terça-feira, junho 12

Por trás das letras

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 2004
Autoras : Renata Pettengill e Raquel Zampil

O superlativo não está só no nome. Afinal, são quase 3 milhões de exemplares vendidos nos últimos três anos. Luis Fernando Veríssimo é um fenômeno num país onde os livros tem tiragem média inferior a 5 mil exemplares. Isso sem contar o fato de já ter sido traduzido em 13 países. No entanto, aos 67 anos, o jornalista e escritor gaúcho está longe de se considerar um fenômeno. Em uma de suas crônicas, ele conta que passou a pedir lugar nas últimas filas do teatro porque não ver o palco significa que tampouco será visto. Preocupação típica de um homem tímido.
E quem poderia imaginar que o autor de uma escrita dinâmica, irônica e “na ponta da língua” – afinal de contas, foi ele quem criou o Analista de Bagé, quem assumiu a autoria das Mentiras que os homens contam e quem organizou as Comédias da vida privada em livro! – seria um tímido de carteirinha?
E foi com esse jeito quieto que Luis Fernando falou a Seleções sobre a família e o ofício de escritor, jornalista, músico, desenhista...

Seleções
Seu pai, Érico Veríssimo, era um escritor famoso...Isso fez com que suas primeiras experiências literárias fossem precoces?
Veríssimo
Ainda garoto, eu, minha irmã e um primo, o Carlito, fazíamos um jornal que prendíamos ao lado da privada, para que a pessoa que estivesse sentada ali pudesse ler. Chamava-se O Patentino, porque lá no sul privada é chamada de “patente”. E era só sobre a família. Principalmente críticas. O jornal anarquizava com todo mundo, não livrava ninguém. Nem o pai.

Seleções
Qual foi o primeiro livro do seu pai que você leu?
Veríssimo
Foi Caminhos Cruzados, que eu li escondido. Ele era considerado, como se dizia na época, um livro forte, com cenas de sexo e tal.

Seleções
Qual idade você tinha?
Veríssimo
Devia ter uns 11, 12 anos. Nessa época eu lia muito quadrinhos, livros de aventura, mas esse foi o primeiro livro adulto. E o engraçado é esses livros e outros que na época eram considerados fortes, comparados ao que se publica hoje, parecem infantis até... No entanto, mesmo os livros de sua primeira fase eram importantes em termos de técnica literária. Ele lia muito a respeito de teoria do romance. Depois, com O tempo e o vento, sua obra ficou mais densa.

Seleções
Outros escritores freqüentavam sua casa?
Veríssimo
É, lá em casa iam muitos escritores, não só brasileiros, mas também estrangeiros. Eu me lembro do americano John dos Pasos, por exemplo, que era amigo do pai. E outros. Mas principalmente os brasileiros. Eu me lembro de Jorge Amado na época em que estava fugido por causa da política, e ficou meio que asilado lá em casa. A minha irmã, Clarissa, brincava de cabeleira com os cabelos do Jorge Amado. E ele, por alguma razão, achou que eu tinha cara de João, e não de Luis Fernando. E só me chamava de João. Eu era pequenino na época.

Seleções
E você atendia por João...
Veríssimo
João, é....

Seleções
Você é escritor, jornalista, desenhista e saxofonista. Quando vai preencher uma ficha e perguntam sua profissão, como você se define?
Veríssimo
Como jornalista. O trabalho de escritor é eventual. Minha profissão mesmo é jornalista.

Seleções
E o saxofone?
Veríssimo
Aprendi a tocar sax nos Estados Unidos, quando eu tinha 16 anos. Na verdade, queria aprender trompete, porque era fã do Louis Armstrong. Mas eles não tinham trompete para emprestar no curso e acabei aprendendo a tocar sax, que toco até hoje na banda Jazz 6.

Seleções
Você faz uma participação especial na banda?
Veríssimo
Sou membro permanente da banda. O grupo é composto por cinco músicos e um metido a músico: eu. Os cinco músicos são muito bons. Eles vivem da música. Enquanto me tolerarem lá eu continuo...

Seleções
De todas essas atividades, qual você considera mais prazerosa?
Veríssimo
Ah, certamente a música. Na verdade, escrever não me dá muito prazer. É o meu trabalho.

Seleções
E o desenho? Como surgiu a tira das cobras?
Veríssimo
Gosto de desenhar também. Só que sou péssimo desenhista, não tenho pretensão. As Cobras eu comecei a fazer quando tinha um espaço no jornal. Às vezes faltava assunto para texto e eu fazia um desenho. Porque as cobras são muito fáceis de desenhar, não é? Cobra é só pescoço, não tem detalhe. Mas parei porque estava fazendo coisas demais. E também já estava com 60 anos. Um homem de 60 anos fazendo cobrinha não ficava bem...

Seleções
Quando você começou a trabalhar como jornalista? Você se formou em jornalismo?
Veríssimo
Não, eu não me formei em nada. Fiquei até os 20 anos nos Estados Unidos e completei o secundário lá. Quando voltamos para Porto Alegre, eu não quis estudar e comecei a trabalhar na Editora Globo, no Departamento de Arte. Mas, como não estava dando certo, vim para o Rio. Isso foi em 1962. Então conheci a Lucia, que é carioca, nós nos casamos e nossa primeira filha, Fernanda, nasceu aqui. No entanto, sem perspectiva, a situação difícil, fiz a coisa sensata: voltei a morar com o pai, na casa em que vivera desde os 5 anos. Em Porto Alegre, convidaram-me para fazer uma experiência num jornal, o Zero Hora. Comecei como estagiário e acabei ganhando um espaço assinado. Aí descobri minha vocação. Até então não tinha escrito nada.

Seleções
Você tinha quantos anos quando voltou a morar na casa de seu pai?
Veríssimo
Eu já tinha 30 anos.

Seleções
Qual era a atitude dele?
Veríssimo
Ele sempre foi muito tolerante. Não havia cobrança. Mas obviamente ele se preocupava um pouco comigo, porque eu não encontrava o meu caminho na vida.

Seleções
Ele chegou a ver seus textos no jornal? Fazia comentários?
Veríssimo
Ele dizia que gostava. Acho que todo pai gostaria não é?

Seleções
Os seus filhos escrevem?
Veríssimo
Os três tem jeito para escrever. A Mariana está fazendo roteiro para televisão e cinema. O Pedro, o mais moço, é cantor, e escreve letras de música. Escreve muito bem. A Fernanda, a mais velha, que é historiadora e jornalista, mora em Paris e também escreve.

Seleções
E os netos? Já chegaram?
Veríssimo
Isso é um assunto delicado na família, porque ninguém se manifestou ainda. Eu faço parte do Movimento dos Sem-Neto. Ele foi lançado por Moacyr Scliar e eu me afiliei. Nós já estamos pensando até em ações radicais, como invadir berçários, roubar nenéns... Os filhos não estão dando conta...

Seleções
Você acha que a sua timidez ajuda a canalizar o humor para o texto escrito?
Veríssimo
Conheço vários humoristas que são humoristas tanto falando espontaneamente quanto escrevendo. Mas, no meu caso, a dificuldade que tenho de me expressar verbalmente, acho que compenso um pouco escrevendo. Escrevendo a gente tem tempo para pensar no que vai dizer. Então é muito mais fácil.

Seleções
Esse seu lado humorístico se manifesta desde a infância?
Veríssimo
O gosto pelo humor, sim. Nunca fui de saber contar piada, mas, quando comecei a escrever, já tinha lido muito. Sempre gostei de humor como consumidor, como leitor.

Seleções
Hoje, o humor de quem você lê?
Veríssimo
Ah, muita gente. Acho que nosso grande humorista continua sendo Millôr Fernandes. Ele é mais do que humorista, é um pensador. Mas temos muita gente boa. Temos o Ivan Lessa, tem o pessoal que está fazendo quadrinhos. O Angeli, o Laerte. Lá do Sul, tem o Santiago. E o pessoal do Cartum. Os Carusos, o Paulo e o Chico.

Seleções
Você tem um livro ou um personagem preferidos?
Veríssimo
Acho que o Analista de Bagé, meu primeiro livro que teve repercussão, que vendeu muito. Na verdade, o Analista começou como um personagem que eu fiz para o Jô Soares na televisão, um garçom gaúcho num restaurante francês, fino. E aí, como o Jô não usou muito esse personagem e eu tinha gostado de fazer, transformei-o em psicanalista, mantendo a mesma idéia da incongruência entre o personagem e a sua profissão, o seu meio.

Seleções
É você quem escolhe sobre o que vai falar na coluna?
Veríssimo
A escolha é minha sempre. Tem assunto que a gente parece que se obriga a comentar – um acontecimento que está no ar, a gente tem quase a obrigação de incluir na pauta. Determinados assuntos – política, futebol e religião – sempre dão problemas. Às vezes invento uma história. Crônica tem isso. Ela dá uma liberdade completa. Qualquer coisa pode ser crônica. Pode ser uma ficção, pode ser às vezes quase um ensaio.

Seleções
Como é a avaliação dos críticos em relação ao seu trabalho?
Veríssimo
Olha, não tenho nenhuma pretensão a ter qualquer qualidade literária. Eu acho que meu trabalho é um meio termo entre literatura e jornalismo. A gente não sabe se a crônica é literatura jornalística ou jornalismo literário, não é? Acho que o valor ou o não valor que me dão é justo.

Seleções
Três milhões de exemplares vendidos em três anos. Isso surpreende você?
Veríssimo
É surpreendente porque crônica não é um gênero que vende tanto assim.

Seleções
Mas é um gênero que combina com o momento.
Veríssimo
É, é uma leitura mais fácil, mais rápida. São textos curtos, geralmente. Mas não deixa de ser surpreendente. No entanto, isso é tudo passageiro. A gente não deve se deslumbrar demais...

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