segunda-feira, setembro 25

Um jantar civilizado

Fonte : Revista Seleções
Data : Julho de 1973
Autor : Thomas Bolton

Foi uma tentativa heróica, um breve e fulgurante momento de requinte familiar.

Imaginem-se, ao fim do dia, à mesa de jantar, um Gibraltar, tranqüilo no caos, assimilando, de um lado, as novidades locais contadas por Liz, minha mulher, de outro, bombardeando por perguntas de Cathy, de nove anos, e Betsy, de seis anos, reagindo aos berros do bebê, ensinando normas de boas maneiras, tentando desviar os avanços intempestivos do cachorro, que se esconde debaixo da mesa como um submarino, esperando silenciosamente as sobras de comida.
É duro, sem dúvida, mas nada que um pai mediano não possa suportar, enfiado nas prestações do apartamento até o pescoço. Mas até um rochedo tem o seu ponto de ruptura. Lembro-me da noite em que atingi o meu...

Nós jantamos numa grande mesa de madeira, na cozinha – não é exatamente uma vida elegante, mas é prático. Nessa noite, examinei o meu prato com olhos experientes, e logo previ confusão.
“Olhem só, couves de Bruxelas!”, exclamei, com um entusiasmo que não podia ter soado mais falso.
“Eu detesto couve de Bruxelas”, disse Betsy, tranqüila. “Hmmmm.”
“O fato, senhorita, é que as couves de Bruxelas são divinas.” Pretendi ilustrar a afirmativa engolindo uma, mas não consegui achar o meu garfo. Achei tudo, menos o meu garfo: peças de quebra cabeças, um biscoito meio em farelos, a perna esquerda de uma boneca, um mocassim, uma bolsa peluda.
“Eu arrumei essa bagunça toda ainda de manhã, meu bem”, murmurou Liz. “Verdade. Não sei como isso tudo aparece.”
“Aqui está ele... no mocassim.”
Quando puxei o garfo, um lápis verde rolou para o chão. O cachorro abocanhou-o, ele adora lápis e espalha um arco íris pela casa. Vêm crianças do bairro todo ver o resultado colorido da sua digestão.
“Muito bem, então”, disse eu, tentando retomar o fio da conversa. “Como foi o seu dia, Cathy?”
“Papai, vamos jogar pôquer como ontem, no jantar?”
“De jeito nenhum. Em todo o caso, não antes da sobremesa.” Estivera ensinando-lhes o jogo. Um pouco de ampliação de interesses nunca faz mal. Usamos feijões como fichas.
“Mamãe recebeu outra multa por estacionamento”, contou Betsy, muito animada.
“E a máquina de lavar pratos está com soluços”, suspirou Liz.
“Papai, que é medida do busto?” perguntou Cathy.
“Pôquer!”, insistiu Betsy. “Podemos jogar agora? Por favor!”
“Um momento!” Vinha de todos os lados, tudo caindo em cima de mim ao mesmo tempo. Senti estalar no meu cérebro algo como um lampejo de lucidez. “Ouçam, meninas. Esta é a hora do jantar... o ponto culminante de milhares de anos de civilização, uma família reunida, trocando idéias, mantendo viva a arte da conversação. Isto não significa jogar pôquer durante o primeiro prato; não significa criticar o que vem para a mesa. Amanhã começaremos um novo regime aqui. Faremos refeições civilizadas. O que significa, em primeiro lugar e acima de tudo, acabou a bagunça.”
Betsy inclinou a cabeça, de acordo comigo, e logo começou a trabalhar num retrato a lápis de um cavalo roxo de ancas bem fornidas, que imediatamente confisquei. Em matéria de extravagância, essa menina faz Picasso parecer acomodado.
“Não somos tão bagunceiros”, disse ela defensivamente. “Você devia ver a casa de Abigail.”
“Há leite achocolatado no teto da Abigail?”
Apontei para uma pequena constelação de nódoas marrons no forro. “Aposto que a nossa é a única casa do continente que tem leite achocolatado no teto!”
“Seu pai tem razão”, disse Liz, carinhosa. “De agora em diante, vamos comer na sala de jantar. E reviver a perdida arte da conversação.”
Contei-lhes como o pai dos Kennedy educou os filhos, fazendo do jantar um foro onde se discutiam as notícias do dia. “Cathy, será que você poderia preparar um relato para amanhã à noite? Algo sobre os acontecimentos atuais?”
“Um relato?” Ela não chegou a dar pulos com a idéia.
Mas eu insisti, explorando outras áreas bem sucedidas de comunicação paternal. Voltando-me para Betsy, contei-lhe como um outro pai escrevia cartas ao filho hoje famoso.
Ela pensou um pouco. “Você me escreve uma carta? Eu poderia pôr o selo na minha coleção.”
“Não tenha dúvida.” Estava começando a ficar encantado com o rumo que as nossas vidas iam tomar. Era o fim do caos ao jantar. Ordem comunicação, uma sensação de progresso pessoal. Aqui, nesta estufa de líderes feministas em botão, eu implantaria um reduto da tradição. “Afinal de contas”, continuou o chauvinista, “os valores antigos são os melhores.”
“Sim”, disse Cathy, pensativa. “Como um full hand sempre ganhará de dois pares.”
Bem, não se consegue a elegância dos salões de um dia para o outro.
Mais tarde, deitado na cama, descrevi para Liz uma cena de máximo refinamento: velas tremeluzindo, as meninas alegres como num eterno Natal com seus vestidos brancos, em divertidos debates cheios de réplicas espirituosas, os rostos voltados para mim à espera da citação de Racine que ninguém conseguia lembrar.
“Um smoking”, balbuciei. Se eu tivesse, poderia usá-lo!”
Liz resmungou e adormeceu.

Na noite seguinte, desde o começo, pressenti o desastre. Oh, a mesa de Liz estava o fino: a toalha brilhava de tão branca, cristais de luxo, velas acesas, o máximo. Mas reinava aquele silêncio. As meninas entraram enfileiradas como refugiados de guerra. A própria Liz parecia um nervoso sinologista, de olho nos pratos em perigo. O bebê estava preso na cadeira alta, esperando o momento exato de atacar, e até o cachorro parecia perdido, andando às tontas debaixo da mesa.
Brindei a todos com o meu sorriso à David Niven, e durante o primeiro prato mantive uma conversa altamente cultural – monopolizei-a, realmente porque eu acho que era o único a falar. Finalmente, disse: “Agora é o momento dos acontecimentos do dia. Cathy, pergunto-me se você nos terá preparado o seu relato.”
Cathy mexeu-se, inquieta: “Havia nos jornais essa história sobre o Egito e Israel. Bom, eu pesquisei um pouco sobre o Egito.”
“Ótimo. O explosivo Oriente Médio.”
“É sobre camelos.”
“Camelos?”
“O navio do deserto da África”, anunciou Cathy, consultando um caderninho de notas. “O camelo pode morrer se beber água demais. O camelo come tâmaras, cereais, capim, sementes, vagens e galhos.” Ela sabia quase tudo sobre os hábitos dietéticos do camelo – muito mais, vimos logo, do que pudesse interessar Betsy.
“Os camelos são uns imbecis!”, sentenciou ela. “Por que você não falou de cavalos, por exemplo?”
Essa crítica fraternal foi o bastante para desencadear uma caudalosa torrente de lágrimas.
“Você nem fez relato nenhum!”, disse Cathy, chorosa.
“E nem era para fazer!” Betsy gritou triunfante. “O papai escreveu-me uma carta. Não é verdade, papai?”
“Realmente”, disse eu, com o coração muito apertado, “não cheguei ainda a escrever, mas...”
“Você prometeu!” E lágrimas brotaram dos olhos de Betsy.
De repente, então, o bebê exibiu um lápis contrabandeado e com uma brusca meia volta da mão deixou um risco verde bem no centro da branca toalha da Liz, que deu um berro e uma palmada na mãozinha rechonchuda. O bebê desfez-se em lágrimas. E Liz fez o mesmo, examinando o seu linho violado. Um recorde tinha sido estabelecido: as quatro mulheres choravam ao mesmo tempo.
Fiquei ali sentado longamente, as torneiras abertas à minha volta.
“Minhas senhoras”, disse eu, “sugiro que passemos à cozinha para a sobremesa.”
Conduzi-as de volta à nossa humilde mesa de madeira, distribuindo beijos e lencinhos de papel liberalmente. Logo estabelecemos uma espécie de acampamento alagado, e eu comecei uma operação de salvamento. Enfiando um suéter nas costas, sob a camisa, pus-me de quatro e perguntei: “Que é que eu sou?”
“O navio do deserto da África”, disse Cathy, sorrindo um pouquinho.
Liz serviu o sorvete, enquanto eu distribuía e lápis e oferecia prêmios para os melhores desenhos de cavalos de cores diferentes. O bebê e o cachorro ficaram na maior alegria: agora um podia dar lápis ao outro à vontade.
“Vamos jogar pôquer?”, sugeriu Cathy.
“Vá buscar as cartas”, disse eu, “e os feijões.”
Liz entregou-me o seu papel. “Ninguém vai fazer um cavalo amarelo melhor que este”, disse ela. “Qual é o meu prêmio?”
“Jantar fora amanhã à noite e uma toalha nova.”
Logo estava tudo como antes, barulhento e alegre. Algumas famílias, acho eu, simplesmente não estão destinadas a uma vida de tranqüila elegância.

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