terça-feira, setembro 19

A noite da nossa cachorrada

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1983
Autor : Leo Rosten

Em alguma praia elegante, vive um casal que, mal se lembra de nós, fica tremendo de horror.

Ela era a coisinha mais linda e petulantezinha que já se viu. Desfilava soberana pela frente da nossa casa de praia – a cabecinha erguida, dois grandes olhos castanhos brilhando de prazer, uma gargantilha com um diamante falso no pescoço e uma fita azul presa no pêlo cinza metálico. A única coisa horrível em Josephine era o seu latido. Aquele poodle francês tinha o ladrido mais agudo, estridente e irritante de todo o reino canino – um verdadeiro estilete sonoro.
Felizmente, ela só latia quando ficava sozinha, e isto acontecia por pouco tempo. Era adorada e mimada pelos donos, que haviam alugado a casa pegada à nossa numa estação balneária. Chamemos-lhe os Dorret.
Deveraux e Melanie Dorret eram um casal espetacular, estuante de vitaminas, um ostensivo tributo à ginástica, ao iogurte e a uma enorme fortuna herdada. Todo dia, ao entardecer, o casal dourado saía para jantar e badalar no luxuoso country club que ficava a muitos quilômetros dali. Quando eles, queimadinhos de sol, desciam a escada da sua casa, que ficava a uns seis metros da nossa, para ir até a caminhonete alabastrina (ele metido num impecável dinner jacket e ela vestida de brocado), nunca deixavam de acenar para minha mulher e eu, reclinados em nossa varanda, vestidos como marginais e entoando amenidades do tipo “Foi um dia divino, não foi?” ou (lamento lembrar) “Estão se divertindo?”
A empregada deles ficava olhando, o ritual de partida do deck dos Dorret, com Josephine ao lado. No momento em que Dorret ligava o motor do carro, Josephine empinava-se, e, enquanto ele manobrava sua reluzente carruagem à frente da casa, passando pelo calhambeque da empregada, a cachorrinha sempre latia duas vezes – dois estampidos como os de uma pistola: “Pam! Pam!” Era sua versão para “Adeuzinho”.
Raramente ouvíamos os amáveis Dorret voltarem dos seus prazeres no Paraíso, apesar de sua caminhonete passar quase embaixo das janelas do nosso quarto (uma encantadora fantasia arquitetônica, redondas, pequenas e guarnecidas de cobre, exatamente como as escotilhas de um transatlântico).
O motivo disso é que Devereaux, com máxima consideração, apagava os faróis do carro e reduzia o giro do motor ao mínimo até parar. Abria a porta, fechava-a (jamais a batia) e ia na ponta dos pés até o outro lado do veículo para repetir o mesmo circunspecto desempenho.
Num sábado à noite do mês de agosto, tendo-nos regalado ao jantar com vieiras, espadarte e creme de milho, rematando o banquete com uma garrafa de Puligny-Montrachet, minha mulher e eu fomos dormir um sono celestial. Eu disse “dormir?” Absolutamente! Anjos conduziram-nos às nuvens e depositaram-nos num leito ondulante feito para deuses. Semelhante sono (de uma pureza cristalina e opalescente) chegava ás raias da imortalidade.
De repente – impiedoso e vulgar – uma buzina metálica arrancou-nos da nossa modorra: “Au! Au! Au!”
Afastei as nuvens macias gemendo.
As buzinadas viraram tiros:
“Crek! Krek! Crek!”
Minha mulher começou a se mexer na cama.
“Kharf! Rarf! Crrak!”
Saltamos até as escotilhas. Não conseguimos ver Josephine.
“Grrock! Bark! Grark! Grrok!”
“O carro!”, gritou minha mulher.
Olhei para baixo e minha espinha gelou. Nada de calhambeque nem de empregada. Se Josephine estivesse sozinha, ia ladrar e latir até...
Vasculhamos com os olhos a avenida Beira mar, implorando aos céus para vermos luzes de um carro, mas tudo era escuridão. E o tempo todo Josephine cortava os céus com aqueles irritantes sons que sabia produzir. Os jocosos “Arfs”, os cachorrentos “Uufs!” ou os manjadíssimos “Uauuauuau!” haviam sido expurgados do vocabulário dela. Eu não podia acreditar que uma garganta, fosse de cão, pato ou diabo, pudesse sustentar tamanha fúria laringiana.
Com os nervos em frangalhos, berrei: “Chega, Josephine! Pára!”
Foi um erro terrível, pois o som de uma voz humana fez a cadela passar dos protestos desvairados para suplicantes lamentos – num timbre tão comovedor e de um pânico tão histérico que me fizeram correr até o telefone e ligar para o tal clube. A voz apreensiva de Dorret não demorou a atender: “Alo? Sim. Qual é o problema?”
“Sua cadela! Ela está se esganiçando há uma hora sem parar!... Não, sua empregada não está em casa. Não sei para onde ela foi. O que sei é que a Josephine está dilacerando as cordas vocais e a gente vai é enlouquecer!... Obrigado!” Desliguei. “Esse cara é o fino!” disse eu a minha mulher. “Já vem vindo.”
Mais animados, assumimos nossos postos nas escotilhas. Josephine, talvez sentindo através de percepção extra-sensorial canina que o dono vinha correndo para casa, passou a uivar em estilo completamente novo, numa desavergonhada pieguice de cortar o coração: “Buuu-uuu-uuu. Ou-ou-ouuuu, iauu-uu-uuu!”
“Oh, não!” Guinchou minha mulher. “Ela está chorando!”
“Não chore, Josephine!” gritei. “Papai já vem!”
A expressão de desaprovação que minha mulher me dirigiu foi, acho eu, justificável.
Não demorou muito, um par de faróis vasculhou, ao longe, a escuridão. Minha mulher e eu vibramos. E por que não? Sabíamos que o sono – cor de rosa, gostoso, celestial – voltaria logo a nos envolver.
Mas... que estava acontecendo? Quieta? Quieta? Olhamos um para o outro, perplexos. O silêncio era tal que se podia ouvir o estrídulo zombeteiro de um grilo, seguido de sarcasmo afetado de uma mosca. A terrível verdade abateu-se sobre mim como uma bordoada: Josephine já não estava latindo!
Os faróis de Dorret ardiam em nossa direção. “Ele... vai... pensar... que somos... malucos!” gemeu minha mulher.
“Temos que fazer a cadela latir!” gritei: e levei as mãos à boca, rugindo: “Bark! Uuuf! Kark!”
Minha mulher prontamente começou a uivar: “Uauuuauau! Uau! Bauuu! Oh, Bouu-uau-uauuuu!”
Interrompemos por um segundo o nosso concerto para aguçar os ouvidos. Josephine não emitia som algum. O grilo cricrilava, a mosca zumbia, mas do irritante poodle francês não saía nenhum som.
“Tente latir mais grosso!” ordenei à minha amada. “Você está parecendo uma histérica!”
“Mas eu estou histérica!” reagiu ela. “Uuuf!” Ruuf! Buuf! Gruuk!”
“Faça aquele seu uivo de lobo!”suplicou ela.
E eu ululei alto e longamente, para uma lua inadequada... e minha mulher chorava feito uma carpideira com dor de dentes.
Josephine não se deixou impressionar. Então, comecei a ganir como um coiote, e minha mulher, a gemer como se estivesse em trabalho de parto. Estas alucinadas ululações foram inúteis para ativar as cordas vocais da cachorra.
Agora em desesperado uníssono, com nossas mãos amplificando os decibéis, prorrompemos em rosnados, ladridos, grasnidos, vagidos, urros, uivos, guinchos, mugidos, relinchos e cacarejos, com o resultado final lembrando a alucinada confusão de uma floresta africana em meio a um terremoto.
Estávamos tão concentrados, tão absortos naquela cacofonia doida, que nem percebemos as luzes do carro já em frente de casa, iluminando nossas caras de fantasma.
Deus adorado, suplico-te, com tua misericórdia infinita, concede que algum dia eu possa esquecer o que vi embaixo das janelas: Devereaux Dorret, em dinner jacket, confete nos ombros, e Melanie Dorret, num lamê deslumbrante, com pedacinhos de confetes presos em sua coiffure, ambos de pé, varados, olhando para nós, para duas cabeças sem corpo enfiadas nas escotilhas, as mãos em concha em volta da boca, latindo, latindo, vítimas de hidrofobia que (tão virulenta era sua insanidade) haviam acusado uma cachorrinha calma, doce e pachorrenta de tê-los levado à loucura.

O que aconteceu à empregada nunca viemos a saber. Dizem que teria fugido com o chofer dos Doppelmeir. O que sei é que, pelo resto do verão, os Dorret não se dignaram mais uma única vez a nos dirigir um “Oi”. Sempre que percebiam nossa presença, rapidamente apertavam o passo. Pela cara que faziam, andavam muito desconfiados.
E, toda vez que saía da casa de praia, o casal sempre levava Josephine. A intenção era clara: qual é o dono de um cachorro que ia deixar o animalzinho à mercê de um par de tarados que poderiam submeter o inocente a sabe-se lá que tipo de barbaridade?

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