quinta-feira, abril 20

Nas Pegadas de Pete

Haverá algo mais perigoso (ou mais precioso) do que a curiosidade de um garoto?

Fonte : Revista Seleções
Data : Junho de 1973
autor : George P. Morrill

Numa tarde fresca e cinzenta de abril, estacionei meu jipe a um quilômetro e meio da montanha que se avista de nossa casa. Queria dar uma olhada em algumas pegadas, deixadas por umas botas, na neve recém-caída que se estendia a minha frente, e que pareciam ter sido, caprichosamente, deixadas ali por alguém.
Elas ziguezagueavam como o rastro de um alce. Primeiro numa única linha, assim . . . . . . . ; depois . ¨. ¨. ¨. ¨. ¨. ¨. ; depois : : : : : : : : : : :: : : . Achei graça. Traduzidos, esses sinais diziam que meu filho Pete, que uma hora antes saíra da escola para casa, tinha:
1) se equilibrado numa corda, como no circo, sob milhares de aclamações;
2) se transformado num avião que mergulha sobre o deserto ártico;
3) imitado um coelho correndo numa campina.
Durante todo o inverno, Pete, que tem sete anos, vinha fazendo este percurso, antes que eu chegasse do meu trabalho, a 20 quilômetros. Para suas brincadeiras, tinha sempre que procurar alguma coisa: uma bola de neve amassada contra uma árvore, ou pedras equilibradas num tronco, como um pagode chinês.
Minha mulher Phyllis e eu não nos preocupávamos com Pete, apesar de ser ele muito pequenino e andar sozinho. Todos gostavam dele. Os lenhadores o cumprimentavam. Caçadores paravam para conversar. E ele foi avisado de que não podia subir nos montes de neve que protegem os bordos de uma elevação da estrada, formando uma espécie de garganta.
Pondo o jipe em marcha lenta, espreitei por cima do capô. Os sinas de botas distanciavam-se subitamente. Pete estava correndo. Apareceram rastros de esquilo. O animal e o menino convergiam para um grande carvalho. Então, as marcas das botas circundavam a árvore – o menino tinha perdido a corrida.
E assim continuava. Uma vareta arrastada imitava as circunvoluções de uma cauda de peixe. Um retângulo na neve mostrava onde ele tinha pousado sua merendeira para investigar um lugar isolado da estrada.
E sempre os sinais voltavam a : : : : : : : : :: . Pete estava pulando. De repente, na fazenda Dow, pisei no freio e saltei. Os sinais se dirigiam para o monte de neve e para dentro da garganta.
Estritamente proibido.
Precipitei-me para a corrente borbulhante do rio. As pegadas levavam diretamente à passagem subterrânea, feita de pedra, onde a água corria sob a estrada. Entrei – e meu coração, quase parou.
Entalada entre duas rochas, com as tampas semi-abertas, boiava a merendeira vermelha do Pete.
Um calafrio me assaltou. Então, olhei para trás, e vi as marcas das botas subindo, a salvo, para o lado oposto da corrente. Ele tinha pulado de uma margem para a outra, saltando sobre as águas revoltas, mas perdendo sua merendeira na corrente.
Enfraquecido pelo susto, segui as pegadas estrada acima, e depois para baixo, na direção de outra extremidade. Elas circundavam a abertura..
Alguns galhos partidos mostravam onde ele tinha tentado, desesperadamente fazer uma vara para pegar a merendeira... sem conseguir.
Depois disto, as pegadas mantinham melancólica semelhança em todo o caminho, colina acima, até nossa porta . ¨. ¨. ¨. ¨. ¨. ¨.
“Temos que puni-lo”, disse eu a Phyllis, na cozinha. Ela concordou. Nenhum de nós ousava pensar no que poderia ter acontecido. Na primavera, a corrente tinha destruído toda a estrada, deslocando blocos de granito do tamanho de barricas. A água também podia ser essa coisa apavorante.
Por favor, não lhe diga nada, até depois do jantar, disse Phyllis.
Pete foi poupado até a hora de sua sobremesa favorita – torta de maçã assada numa travessa funda. Ele não mencionou a perda da merendeira. Olhando para seu nariz torcido e olhos baixos, imaginei uma avalanche de argumentos difíceis de contestar:
Não é natural que os jovens tenham espírito de aventura? Que espécie de covardes criaríamos se os impedíssemos de explorar regiões inóspitas?
Depois do jantar, o Sol se inflamou em riscas de coral nas colinas a oeste.
Os pais costumam ser excessivamente superprotetores. Será que nós somos assim?
Então eu disse:
“Está ainda bastante claro para voltarmos à procura da merendeira, Pete. Apanhe a machadinha.”
Seus olhos se dilataram. Silenciosamente, esquivou-se para a garagem, e minha mulher me olhou de maneira significativa, como se dissesse:
“Você está amolecendo, não?”
“Vou passar-lhe um pito no próprio local”, respondi.
Saímos com o carro, na tranqüilidade do crepúsculo. A primavera pairava sobre as árvores e os campos degelados. A terra parecia esperar ansiosamente por um dia cálido, para fazer brotar pequeninos botões e espalhar incenso pelo ar.
Pete só resmungou essas palavras ressentidas, “os pais sabem tudo”, e mergulhou em silêncio. Momentos mais tarde, surpreendemos uma corça, e Pete se mexeu no assento para vê-la desaparecer por cima de um muro. Mordi os lábios. A doce curiosidade da juventude – uma coisa a ser incentivada e não sufocada.
Então, minha mente se desviou para um pequeno garoto acometido de terror, rolando desamparado por uma torrente branca...
Sentindo-me meio infeliz, meio justo, parei na passagem subterrânea de Dow. Minha boca formou as palavras: Agora, olhe aqui, você deliberadamente desobedeceu nossas ordens estritas – portanto, até junho, você não irá ao cinema. Mas a frase saiu assim: “Corte uma árvore novinha, de três metros, Pete. Vamos ver o que é possível fazer.”
Gastamos bem meia hora pescando a merendeira perdida. Agachamo-nos numa pequena saliência que se inclinava para a passagem subterrânea, e empurramos com a varinha. A água cristalizada pelo gelo borbotou e se quebrou. Esta passagem tinha sido construída há uns 50 anos, e lajes soltas de granito tinham se formado no alto, penduradas como seixos enormes. Era um túnel comprido, escuro e de musgo fétido. Apavorante e lúgubre.
A merendeira se mexeu, rodopiando loucamente. Manobrei-a de jeito que pudesse fisgá-la.
“Muito bem, papai. Muito bem!”
Olhamos um para o outro – obstáculo ridículo que tinha sido domado. Em pouco tempo, nosso triunfo comum afastou o estúpido relacionamento entre julgador e culpado.
Subimos para o jipe, com água pingando de nossas botas.
No carro, de volta para casa, cantarolei uma alegre melodia. O anoitecer acetinado tinha escondidos as sebes de arame farpado. Quando os faróis iluminaram nosso portão, Pete disse hesitante.
Mamãe também vai achar que está tudo bem.”
Seus olhos me procuraram, numa espécie de súplica desesperada. Parecia dizer: Por favor, deixemos as coisas como estão.
E então, num tom de homem para homem, declarou:
“Puxa, aquela passagem subterrânea é apavorante. Não desço lá nunca mais!”, confessou, assustado.
“Eu também não”, completei.
Pouco depois, estacionei o jipe na nossa alameda de vidoeiros brancos. A mão de Pete escorregou para a minha, macia como veludo. Quando nos aproximamos de casa,, vi que Phyllis colocava as canecas para o chocolate quente sobre a prateleira do fogão. Essa era sua tradicional oferta de paz, depois de um desentendimento familiar.
Quando é que se deve se severo, e quando se deve ser flexível? Como e que os jovens pais podem saber? Só pela intuição, talvez....
Do lado de fora da casa, Pete começou, de novo, sua gritaria infernal. Olhamos através dos galhos nus, onde manchas de diamante piscavam no cobertor noturno que envolvia o céu.
“As estrelas são duras ou moles?”, perguntou ele, com ingenuidade.

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