uma cidadezinha pobre da região centro-norte do Iraque, membro de um clã conhecido por sua violência e astúcia. No fim dos anos 50, filiou-se ao Partido Socialista Baath. O objetivo do partido era reconstruir o mundo árabe, compartilhando propriedades e riqueza, buscando uma vida melhor para todos.
Para os companheiros revolucionários, Saddam era dotado de uma impressionante combinação: um homem truculento que era também culto, bem articulado e aparentemente de mente aberta – um líder nato que poderia guiar o Iraque a uma nova era.
Quando o Partido Baath subiu ao poder em 1968, Saddam se tornou o verdadeiro poder nos bastidores do novo conselho de Comando Revolucionário. Durante a década de 70 – período relativamente auspicioso para o Iraque – Saddam foi vice-presidente do conselho. Orquestrou um projeto de alfabetização nacional e construiu escolas, estradas, casas populares e hospitais.
Sempre planejara assumir o controle formal das principais posições no país. Alguns membros da liderança do partido pensavam diferente: em vez de simplesmente entregar-lhe as rédeas, passaram a defender uma eleição no partido. Então Saddam agiu, encenando sua supremacia de forma teatral.
Em 22 de julho de 1979, convidou membros do conselho e centenas de líderes do partido a uma sala de conferências em Bagdá. Fardado, caminhou lentamente até a tribuna. Ocorrera uma traição, anunciou ele, uma conspiração. Havia traidores entre eles.
Muhyi Abd al-Hussein Mashhadi, o secretário geral do conselho, surgiu na sala e confessou seus envolvimento. Preso e torturado dias antes, agora começava a revelar nomes. Enquanto apontava membros da platéia um a um, guardas armados agarraram mais de 60 “traidores” e os arrastaram dali. Quando um homem gritou que era inocente, Saddam ordenou: “Itla! Fora daqui!”. (Mais tarde, mandou que tapassem a boca dos acusados com fita adesiva para que não pronunciassem, à guisa de últimas palavras, qualquer impertinência diante dos pelotões de fuzilamento.) Entre os acusados naquela noite, 22 foram executados, inclusive Mashhadi. Vídeo-tapes do expurgo circularam por todo o país.
O espetáculo horripilante surtiu o efeito desejado. Todos ali entenderam que um único homem passara a controlar o destino daquela nação.
Dois anos depois da tomada total do poder, as ambições de Saddam se voltaram para a conquista. Do exílio, seus antigos aliados de partido hoje consideram o apoio que deu aos programas de bem estar social um elaborado logro.
“No início”, comenta Hamid al-Jubouri, ex-secretário geral interino do Conselho de Comando que hoje mora em Londres, “Saddam era encantador e admirável. Ele nos enganou a todos. Estava escondendo sua verdadeira personalidade, acumulando poder silenciosamente. Ele possui enorme habilidade em ocultar suas intenções; talvez seja essa sua maior qualidade.”

Vaidade.
A raiz da busca sangrenta e obcecada pelo poder parece ser simplesmente a vaidade. O que Saddam mais deseja é ser admirado, lembrado e reverenciado. Sua biografia oficial de 19 volumes é leitura obrigatória para os funcionários do governo. Saddam afirmou a seu biógrafo que não está interessado no que pensam dele hoje, apenas no que irão pensar dele dentro de 500 anos.
Num dia de 1989, Saad al-Bazzaz, então diretor geral da Rádio e Televisão do Iraque, foi convocado à presença de Saddam. O ditador foi direto no ponto. Era costume que poemas e canções compostos em seu louvor fossem transmitidos diariamente pela TV. A maior parte das obras era amadorística – versalhada ridícula criada por poetas incompetentes. Nas semanas anteriores, al-Bazzaz havia insistido com seus produtores para que fossem mais seletivos.
“Soube que você está impedindo a veiculação de algumas canções que falam sobre mim”, disse Saddam.
Al-bazzaz ficou atônito e amedrontado.
“Sr. Presidente”, disse ele, “As canções continuam no ar, apenas suprimi algumas por serem de má qualidade.”
“Olhe aqui”, retrucou Saddam, “você não é juiz. Como pode impedir que as pessoas expressem seus sentimentos a meu respeito?”
Al-Bazzaz temeu ser preso e fuzilado. Seu coração batia disparado.
“Agora está bem claro para você?”, Saddam perguntou.
“Sim, senhor.”
Com isso, Saddam despachou o aterrorizado al-Bazzaz. Naquela noite, o programa completo dos tributos dedicados a Saddam foi retomado.

Crueldade.
Saddam costuma estudar a crueldade e a adota. Culpa ou inocência são irrelevantes, pois não há lei nem valor além da vontade dos tiranos; se deseja que alguém seja preso, torturado, julgado e executado, isso é o bastante. Compaixão, justiça, preocupação com o devido processo legal, tudo é sinal de fraqueza. A crueldade assegura a força.
No início da década de 80, vários burocratas do Ministério da Habitação foram acusados de aceitar subornos e condenados à morte.
“Todos nós do Ministério recebemos ordem de assistir ao enforcamento”, conta um ex-burocrata que hoje mora em Londres. Eles viram e ouviram os acusados implorar, chorar e protestar inocência. Um a um, foram todos enforcados.
Estima-se que mais de 3 mil iraquianos foram executados em 1981 e 1982. Entre as atrocidades de Saddam, há pequenos atos que revelam sua personalidade. Alguém ouviu o general de divisão Omar al-Hazzaa falar mal de Saddam em 1990. Então o general não foi apenas condenado à morte – Saddam ordenou que, antes da execução, sua língua fosse cortada. De quebra, também mandou executar o filho de al-Hazzaa e demolir as casas do general, deixando sua mulher e os outros filhos na rua.

Erro crasso.
Em 1990, a guerra de oito anos contra o Irã havia deixado centenas de milhares de iraquianos e iranianos mortos, e custado ao Iraque bilhões de dólares. Apesar das imensas perdas, Saddam entusiasmou-se com a vitória.
Encorajado por seu poderia militar, planejou invadir o vizinho Kuwait, com seus depósitos de petróleo. Apostou que o mundo não se importaria. Foi um dos grandes erros de cálculo militares da história moderna. Os Estados Unidos e seus aliados começaram a reunir uma das maiores forças bélicas já vistas na região.
Era evidente para todos do setor militar iraquiano que não poderiam fazer frente aos Estados Unidos. Saddam, no entanto, não se deixou intimidar. Seu plano era capturar soldados americanos e amarrá-los em torno dos tanques iraquianos, usando-os como escudos humanos. “Os americanos jamais atirarão em seus soldados”, afirmou ele. Então, suas tropas se moveriam livremente para o lesta da Arábia Saudita, forçando o recuo dos aliados.
Wafic Samarai, chefe da inteligência militar iraquiana, sabia que o plano de Saddam era absurdo. Numa reunião no gabinete de Saddam, Samarai engoliu em seco e proferiu sua avaliação pessimista, baseada em fotos, notícias e estatísticas. Os iraquianos não deveriam esperar nada além de uma derrota rápida, afirmou ele.
Depois de escuta-lo, Saddam disse “Nossas forças vão reagir com mais vigor do que você pensa. Vão lutar por um longo tempo, e haverá muitas perdas dos dois lados. Só que nós estamos dispostos a sofrer perdas; os americanos não vão aceitar muitas baixas em suas fileiras. O povo americano é fraco.” Samarai ficou estupefato.
Pesados ataques aéreos começaram em três dias. Cinco semanas depois, teve início a ofensiva por terra, e as tropas de Saddam se renderam ou debandaram. Milhares foram mortos. A guerra se desenrolou exatamente como Samarai havia previsto.
Desde então, Saddam vem reagindo com maquinações ainda mais absurdas, profetizando vitória no confronto decisivo com os Estados Unidos. Com esse objetivo em mente, deu início a programas secretos de desenvolvimento de armas biológicas, químicas e nucleares.

Destino.
No decorrer dos anos, Saddam escapou diversas vezes da morte, fortalecendo cada vez mais sua convicção de que seu caminho é divinamente inspirado e que seu destino é a grandeza. Ordenou a genealogistas que criassem uma árvore genealógica plausível ligando-o a Fátima, filha do profeta Maomé.
Se Saddam tem uma religião, esta consiste na crença na superioridade da cultura e da história árabes, uma tradição que, ele está convencido, vai ressurgir e abalar o mundo. Sua noção de história não tem nenhuma relação com o progresso, avanço do conhecimento, evolução de liberdades e direitos individuais, questões de maior importância para a civilização ocidental. Tem a ver simplesmente com poder. Para Saddam, o atual domínio do Ocidente sobre o mundo é apenas uma aberração histórica, conseqüência das suas vantagens tecnológicas. Não deve perdurar.
Ele acredita que, quando a Arábia – a fonte da civilização – se erguer novamente, vai ser considerado o grande líder nato, de um tipo que seu mundo não vê há 13 séculos.
“O objetivo dele é governar o Iraque enquanto viver”, diz Samarai. “Isso é difícil, mesmo sem os Estados Unidos em seu encalço. Os iraquianos são um povo dividido e implacável. Para exercer seu domínio, Saddam derramou sangue demais.”
É por essa razão que Saddam vai fracassar. Sua crueldade criou ondas de ódio e medo. Seus discursos não encontram mais eco nem mesmo no mundo árabe, onde é desprezado tanto por liberais leigos quanto por conservadores muçulmanos. A lealdade daqueles que o protegem fundamenta-se em medo e interesse próprio, e pode mudar de lado, se e quando surgir alternativa.

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