quarta-feira, junho 6

Meu encontro com Seu Pedro

Fonte : Revista Seleções
Data : Dezembro de 2002
Autor : Abrão Aqueri Jr.

Com a alma pequena, agradeci-lhe por tudo que recebi naquele instante.

“Será que estamos próximos? Já passamos por tantas porteiras que desconfio que não exista essa Cachoeira dos Barbosa”.
“Bem, pelas indicações do pessoal lá da estrada, era só seguir por esta estradinha de terra e chegaríamos lá”.
“É. E o resto do pessoal? Eles estão bem atrás da gente?”
“Deixe-me ver...”
Pelo retrovisor, vi o outro carro entre nuvens de poeira.
“Estão.”
“Ótimo. Que tal perguntarmos para aquele senhor ali?”
“Boa idéia.”
No meio do caminho, numa bifurcação, um velhinho descansava sob uma velha árvore. Parecia atento e exibia a dignidade daqueles que viveram o suficiente para admirar cada pequeno e despercebido detalhe de nossas vidas. Um belo quadro naquela tarde quente de domingo.
Paramos. Desci e caminhei em sua direção.
“Bom dia.”
“Bom dia.”
“O senhor conhece o sítio dos Barbosa?”
“Como não? É logo ali no fim da estradinha. Ela é estreita e um pouco maltratada, mas com paciência vocês chegam lá.”
“E a cachoeira? O senhor recomenda?”
“Bonita de dar dó!”, completou, orgulhoso.
Baixou o olhar e, de forma graciosa, afastou com o chapéu a abelha que insistia em bisbilhotar a cesta de vime que descansava ao seu lado. E, para acabar com a alegria do alado intruso, cobriu-a com uma toalha xadrez engomada. A abelha, sem alternativa, retirou-se para outros ares, não sem antes atiçar a minha curiosidade também, tal o zelo daquele gesto.
O velhinho arrumou cuidadosamente o chapéu sobre os cabelos brancos. Sorrindo, perguntou:
“E o senhor? De onde vem?”
“São Paulo.”
“São Paulo? É muito longe, não?”
“Não muito; uns 400 quilômetros até Bueno Brandão.”
“Mas é uma boa caminhada até aqui, não?”
“De certa forma. Mas é muito pouco, pelas belezas deste lugar.”
Pequenos olhos brilharam debaixo do velho panamá.
“E lá vocês plantam arroz?”
“Arroz?”
“Sim, arroz.”
“Bem... creio que sim”, respondi, titubeante.
“Eu plantava arroz.”
“Mesmo?” (Resposta idiota para quando não sabemos o que dizer.)
“Durante quatro anos, até que vieram os passarinhos.”
“ ? “ (Expressão idiota padrão quando não sabemos o que dizer.)
“Aqueles, os marronzinhos, que comem sementes.”
“ ! “ (Cara de total idiota padrão quando não sabemos o que dizer.)
“E, como eu tinha dó de matar aquelas criaturinhas, minha mulher e eu decidimos plantar amendoim. Não tenho raiva deles, viu? Eles são criaturas de Deus e tem uma missão aqui também. Como todos nós. O senhor gosta de amendoim?”
“Adoro.”
“Pois bem, a minha mulher faz estes doces.”
Colocou a cesta no colo, ergueu a toalha e, como se revelasse um tesouro, o mundo se perfumou de cravo e canela. Surgiram os quitutes de amendoim, em pedaços grandes que quase não cabiam na palma da mão. Dei razão às teimosas abelhas...
“Hummm. Parecem deliciosos, vou levar alguns.”
“O senhor vai gostar. Pergunte a qualquer um da redondeza. São famosos por aqui.”
“Tenho certeza.”
“E quantos o senhor vai querer?”
“Hum... deixe-me ver...”
Decido levar alguns, não apenas pelo produto, mas como retribuição à informação oferecida. E para ajuda-lo também, pois a vida por aqui deve ser muito difícil. Vida de roça. Como na “cidade grande” retribuição se traduz em gastar, dar gorjetas, caixinhas e cervejinhas, fiz as contas: pelo tamanho, calculei que levaria uns bons dias para comer dois pedaços. E, de forma superior, fruto do meu profundo senso de justiça interno, resolvi levar...
“Quatro pedaços!”
Do lado da cesta, ele retirou uma pilha de saquinhos de papel vegetal. Puxou um deles e, com a pinça e muita cerimônia, abriu-o para receber o importante conteúdo. Calmamente o fechou e entregou a mim, com o mesmo espírito de quem se despede de um amigo querido.
“Aqui estão, senhor.”
“Muito obrigado.”
Estendi-lhe uma nota de cinco reais. Quatro reais pelos quatro fartos doces e um real de gorjeta. Era justo.
Peguei o pacote e fui leva-lo aos amigos que me esperavam, quando uma voz educada soou:
“Ei senhor! Por favor!”
“Pois não?”
“O senhor não tem trocado?”
“Infelizmente, não. Mas não se preocupe. O troco pode ficar com o senhor, pela gentileza.”
“Não posso aceitar. Não é correto.”
Engoli em seco.
“Por que?”
“Porque eu devo receber pelo que é justo, pelos meus doces. Cada pedaço custa 15 centavo. E eu deveria cobrar do senhor 60 centavos.
De repente, meu coração se encolheu e um profundo constrangimento tomou posse de mim. Senti vergonha. Não, não era vergonha, era um vazio pela prepotência em assumir que o mundo se resume à minha realidade urbana.
“Perdão, eu não queria...”
“Não se preocupe. É que eu não tenho troco mesmo. Sabe como é... por esta estrada não passa muita gente. Mas, se o senhor tiver 50 centavos, não teremos mais problemas, não é?”
“É. Aqui. Cinqüenta centavos.”
Paguei-lhe e, com a alma pequena, agradeci. Por tudo que recebi naquele instante. Muito além dos adoráveis doces daqueles montes mineiros. É, ao partir, lembrei-me de algo importante. Abri o vidro, gritando:
“Ei, senhor, como é seu nome?”
“Pedro!”, respondeu, enquanto repetia o elegante gesto com as curiosas abelhas.

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