quinta-feira, abril 20

O Dia em que a Cobra me mordeu

Fonte : Revista Seleções
Data : junho de 1973
Autora : Jean Bell Mosley

Emocionante narrativa, em que a autora recorda as velhas superstições de seu tempo de menina do interior, a propósito de mordidas de cobra.

Foi em outubro. Eu e minha irmã, Lou, voltávamos do colégio para casa. As montanhas, com sua folhagem de outono, colorida como roupa de ciganos, guardavam ainda um suave encanto. Tínhamos percorrido um quilômetro e meio, mas ainda havia o dobro essa distância pela frente. “Vamos cortar caminho pelo monte Gillman”, disse Lou.
As crianças que vivem em zonas montanhosas aprendem a ter cuidado com cobras venenosas. Mas, em outubro, já estava passando a época das cobras, e os nossos olhos estavam voltados para cima, para as espirais avermelhadas no alto das acácias e o brilho dourado das nogueiras.
A meio do percurso pelo monte Gillman, avistamos uma galinha-do-mato, cruzando o caminho. Á nossa volta, ouvíamos o ruído característico dos esquilos, o palrear dos gaios e o som das bagas de carvalho caindo. De repente, alguma coisa ferrou meu tornozelo, firme, com um característico arrastar de corpo. Era uma cobra! Suas presas estavam enfiadas na minha meia. Tive que torcer e sacudir violentamente a perna para soltá-las.
Lou, que ficara paralisada momentaneamente, logo voltou à realidade, e começou a apedrejar a cobra. O animal deslizou por entre as folhas. Olhamos uma para a outra. Lou, mais velha e mais experiente do que eu, estava pálida e trêmula. Houve um momento de calma, como a que se pode experimentar em meio à tempestade. A não ser pelo barulho dos frutos caindo, o bosque tinha ficado silencioso. Agora, aos poucos, ouviam-se novamente os esquilos, os gaios. Corremos para casa.
Ao nos aproximarmos, Lou disparou na frente, para avisar a família. Papai, o primeiro a chegar, amarrou o lenço em volta da minha perna, acima do joelho, e, enfiando um pedaço de pau entre o nó das pontas, torceu-o fortemente. Com o canivete fez um corte em cruz sobre as duas marcas dos dentes da cobra. O corte doeu mais que a mordida, mas eu não gritei nem perdi os sentidos. Não era nosso hábito. Então, ele me tomou nos braços, e já estávamos na metade do caminho de casa quando chegaram os outros – mamãe, vovó, vovô, a minha outra irmã, Lillian, e mais um vizinho, que estava nos visitando. “Vou avisar os outros”, disse, passando por nós.
Em nossa casa, o primeiro socorro sempre foi a aguarrás. Dessa vez não foi poupada. Despejaram o garrafão inteiro na panela, e ali meti meu pé de molho. Vovó lembrou-se de que cataplasma de fumo era muito bom para mordida de cobra. Encheu a boca com fumo de rolo, e começou a masca-lo; entregou outro tanto a vovô, com um olhar de quem pedia urgência. Vovô acatou, não antes de lembrar que uma cataplasma de barro vermelho era também bom. E enquanto mascava o fumo, saiu à procura de barro.
Alguém disse à mamãe que uma galinha recém-morta, aberta ao meio, posta sobre o ferimento, tinha efeito de “puxar” o veneno. Mamãe correu ao galinheiro. Lillian começou a folhear avidamente um almanaque, em busca de modernos conselhos médicos. Papai tentava uma ligação interurbana, para chamar um médico. Lou correu ao sótão, à procura de uns pedaços de pano branco para a cataplasma.
Havia uma confusão de sons: galinha grasnando, um rasgar de panos, um farfalhar de páginas de almanaque, vacas berrando no estábulo, os cães latindo, agitados. Vovó foi para a copa, mascando e rezando. Rezava alto, falando coisas que ninguém entendia, com a massa de fumo na boca. Vovô voltou com o barro, e agora havia o barulho de barro misturado à água, para atingir a consistência ideal. Deitada no banco da cozinha, lá estava eu, imaginando se ia morrer. “Nós vimos uma galinha-do-mato”, eu disse, querendo que as coisas voltassem ao normal. Ninguém ligou. Havia assuntos mais importantes a tratar.
Vovó, ainda rezando, veio da copa, tirou o fumo da boca, e estendeu a mão para receber a porção que estava com vovô. Como se tivessem ensaiado, Lou entregou-lhe um pedaço de pano. O fumo, ainda molhado e quente, foi embrulhado cuidadosamente no pedaço de pano, de tamanho apropriado. Tiraram-me o pé do banho de aguarrás e a cataplasma foi aplicada sobre as marcas da mordida.
“Alô! Alô!”, papai insistia, no telefone, que continuava mudo.
“Aqui diz...”, Lillian começou, mas foi interrompida por mamãe, que entrou, quase sem fôlego, esbaforida, pela porta adentro. A cataplasma de fumo foi retirada. E uma galinha, ainda morna, aberta ao meio, com penas e tudo, cobriu inteiramente o meu pé.
Logo que o corpo da ave esfriou, foi removido, e vovô botou-me no pé o barro vermelho e úmido.
“Aqui diz...”, Lillian começou novamente, mas foi logo sufocada pelos “alô1 alô!” de papai, muito aflito, e sem nada conseguir. De trás da porta da copa, vinha a voz de vovó, agora mais clara e compreensível. “Deus é o meu sustentáculo nas dificuldades... Caminharei com a sua ajuda...”
A essa altura, tinham chegado sete ou oito vizinhos. Entraram calmamente, com determinação. Havia uma batalha, e eles estavam prontos. Lonnie Britt, uma mulher grandona, de muita força, chegou até o banco, levantou meu pé e disse, com naturalidade: “Está começando a inchar.”
Bessie Stacy, que estivera ocupada na cozinha, tomou toda agitada um pedaço de pano, e nele deitou ma mistura estranha. “São carrapichos fervidos em leito doce”, disse. “Apanhei-os quando vinha para cá.” Tirou a cataplasma de barro, e aplicou no meu pé os carrapichos quentes.
Vovó Weaver foi a última a chegar. Teve que descer todo o caminho pelo Monte Simons, à luz de lanterna, com suas pernas trêmulas e reumáticas. Sem dizer uma palavra, foi direto á copa, pegou uma caçarola, apanhou um bocado de sal e levou-o ao fogo. Quando estava quente, Lou deu-lhe um pedaço de pano branco, e o sal tomou o lugar dos carrapichos, enquanto Bessie preparava uma cataplasma final – de carne salgada de porco, com cebolas.
“Continua a inchar, e está ficando roxo” alguém observou. O som era da voz de Bessie, mas para mim parecia provir dos lábios de Tom Alexander. Outras coisas estranhas começaram a acontecer. Cabeças mudavam de lugar. Até a minha parecia estar no pescoço de Lillian e a de Lou no de vovô – uma coisa engraçada – e, a cabeça de vovô Weaver pareceu-me no lugar do relógio, na viga. Tio Matt MacGee entrou com um jarro na mão, que , no meu delírio, logo se transformou na cabeça da velha Star, nossa vaca Jérsei. Ele derramou qualquer coisa avermelhada do jarro na minha boca, e disse: “Beba!”
Eu bebi, e foi como se uma tora na lareira se quebrasse em duas e as brasas caíssem pela minha garganta. Parecia estar numa ponte oscilante, só que, em vez de estar andando, eu era jogada para cima e para baixo, ora perigosamente perto das águas vertiginosas, ora tremendamente alto, perto do sol escaldante. De vez em quando, ao subir, podia ouvir vozes...
Luz muito fraca... claridade intensa... luz muito fraca... claridade intensa. E então, a sensação de estar subindo, até uma nuvem macia. Eu me esforçava para arrumar as palavras que estava ouvindo, em uma espécie de ordem lógica.
“Mamãe?”, minha voz era fraca e trêmula.
Mamãe, vovó, papai, Lou, Lillian e todos os vizinhos, que tinham estado naquela vigília de dois dias, pularam das cadeiras e rodearam o banco. Nada diziam, mas o alívio, a alegria estava nos seus olhos. Papai baixou as mangas da camisa, e abotoou os punhos. Vovô puxou o relógio, acertou-o e deu corda. Mamãe enxugou o suor da minha testa, e suspirou aliviada. Os piores momentos já tinham passado.
“Bem!”, disse Tom Alexander, como se tivesse acabado de chegar para uma visita de amigo. “É melhor eu ir andando. Tenho milho para guardar.” Outros se lembraram de que havia trabalho em casa. Vovô pôs o chapéu e foi para o celeiro. Papai seguiu-o . Mamãe começou a fazer um bolo. Vovó mexia e panela da sopa. Lou e Lillian arrumavam tudo na cozinha, varrendo, esfregando, jogando fora as cataplasmas servidas, como se estivessem querendo se livrar do passado.
Uma semana depois, Tia Grace, que morava um pouco longe e foi a última a saber, veio nos visitar. Olhando para a minha perna, ainda inchada, mas em franca recuperação, perguntou à mamãe: “Que foi que você fez, Myrtle?”
“Oh, fizemos apenas o de costume, com o que tínhamos à mão”, respondeu mamãe, com um ar casual. E não perdeu mais tempo com o caso. Não era nosso hábito.

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